Memórias da Copa 3: o gol de Clodoaldo e a camisa que ganhei
Guadalajara, Brasil 3 X 1 Uruguai, tensão e superstição: a roupa que ninguém trocava e o sumiço do distintivo de lapela com a bicicleta do Pelé.
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
![O ingresso de Brasil 3 X Uruguai 1](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/NYLN6FCLXBOR3KGMMURQP3IPOU.jpg?auth=076f82d39ab35ffd5a4ddcbae9ed95639d6128d15dd218c29648e7bd5bbe9dce&width=660&height=360)
Manhã ensolarada de 9 de Junho em Guadalajara. No refeitório do Clube Providência, José de Almeida, o factótum da delegação do Brasil, orienta a montagem das mesas para o almoço dos atletas e da Comissão Técnica da seleção. Véspera do jogo contra a Romênia, na fase de grupos da Copa do México/70, naquela data não haveria a tradicional “janela”, a entrada dos jornalistas para um papo informal na concentração. De todo modo, através das grades de um portão de ferro eu examino o interior e aguardo a aparição de Clodolado Tavares de Santana, o “Corró”, o sergipano de Itabaiana, vinte anos de idade, médio-volante do Santos e da seleção de Zagallo.
![Clodoaldo, o sergipano "Corró"](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/ME66K3RMMVKHNK3Z7U43Q2EFZU.jpg?auth=a23a8a36ffb1df188f11e9a43819d442eea95e11db354ba40cd536c6ec4d42d3&width=660&height=360)
Excessivamente tímido, apesar da sua titularidade ao lado de astros mais famosos como Gérson, Tostão, Rivellino e, claro, Pelé, ainda em Guanajuato ele havia feito um trato comigo. Na época o “Corró” namorava Clery, uma jovem de Santos, com quem se casaria e de quem permanece um ótimo marido até hoje. Escrevia cartas atrás de cartas, me pediu que as infiltrasse no malote aéreo da Editora Abril e, como presente, caso viesse a marcar um gol na Copa, me daria a sua camisa respectiva. Trato unilateral, aquele. Eu sabia que, no seu curto percurso na seleção, o “Corró” só tinha anotado dois tentos, em partidas insignificantes: em 9 de Julho de 69, nos 8 X 2 diante de um catadão de semiprofissionais de Aracaju, e no 6 de Maio anterior, 3 X 0 num treino com um combinado rastaquera de Guadalajara.
![O lance do gol, num poster da "Placar"](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/ZHOXKSJR5BOGFNZYVRU4SW5EC4.jpg?auth=12599b61c6a243537823350b2503b0dfd2f6e137b6071c22430a7f5f759a0eb7&width=660&height=360)
Não me aborreci com tão suposta desvantagem. Outros atletas de clubes paulistas, Leão, Zé Maria, Baldocchi e Ado, recorriam à minha ajuda. Carlos Alberto Torres, o “Capita”, ao constatar que eu usava uma máquina igual, me passou a dele, para que eu pudesse fotografá-lo em ação. Fique bem explicitado que eu topava a função de pombo-correio por solidariedade mas, também, por um motivo acessório. Um dos caçulas da mídia no México, dificilmente eu obtinha a chance de uma exclusiva com os medalhões. Auxiliar os menos celebrados me concedia a possibilidade de informações muito interessantes. Eventualmente, do tipo que todos almejávamos.
![O "Papagaio"" e o "Bigode": desfalques contra a Romênia](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/QLVEL6TIRVN73PKTBXBTJ6DI6A.jpg?auth=133db1d6a1118eb6a7f830e927047c181ef57be5013d0842c0bbc6d291617c0b&width=660&height=360)
Pois naquela manhã, ao me entregar as suas missivas, o “Corró” me revelou o time que pegaria a Romênia. Não que me valesse um furo de reportagem. Eu trabalhava para “Veja”, semanal. Mas, pude me orgulhar de, ao retornar ao Hotel Morales para mais uma refeiçãozinha de queso e médio melón, espalhar a escalação que nem os veteranos Michel Laurence e José Maria de Aquino, nem Aymoré Moreira, o treinador campeão no Chile, em 62, frequentador do Providência para a fisioterapia na mão ferida na moenda de cana do seu sítio de Taubaté, sequer fantasiavam. Não entraria em cena metade do eixo de armação do Brasil: os lesionados Gérson "Papagaio" e o Rivellino "Bigode".
![O álbum de figurinhas do México 70, no original italiano](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/VYBATUCYPNIENLXRQ4PDPFODTI.jpg?auth=eba6c5506c5473b45d88b64559be3ea2da85159ada405895ff9acdb0d41426e4&width=660&height=360)
Com a petulância de um jejuno subitamente promovido a dono-da-verdade, pontifiquei: “Félix, Carlos Alberto, Brito, Fontana, Everaldo, Piazza, Clodoaldo, Paulo César, Jairzinho, Tostão, Pelé. Desfalques sérios, o Gérson e o Riva...” Ao que o Aymoré, paternalmente, me ironizou: “Que é isso, garoto? Que outra seleção, nesta Copa, tem um reserva como o Paulo César? E que outra seleção tem Jairzinho, Tostão e Pelé?” De fato, o resultado de 3 X 2 não definiu o que foi a superioridade do Brasil contra a Romênia. E o “Papagaio” e o “Bigode”, felizmente, retornariam diante do Peru, nas fase das quartas-de-final, resultado de 4 X 2, também com razoável tranquilidade. Consequência: na semi de 17 de Junho, o Brasil enfrentaria o Uruguai.
![Os capitães, Ubiñas e Carlos Alberto](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/4DROPO64ENMJFM2MAXQDGLP2AA.jpg?auth=0567c69c4824470e194234131b4a98ad58595db5d841fb73ecd91af75f2bdafe&width=660&height=360)
Quase que exatamente três décadas depois, nos dias que antecederam o duelo do Jalisco não se discutiu um outro assunto além do “Maracanazo” de 16 de Julho de 1950. A “Celeste” havia se qualificado em um grupo intrincado com a Itália, a Suécia e Israel. Depois, havia suplantado a União Soviética, nas quartas, graças a um gol do reserva Espárrago, na prorrogação, aos 117’. Não parecia ser um espantalho capaz de escantear Zagallo & Cia. da decisão. E no entanto, aos 19’, num lance bizarro de Cubilla, saiu à frente, 1 X 0. O Zé Maria, o Aymoré e eu nos olhamos e nos checamos. Sim, os três nas roupas de praxe. Então, num lampejo, eu me lembrei de um outro amuleto.
![A bicicleta que visrou distintivo e brinde](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/57T2ZY75RJPFXP33X2KSUC7G2Q.jpg?auth=9b291910f0dbf0ecf84e10c1f905f0e8ab0f4c5bec721bbc1cf3eb8ac4750ceb&width=660&height=359)
Ganhara do Pelé um maravilhoso distintivo de lapela em enamel azulado e mais um contorno em ouro, a celebrada efígie do “Rei” em plena bicicleta, flagrada numa foto de antologia por Alberto Ferreira do “Jornal do Brasil” – o Alberto, aliás, presente em Guadalajara. Podia trocar de camisa mas não abdicava do distintivo pregado ao meu colarinho. Percebi que o Pelé sumira. Sim, eu precisava achá-lo ou o Uruguai destruiria o Brasil. Procurei pelo chão, nas escadarias, nos corredores, no banheiro, até que subitamente me estalou um eureka. Junto a uma máquina de refrigerantes eu tinha escorregado e caído no carpete. Corri até a máquina, achei o amuleto e me reabolotei em meu posto na tribuna. Eram os 42’ da duríssima etapa inicial.
![A celebração, Clodoaldo e Tostão](https://newr7-r7-prod.web.arc-cdn.net/resizer/v2/AU7HSXSNO5LVBFB5JFINQCKFK4.jpg?auth=019c562127c014143eb63843b632748186bc870d55b855ae53d62aac4366f753&width=660&height=360)
Logo depois, aos 44’, Everaldo tocou a Clodoaldo que tocou a Tostão, quase na lateral canhota do gramado. Tostão avançou alguns passos e de esquerda, devolveu ao “Corró” que invadia o miolo da defesa do Uruguai. Com o peito do pé, de destra, o rapaz sergipano, que envergava a amarelinha que seria minha, decretou o empate, 1 X 1. No segundo tempo Jairzinho viraria, aos 76’, e Rivellino triplicaria, aos 89’. Pelé ainda desferiu um drible de corpo fenomenal em Mazurkiewicz mas empurrou a pelota a milímetros fora da meta. Desci aos vestiários, na porta cruzei com o Corró que me entregou o presente. Cujo eu vesti lá mesmo, emesmo molhado, mais um talismã. Um mimo que me passou a segurança de que o Brasil arrebataria definitivamente a Jules Rimet na minha primeira Copa como repórter.
PS: No próximo capítulo, a vigília na Cidade do México, a descoberta de La Pèrgola, a chuva que poderia ajudar a “Squadra Azzurra” e o retorno atribulado ao Brasil.
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