Memórias 9: Não, Maradona não se dopou na Copa dos EUA, em 1994
A reconstrução da tramoia que destruiu a imagem de Dieguito e arruinou a seleção da Argentina na competição que o Brasil conquistou nos penais
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Instalado em Nova Jersey, de novo incumbido de cobrir, pela “Folha”, as seleções da Itália e da Argentina, como já fizera quatro anos antes, na Copa de 1994, nos Estados Unidos, eu bem pouco me ocupei do triunfo do Brasil na primeira decisão por penais da História dos Mundiais. Ao contrário, na peleja de 17 de Julho, no Rose Bowl de Los Angeles/Anaheim, Califórnia, a minha chefia me pediu que acompanhasse as atuações de Roberto Baggio e de Franco Baresi, surpresas na escalação de Arrigo Sacchi.
Nada mais natural. Na manhãzinha daquele domingo, ao chegar ao Centro de Imprensa do estádio, coleguinhas me ironizaram por uma nota de primeira página que o jornal havia publicado com a minha assinatura. Garantia a nota que Baggio e Baresi jogariam. Loucura do Lancellotti, os mais delicados observaram. Afinal, na semi da “Azzurra” versus Bulgária, 2 X 1, o Roby saíra carregado do campo do Giants Stadium. E o Franco sofrera uma microcirurgia de joelho não fazia três semanas. Ri por último quando a FIFA distribuiu as escalações oficiais. Fora preciosíssima a fonte da minha certeza. Quase um cúmplice de ambos e testemunha ocular e muito próxima do seu sacrifício com a fisioterapia, eu escutara do próprio Roby a garantia.
Verdadeiros heróis no desenrolar do cotejo, em campo na integralidade do tempo regulamentar e da prorrogação, o global de 120’ e os acréscimos, isso no sol causticante do meio-dia, placar de 0 X 0, os dois desperdiçaram as suas cobranças. O Roby, precisamente a que definiu o sucesso da equipe orientada por Carlos Alberto Parreira, 4 X 3, e que ostentava, dentre seus reservas, um garoto de nome Ronaldo Luís Nazário de Lima, 18 de idade, o então Ronaldinho. Baggio se eternizou pelas imagens da sua desdita, mãos na cintura, a cabeça baixa, ao fundo alguns companheiros atirados ao chão.
Também se eternizou a cena em que Dieguito Maradona, mãos dadas com uma jovem paramédica, deixa o campo do Foxboro Stadium de Boston na direção de um exame antidoping. Era o dia 25 de Junho, a sua Argentina havia superado a Nigéria por 2 X 1 e basicamente assegurado a sua vaga na fase das oitavas. Maradona, todavia, jamais vestiria novamente aquele uniforme. E para compreender a razão é necessário recuar no tempo, a Setembro de 93.
Decadente, enorme de gordo, o ex-“Pibe” mal tentava a salvação da sua carreira, no Newell’s Old Boys da cidade de Rosário, quando um emissário de uma multinacional dos EUA, patrocinadora da Copa e da FIFA, lhe propôs, via Júlio Marcos Franchi, seu empresário, um genrosíssimo bônus em dólares para que entrasse em pleníssima forma até a competição.
Com a ajuda de Don Diego e Dona Tota, os pais do astro, da sua esposa Cláudia e do fisicultor Fernando Signorini, o empresário encetou um gigantesco trabalho destinado a convencer a Mídia, os cartolas da AFA e os torcedores de que Maradona desejava se recuperar. Desejava esquecer a sua prisão, em Abril de 91, por posse de cocaína, e todas as suas loucuras dos idos de inatividade, como os tiros de chumbinho que desferiu em Carlos Lorenz, um fotógrafo da Editorial Atlântida que lhe armava uma tocaia na porta da sua casa de campo da Calle Plus Ultra, 80 quilômetros distante de Buenos Aires. E, por isso, aceitou se submeter a um programa radical de resgate muscular e psicológico, desenvolvido pelo doutor Néstor Alberto Lentini, diretor de Capacitação Atlética do próprio governo platino.
Faltavam apenas noventa dias para a abertura da Copa. E o ex-“Pibe” determinadamente se aplicou e rejuvenesceu. Internou-se numa clínica de Santa Rosa, 500 quilômetros longe da capital. Entregou-se a uma dieta diabólica e aos exercícios brutais de um antigo pugilista, Miguel “Zorro” Campanino. Não largava do El Uniq Cic Pro Trainer, um relógio de pulso que denunciava a menor alteração nas suas funções biológicas. Por horas galopava numa esteira de quase 10.000 dólares, a Tredex. E ingeria um singelo suplemento de controle da gula, o Universal Ripped Fast, do laboratório Twinlab, dos EUA, encontrável na rede do General Nutrition Center, apenas e exclusivamente de produtos orgânicos.
Porque a fórmula do Ripped Fast não continha qualquer substância proibida, Lentini não se preocupou em incluir o produto na relação dos medicamentos eventuais que Maradona consumia. Eventuais? Efetivamente Maradona não consumia mais nada além do Fast. Atingiu o padrão que o patrocinador da FIFA exigia. Ganhou a confiança da Mídia, do treinador Alfio Basile, dos companheiros de elenco e foi à Copa, apesar da oposição da uma madame sem poder mas ultrainfluente, Nélida Grondona, mulher do presidente da AFA, que costumava xingá-lo, por trás dos panos, de “índio hijo de puta!”. Nélida exerceria um papel fundamental na vil crucificação do ex-“Pibe”.
A única extravagância de Maradona naquela competição foi uma extravagância descomunal. Viajou aos EUA com uma comitiva de duas dezenas de pessoas que se esmerou em bancar, com a sua grana, além de Cláudia, das filhas Dalma Nerea e Giannina Dinorah – e de um tal de Mário Daniel Cerrini, dono de uma academia de ginástica em Buenos Aires, nutricionista diletante e amigo de Zulema Menem, a esposa do presidente Carlos Saúl. Lentini não apreciava Cerrini. E por isso transformou o preparador físico Fernando Signorini no xerife pessoal de Dieguito.
De fato, Maradona voou na sua primeira partida, 4 X 0 na Grécia. Por um azar de antologia, anotou um golaço e, ao celebrar, inadvertidamente correu até uma câmera que se localizava logo abaixo do camarote de George Bush, o presidente dos EUA. Congelada a sua imagem, em fração de segundo, pareceu que ofendia Bush, a FIFA, o mundo, o Sistema Solar...
Jamais se conhecerão as reais circunstâncias do sorteio que colocou Maradona no exame antidoping do combate subsequente, contra a Nigéria. É fato, no entanto, que ele estava sossegadíssimo em relação a qualquer resultado. Na Zona Mista, comentou comigo que jantaria lagostas com Cláudia e as meninas no restaurante Legal Sea Food, especializado em crustáceos. Na mesma noite, os frascos com o seu xixi viajaram de avião até Los Angeles, onde seriam analisados no Paul Zibbern, um dos laboratórios da UCLA. Pela manhã, às 10h30 na Costa Oeste, 13h30 em Boston, um técnico do Zibbern comunicou à chefia do instituto que num dos frascos, ainda sem a identidade do dono do conteúdo, se constataram traços de Efedrina e de outras quatro das suas possíveis sub-ramificações.
Durou menos de trinta minutos a secrecidade do exame. Alguém decifrou o código alfanumérico que determinava a procedência dos frascos. Maradona. Alguém telefonou a Michel D’Hooghe, o responsável pelo Antidoping da Copa. D’Hooghe informou Joseph Blatter, o secretário-geral da FIFA. Blatter telefonou a Grondona, que contou a Nélida, que reagiu: “De novo ele?” Acuado pela esposa, Grondona zuniu até o Babson College, onde a seleção da Argentina se alojava. Notificou Eduardo Deluca, cartola menor da AFA, e Deluca notificou Daniel Bolotnikoff, o advogado de Diego: uma comitiva da delegação deveria viajar a Los Angeles às sete da manhã para acompanhar o exame da contraprova de Maradona. Sereno e pragmático, o advogado se preocupou em avisar Franchi. Que se impactou. Sentira um cheiro ruim...
Na tarde de 29 de Junho, com o amigo e colega Nunzio Briguglio, da “IstoÉ”, que vira comigo o empate, 1 X 1, da Itália com o México em Washington DC, e que dividia comigo a direção de um Mercury nos 310 quilômetros de estrada até o Centro de Imprensa do Giants Stadium em Nova Jersey, tocou o meu celular. Pela minha expressão o Nunziotto percebeu que algo de grave havia eclodido. Uma fonte elevadíssima da FIFA acabara de me revelar o flagrante de dopagem do Dieguito. Assim que chegamos ao Centro de Imprensa e eu conectei o meu laptop, um estranhíssimo boletim da FIFA de fato comunicava o tal flagrante, sem entrar em detalhes e sem citar um nome. De palpável, adiantava duas palavras, Nastizol e Decidex, batismos de dois medicamentos antigripais. Grondona tinha transmitido a Blatter, por fax, uma listinha do que, sempre supostamente, o ex-“Pibe” havia consumido. Mentira. Resfriada estivera Giannina. Todavia, sem Nastizol ou Decidex no seu tratamento.
Desde a Itália/90 eu travava, com Blatter, uma relação profissionalmente cordial. Posteriormente, quando decidi reconstruir todo o episódio para o jornal, ele me contou que, intrigadíssimo com a postura de Grondona, solicitou a um laboratório de Zurique que investigasse as bulas dos dois antigripais. E que ficou furioso. Procurou Grondona e cobrou: “Júlio, me dizem na Suíça que, tomando esses medicamentos, Maradona teria dormido em campo no jogo contra a Nigéria - e nós todos vimos que ele correu como nunca...” Ampliou o mistério, a confusão, um outro episódio cabuloso. No Zibborn, Bolotnikoff e Roberto Peidró, o vice-médico da Argentina, constataram que, no frasco da contraprova, já estavam anotadas, para serem investigadas, as substâncias proibidas da amostra original. Peidró, imediatamente, solicitou a anulação do exame e avisou a chefia da delegação. Ouviu que precisava se calar: “Será melhor assim, Roberto”.
A escumalha da AFA, sob a proteção de João Havelange, já havia decidido guilhotinar Maradona. Pelos brados de Maradona depois da final de 90 e pelas afirmações nas quais distribuiu esculhambações do sul ao norte, do leste ao oeste. Pela cocaína de 91. Pela sua iconoclastia. Pela sua rebeldia. Pela sua língua solta. Pelo infortúnio da sua imagem congelada na pugna contra a Grécia. E até pelo ódio que lhe devotava Nélida Grondona. Comportou-se como um calhorda Júlio Grondona, a quem nem a morte, em 2014, livraria de uma devassa por corrupção. Pior, se comportou como um covarde e como um imbecil Álfio Basile, que não peitou a trama, se omitiu, pedantemente acreditou que ganharia a copa sem o seu capitão e então perdeu os jogos contra a Bulgária 2 X 0 e a Romênia 3 X 2, e voltou à Argentina fracassado.
Nos meados de Agosto, em Buenos Aires, o solertíssimo Franchi e o lúcido Lentini, num lampejo, vislumbraram a verdade. Pouco antes da fatídica peleja contra a Nigéria, havia se extinguido o estoque do inócuo Ripped Fast, do qual Maradona, inclusive, dentro do seu peso justo, numa condição exuberante, graças às exigências do seu xerife Signorini, nem mais necessitava. Contudo, o intrometido Daniel Cerrini, por sua conta, sem encontrar uma loja do GNC, numa farmácia comum adquiriu um pacotaço do Universal Ripped Fuel, de embalagem equivalente mas muita Efedrina etcetera na sua composição. Com a ajuda de voluntários, Lentini testou o Fast e o Fuel. Quem usou o Fast eliminou um xixi impecável. Quem tomou o Fuel apresentou Efedrina na urina. Pela atentuante, a FIFA limitaria a 15 meses a suspensão de Maradona.
Na véspera da decisão da Copa, na Loyola Marymount University, na qual a Itália havia se instalado em Los Angeles e na qual Baggio me anunciou que ele e Baresi enfrentariam o Brasil, solicitei a Vincenzo Pincolini, o fisicultor da “Azzurra”, ex-velocista olímpico nos 400m, uma declaração, entre aspas, para o texto de reconstrução que eu já idealizava. Eis, literalmente, a fala de Pincolini: “Punir Maradona por Efedrina me entristece. Achar que a Efedrina, hoje, é um estimulante, me faz rir. Ninguém usa a Efedrina como uma estratégia de doping. Existem no mundo dezenas de outras substâncias mais eficientes – e muitas delas os testes não conseguem detectar.”
Curiosamente, a minha página dupla, que publiquei na “Folha” logo após o julgamento de Dieguito, provocou mais elogios lá na Argentina que por aqui. Inclusive eu virei um item em “El Libro Negro de los Mundiales de Fútbol”, lançado pela Editorial Planeta de Buenos Aires em Novembro de 1994. Os seus três co-autores, Daniel Guillermo Cecchini, Andrés Bufali e Jorge D. Boimvaser, me apontaram como o único jornalista a encaixar todas as peças daquele lastimável quebra-cabeças. Maradona pode ter os maiores defeitos do universo. Porém, não se dopou para disputar a Copa de 1994. Mais detalhes você pesca através da Internet: "A Queda de Maradona, 28/8/1994".
PS: No próximo capítulo, a reconstrução do que houve de fato com o Ronaldo Fenômeno na fatídica Copa da França/98.
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