Um dos selos do grande autor
ReproduçãoNestes dias em que só predominam as notícias ruins e as desinformações , consequência da disseminação, através do planeta, de um bicho de nome emblemático, o tal do SARS-CoV-2, alcunhado de “Novo Coronavírus”, num lampejo me veio à mente uma fábula que aprendi com um velho amigo de meu pai Eduardo, o multímodo Júlio César de Melo e Souza (1895-1974), afetuoso educador e formidável matemático que, eventualmente, se escondia atrás de um curioso pseudônimo, Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan. Na minha geração, aquela dos hoje setentões, foram raros os bons estudantes que não leram a sua obra prima, “O Homem que Calculava”.
Homenagem da ABL, em 1939
ReproduçãoPublicado originalmente em 1938, já traduzido para uma dezena de idiomas, com quase 2,5 milhões de exemplares vendidos apenas no Brasil, o livro trata das aventuras do incrível Beremiz Samir, um viajante persa que, durante a sua viagem, com engenhosidade e muita graça, soluciona todos os problemas a ele propostos. Eu aprendi bastante com Malba Tahan. O professor Júlio César, todavia, era também um grande contador de parábolas. Determinada ocasião, em São Paulo a fim de negociar um programa na antiga TV Cultura, o Canal 2, com mais alguns jovens eu mereci o privilégio de ouvir uma história que ele incluiu num dos seus, acredite se quiser, 69 volumes de contos. É possível que a minha memória tropece, aqui e acolá, num detalhe ou noutro do que então eu escutei. Mas, do mote central, com certeza eu não me esqueci.
O professor Júlio César
malbatahan.com.brConsta que, numa aldeia qualquer de um oásis, entre o Cairo e Istambul, um rapagão de passagem se aproxima de um ancião e lhe pergunta: “Lembras-te de mim?” À resposta negativa o moço anuncia que, um dia, fôra aluno do ancião. E o velho observa: “Verdade? Devo ter sido útil. Pela tua vestimenta, vejo que te transformaram num personagem importante.” Ao que o rapagão deságua em uma combinação de constrangimento e emoção: “Sim, eu me tornei um mestre. Aliás, precisamente porque aprendi com o senhor uma lição que mudou a minha vida e me livrei de desabar no caminho do Mal.”
Um dórico
ReproduçãoA confissão despropositada impactou o ancião. Que fitou e re-fitou o moço, sem reconhecê-lo; “Mas, como foi que isso aconteceu?” E o rapagão recordou: “Já faz uns doze, treze anos. Eu era um meninote e me alistei na guarda do Vizir. Cabia ao senhor nos ministrar as instruções básicas de ética e de comportamento. Um colega de turma havia ganho do pai uma moeda, um dárico de ouro puro. E sem que ele percebesse, eu lhe surrupiei a moeda e escondi na minha algibeira. O colega, porém, acabou por perceber o furto e reclamou ao senhor, que logo conclamou o ladrão a entregá-la ao dono. E eu não me abalei. Então, o senhor idealizou um truque para não humilhar ninguém. Achou a moeda e daí a devolveu. Lembras-te de mim, agora?”
O professor, numa aula
malbatahan.com.brBrandamente, o ancião sorriu, e explicou: “Não, eu ainda não me lembro, porque nunca pretendi saber quem fôra o ladrão.” Pasmado, o moço gaguejou: “Mas como, então, o meu colega recuperou a moeda? Com certeza, o senhor descobriu que o dárico estava comigo. E, quando optou por não me denunciar, o senhor me ensinou um conceito que me fez ser o homem que sou hoje.” De novo o ancião sorriu. E então, arrematou: “Sim. Primeiro, te recordes de que eu pedi que todos vocês fechassem os olhos. Assim, ao procurar a moeda, eu não exporia nenhum ao vexame. Depois, cerrei os MEUS, pois não queria, também, ver quem tinha cometido a infâmia”.
O professor, no programa da TV Cultura
malbatahan.com.brJá aos prantos, enfim, o rapagão revelou ao mestre o que restava, de crucial, para se fechar aquela experiência de fato inesquecível: “Verdade, senhor. Acontece, contudo, que de esguelha entrevi os teus olhos cerrados. E na hora em compreendi tudo que deveria ter aprendido. Eu havia cometido três pecados em seguida. Furtar a moeda. Fingir que não era o ladrão. Fingir que não percebi que o senhor havia encontrado o dórico na minha algibeira. E o senhor nunca me acusou de nada. E mesmo hoje ficou firme, ao insistir que não me conhecia. Sim, o senhor me transmitiu o que é a essência do ensino. Provou que o verdadeiro mestre não precisa humilhar para corrigir.”
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