Memórias da Copa 6: no México Versão Dois, "La Mano de Diós"
Em 1986, uma fastidiosa experiência de trabalhar na retaguarda, de ver a queda da nova (velha) seleção de Telê e o triunfo do Maradona nota 9,5
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Obviamente eu fantasiei a possibilidade de cobrir ao vivo e em cores a Copa de 86, uma competição originalmente destinada à Colômbia, que desistiu um ano antes por falta de grana e o México topou assumir. Claro, eu gostaria de revisitar o palco da minha primeira experiência, rever os lugares com que tanto me encantara em 1970. Porém, o trabalho aqui mesmo, em Terra Brasilis, me impediu. Fazia tempo que eu acompanhava o chamado “Futebol no Mundo” pela “Folha” e também na Band. E, ao invés de me utilizarem lá fora, as minhas chefias optaram por me usar aqui mesmo, numa função até bastante digna, aquela do backup, ou da retaguarda.
Para a “Folha” eu idealizei um sistema de pontuação das performances de cada atleta com base no critério de “La Gazzetta dello Sport”. Numa espécie de súmula, todos os atletas começam com uma nota 6, que representaria a sua obrigação. Daí, na medida em que o prélio se desenvolve, se acrescentam sinais de mais (+) ou de menos (-) ao seu registro. Esse critério controlou os julgamentos que então eram disparatados. Por exemplo: um bom arqueiro sofria um frango e levava Zero. Um avante fraquinho marcava um golaço e levava 10. Graças ao método novo, se fez a justiça aos melhores, mesmo.
Na TV, a missão do backup é fastidiosa. Um narrador, o comentarista, os câmeras, os iluminadores, os sonoplastas etc. permanecem de plantão num estúdio com o seu cenário completo, as roupas de quem vai a uma entrega do Oscar. E por três, quatro horas, lá empacam enquanto os colegas titulares se encarregam da transmissão de fato. O elenco da retaguarda apenas entra em ação quando acontece um acidente de queda de sinal dos satélites ou algo parecido. Devo somar, em minha carreira de profissional, por volta de 1.000 horas como backup. Mas só entrei de fato no ar, eu juro, acredite, na decisão masculina do Handebol do Pan-Americano de Santo Domingo/2003. Menos mal, pois colaborei na descrição de um ouro para o Brasil.
Atravessavam entressafras lastimosas as duas seleções do Sarriá em 82. Com o seu cachimbo de fumo aromatizado por cerejas, Enzo Bearzot permanecia no comando da sua “Squadra Azzurra” vencedora na Espanha. Pena, porém, da luminosa, brilhante geração que ele havia começado a estruturar para a Argentina/78, o artilheiro Pablito Rossi e o mastim Marco Tardelli, lesionados, se limitaram à reserva. Único remanescente dos 3 X 2 contra o Brasil, o líbero Gaetano Scirea já patinava numa curva descendente. E o arqueiro Giovanni Galli, a quem coubera a herança do formidável Dino Zoff, fracassou em quatro dos seis gols que a Itália, abatida nas oitavas-de-final pela França, 0 X 2, sofreu em seus quatro desafios. Uma desclassificação patética.
Telê Santana tinha se demitido logo depois da Espanha e fora sucedido, sem glórias, por Carlos Alberto Parreira, por Edu Antunes (mano do Zico) e, daí, por Evaristo de Macedo. Nas vésperas das eliminatórias continentais, no entanto, duas derrotas bisonhas em amistosos, Colômbia 1 X 0 em Bogotá e Chile 2 X 1 em Santiago, provocaram a sua queda. O desespero e a pressão da mídia obrigaram a CBF a resgatar Telê. E, mesmo sem brilho e com uma equipe em absoluta transição, Telê passou pela Bolívia e pelo Paraguai. Era, contudo, um homem diferente desde o Sarriá, extrapolava nas determinações disciplinares.
Cortou o indispensável Renato Gaúcho, por se atrasar na sua reapresentação depois de uma folga. Daí, solidário, o lateral Leandro, que havia escapulido com Renato e Telê havia perdoado, abandonou a delegação. Dirceu, coringa na seleção desde a Alemanha/74, e Toninho Cerezo, um dos stranieri mais elogiados na temporada da Velha Bota, se contundiram. Além disso, também aquela bela base de 82 havia envelhecido. Oscar se tornara suplente absoluto. Falcão entrava e saía do time. O futebol dos desgastados Sócrates e Júnior sumia ao lado de meros utilitários como Elzo e Alemão. Ao menos Edinho, becão que o treinador havia preterido por Luizinho, enfim virou um titular.
Cumpri o meu backup nos prélios da “Azzurra” e depois da “Canarinho”. Que não cedeu um tento sequer na fase de grupos mas apenas venceu a Espanha precariamente e com o auxílio de Christopher Bambridge, um apitador da Austrália, 1 X 0. Suplantou a retrancadíssima Argélia, um outro 1 X 0, no sufoco da etapa derradeira. E superou um tico mais aliviada a frágil Irlanda do Norte, 3 X 0. Atuar, digamos, razoavelmente, só nas oitavas, placar de 4 X 0 na Polônia, graças a dois gols de pênalti, Sócrates e Careca; mais um, imagine, de Edinho; e um outro de Josimar, estreante, convocado de última hora.
Prestativamente eu testemunhei os prélios do Brasil com um fone nos ouvidos, um microfone ao meu alcance, um par de enormes monitores à minha frente. Detalhe: dentro de um estúdio não se torce, não interessa se o microfone está seguramente desligado. Sempre existe o risco de um som qualquer vazar. Mas, diante da França, nas etapa das quartas, eu não resisti. Com o placar igual, 1 X 1, aos 72’ o treinador Telê remeteu Zico à batalha. Mal recuperado de uma lesão, o “Galinho” apenas havia atuado, contra a Irlanda do Norte e contra a Polònia, respectivamente, nos últimos 22 e 20 minutos, os jogos já definidos. Pois logo em seguida ocorreu um pênalti a favor do Brasil.
Confesso o meu pecado. Segurei o braço do incumbido da narração eventual, se o hipocampo não me atraiçoa o saudoso Marco Antonio Mattos, e literalmente bradei: “Não, o Zico não!” Sobrava lógica na minha apreensão. O “Galinho” mal se aquecera. Desafortunadamente, no entanto, Zico bateu e Joel Bats catou. Prevaleceu aquele placar até o desfecho da prorrogação. Loteria. A disputa dramática de tiros da marca de cal. Gritei de novo quando Sócrates, o meu amigo “Magrão”, desperdiçou a sua tentativa, uma cavadinha que Joel Bats antecipou. E berrei bem alto quando o gaulês Bellone arrematou.
Explico, a quem não viu ou a quem não deseja recordar. Bellone bateu num poste, a bola retornou, se chocou nas costas de Carlos e só então invadiu a meta. As regras que vigiam em 1986 eram além de claríssimas: numa disputa pós-prorrogação, a validade da cobrança se interrompia no preciso momento em que a bola cessava a sua viagem direta até a meta. Era proibido o fliperama. Por instantes Ioan Igna, árbitro da Romênia, hesitou. O suficiente para que eu, num acesso ridículo de subpatriotismo, berrasse: “Pô, alguém lá no México avise o Telê que esse gol não aconteceu! Alguém avise!”
A França abiscoitou a disputa bizarra por 4 X 3. Parou na Alemanha, numa das semis, por 0 X 2, exatamente como a Argentina despachou a Bélgica surpreendente. Já livre do backup, no caso entregue a uma outra dupla, em casa vi a decisão magnífica entre a Argentina e a Alemanha, 3 X 2, uma exibição memorável de Diego Armando “Mano de Diós” Maradona. O “Pibe” assim se autodenominara porque, nas quartas, contra a Inglaterra, 2 X 1, depois de anotar um dos tentos mais deslumbrantes da História, fez outro de mão, que só Ali Ben Naceur, árbitro da Tunisía, não percebeu. E a minha súmula na “Folha”? Na decisão, pelo seu fulgor, honrei Diego com uma nota 9,5. Por que não o 10? Perfeição eu só admito num “Diós” de fato.
PS: O pênalti convertido por Bellone, com a ajuda das costas de Carlos, provocou tal polêmica que a FIFA baixou uma normativa, mais tarde reformulada, que considerava como não convertido um lance naquelas condições. Ou, Ben Naceur deveria ter invalidado o gol de Bellone. Em 1990 a entidade reverteria a decisão. E Maradona, com a sua habitual caradura, ainda visitaria o árbitro a fim de presenteá-lo com uma camisa. Aliás, será sobre a Copa da Itália meu próximo capítulo. E com dois furos de reportagem a respeito da seleção do Brasil, de Sebastião Lazaroni e de Falcão.
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