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Silvio Lancellotti Copa 2018

Memórias da Copa 2: com Aymoré Moreira em Guadalajara, 1970

De como a experiência do campeão no Chile/62 ajudou a encontrar uma cantina, a ganhar um torneio de cerveja - e auxiliou a tática de Zagallo.

Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti

Guadalajara, hoje
Guadalajara, hoje

Sempre que uma brigada de jornalistas viaja, seja até os Cafundós do Judas ou até Guadalajara, no México, para uma Copa do Mundo, uma outra equipe, de logística, produz as condições ideais, básicas, de transporte e de alojamento. À distância de quase meio século, eu hoje admito, como atenuante, as evidentes dificuldades que a retaguarda da Editora Abril enfrentou, em 1970. Não havia qualquer alternativa além de confiar na eficiência de uma agência de turismo. E a empresa então conveniada da Abril nos colocou num certo Hotel Morales, provavelmente fantástico, digamos, bastante atrás, na década de 20.

Cartão Postal do Hotel Morales
Cartão Postal do Hotel Morales

Parecia muito bonito, por fora, inclusive ostentava um salão de refeições razoavelmente elegante no seu térreo. De todo modo, o seu elevador, único, demorava duas horas para percorrer os seus três outros pavimentos, um sándwich de jamón demorava dois dias para ser entregue pela senhora solitária que atendia a uma centena de apartamentos, num dos quais me acomodei com o José Maria de Aquino, da “Placar”, e com o velho Aymoré Moreira (1912-1998), o treinador da seleção no bi do Chile/62, contratado como comentarista especial da revista. O Aymoré virou um amigaço.

Cartão Postal dos Arcos de Guadalajara
Cartão Postal dos Arcos de Guadalajara

A comida? Deprimente. Como em Guanajuato, depressa se demonstaram intragáveis a sopa, o ensopado, o assado, o eterno etcetera de frango, e nos obrigamos a reprisar os tempos do Castillo de Santa Cecília e do desjejum com queso e médio melón, almoço com queso e médio melón, jantar com queso e médio melón, até que o santo Aymoré, que já estivera na cidade, se lembrou de uma cantina situada praticamente ao lado dos lindos Arcos de Guadalajara e a meio caminho entre o árido, vetusto Morales e a concentração do Brasil no verdejante, refinado, milionário Clube Providencia.

Michel Laurence e um amigo famoso
Michel Laurence e um amigo famoso

Como eu era o calouro da brigada, os colegas da Abril me obrigaram a lhes servir de motorista. Aymoré havia esmagado alguns dedos numa moenda em seu sítio de Taubaté e todas as noites eu o levava até a concentração para se submeter a longas sessões de fisioterapia com o massagista Mário Américo. Eu aproveitava o intervalo para desfrutar as excelentes pizzas da cantina. Falei da qualidade do lugar aos companheiros. E o Zé Maria e o saudoso Michel Laurence (1938-2014) igualmente se transformaram em fregueses. Então, em 7 de Junho, o Aymoré observou que acabaria depressa as suas massagens e que pretendia jantar conosco. Ah, desfrutaríamos bem mais que um jantar.


Chile/62: Aymoré, com o Dr. Hilton Gosling e Amarildo
Chile/62: Aymoré, com o Dr. Hilton Gosling e Amarildo

Na data anterior, em Puebla, ele havia presenciado o jogo entre a Itália e o Uruguai, 0 X 0, dois possíveis rivais do Brasil na continuidade da Copa. Pois entre nacos de pão de linguiça e gordos pedaços de pizza ele rabiscou, em guardanapos da cantina, os esquemas táticos dos inimigos em diversas situações. Como se portavam na defesa e no ataque. Um dos rabiscos do “Biscoito”, o apelido do Aymoré, seria crucial, mais tarde, na decisão daquela Copa. O Aymoré apresentou de que forma o Facchetti, lateral da “Azzurra”, perseguia o adversário a quem marcava. Ainda relatou que acabara de exibir os originais daqueles desenhos ao Zagallo e aos membros da Comissão Técnica da seleção. Uma prévia do quarto gol do Brasil sobre a Itália, quase duas semanas depois, no glorioso Estádio Azteca da capital.

O drible de Pelé em Mazurkiewicz
O drible de Pelé em Mazurkiewicz

Víamos as partidas sempre juntos, os três, na tribuna de imprensa do majestoso Jalisco. Parece que foi ontem que, na pugna de estreia, diante da Tchecoslováquia, o Pelé desferiu aquele tiro à meta do arqueiro Viktor, antes da linha divisória do gramado. Deu tempo para que eu e o Zé fitássemos o Aymoré, perplexos com o que parecia uma loucura do “Rei”, e deu tempo para que o Aymoré nos advertisse com o indicador da mão machucada: o arqueiro a recuar, desesperado, enquanto a pelota, num lampejo de crueldade, ao invés de entrar só raspava um dos ângulos da trave. Incrível! O primeiro gol deslumbrante que o Pelé não cravou naquela Copa. O segundo aconteceria contra o Uruguai, o drible sem bola em Mazurkievicz, no mesmo Jalisco, na semifinal de 17 de Junho. Mas essa porfia estará no meu próximo capítulo.


Bobby Moore com a camisa da Alemanha depois da derrota em 62
Bobby Moore com a camisa da Alemanha depois da derrota em 62

Retorno ao Aymoré, definitivamente um admirável topa-tudo. Além de nós, os jornalistas, e de muitos torcedores do Brasil, no Hotel Morales também se hospedavam inúmeros rooters britânicos. Em 11 de Junho, a seleção de Sua Majestade, que perdera do Brasil, 0 X 1, necessitava compulsoriamente sobrepujar a da Tchecoslováquia para, ao menos, ficar com o segundo posto na chave. Ganhou, sofridamente, por 1 X 0. Levou a vaga de consolação. Mas, na fase das quartas-de-final, teria que desafiar a perigosa Alemanha, em Leon, a Alemanha louca para vingar a decisão da Copa de 66. De todo modo, antes de se despedirem, os britânicos do Morales levariam um outro tombo.

A torcida da Inglaterra, no Jalisco
A torcida da Inglaterra, no Jalisco

Havia, num anexo do Morales, uma espécie de bar, com um único garçom, igualzinho ao comediante Cantinflas. Um azougue de garçom, capaz de carregar uma pirâmide de latinhas de cerveja na sua bandeja, ele depositava uma batelada numa mesa em que seis dos britânicos, afáveis, brincalhões e conformados diante da superioridade real daquele esquadrão do Brasil, nos provocaram para uma disputa à parte: quem aguentaria tomar mais latinhas. Aceitamos, e vencemos a batalha, graças a um apoio do Cantinflas.


Cartão Postal do interior do Morales
Cartão Postal do interior do Morales

A população do México tinha se irritado, demais, com uma atitude pedante e superantipática da delegação da Inglaterra que, preocupada com a saúde dos alimentos e das bebidas de seus hospedeiros, havia lotado suas bagagens com caixas e caixas de queijos e de defumados, de geleias e de água mineral. Que fez o garçom? Induzido pelo Aymoré e menos cativado pelas nossas gorgetas do que por seu desprezo aos britânicos, trazia as nossas latinhas, digamos, pré-abençoadas, já vazias pela metade. A nossa pilha de descartadas crescia de duas a duas latinhas para cada vasilhame que eles acabavam.

Torcedores da Inglaterra, depois da derrota para o Brasil
Torcedores da Inglaterra, depois da derrota para o Brasil

Um problema radical que afligia o Zé, o Aymoré e a mim: ultrasupersticioso, o velho Biscoito, bem, aos 58 nem tão idoso, nos havia industriado a usar, a cada novo prélio do Brasil, as mesmíssimas roupas daquele triunfo contra a Tchecoslováquia. Sem lavá-las. O Zé até mesmo checava se eu envergava uma certa cueca verde e um par de meias amareladas – quem me imaginaria capaz de tal combinação tão brega, muito antes da invenção da breguice. Quando o Brasil despachou o Uruguai e eu me deparei com a incumbência de montar minha mala para a ida à Cidade do México, confesso, não resisti ao odor que a tralha emanava e a lavei na banheira mesmo do nosso apartamento.

PS: No próximo capítulo, a história da camisa com que o Clodoaldo empatou a semifinal diante do Uruguai e que hoje enriquece a coleção do meu neto Dudu.

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