O mestre Malba Tahan e a parábola do rapaz que furtou uma moeda
Nesta época de falta de boas notícias, a recordação de um dos racontos do extraordinário autor de um livro histórico, "O Homem que Calculava"
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti

Nestes dias em que só predominam as notícias ruins e as desinformações , consequência da disseminação, através do planeta, de um bicho de nome emblemático, o tal do SARS-CoV-2, alcunhado de “Novo Coronavírus”, num lampejo me veio à mente uma fábula que aprendi com um velho amigo de meu pai Eduardo, o multímodo Júlio César de Melo e Souza (1895-1974), afetuoso educador e formidável matemático que, eventualmente, se escondia atrás de um curioso pseudônimo, Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan. Na minha geração, aquela dos hoje setentões, foram raros os bons estudantes que não leram a sua obra prima, “O Homem que Calculava”.

Publicado originalmente em 1938, já traduzido para uma dezena de idiomas, com quase 2,5 milhões de exemplares vendidos apenas no Brasil, o livro trata das aventuras do incrível Beremiz Samir, um viajante persa que, durante a sua viagem, com engenhosidade e muita graça, soluciona todos os problemas a ele propostos. Eu aprendi bastante com Malba Tahan. O professor Júlio César, todavia, era também um grande contador de parábolas. Determinada ocasião, em São Paulo a fim de negociar um programa na antiga TV Cultura, o Canal 2, com mais alguns jovens eu mereci o privilégio de ouvir uma história que ele incluiu num dos seus, acredite se quiser, 69 volumes de contos. É possível que a minha memória tropece, aqui e acolá, num detalhe ou noutro do que então eu escutei. Mas, do mote central, com certeza eu não me esqueci.

Consta que, numa aldeia qualquer de um oásis, entre o Cairo e Istambul, um rapagão de passagem se aproxima de um ancião e lhe pergunta: “Lembras-te de mim?” À resposta negativa o moço anuncia que, um dia, fôra aluno do ancião. E o velho observa: “Verdade? Devo ter sido útil. Pela tua vestimenta, vejo que te transformaram num personagem importante.” Ao que o rapagão deságua em uma combinação de constrangimento e emoção: “Sim, eu me tornei um mestre. Aliás, precisamente porque aprendi com o senhor uma lição que mudou a minha vida e me livrei de desabar no caminho do Mal.”

A confissão despropositada impactou o ancião. Que fitou e re-fitou o moço, sem reconhecê-lo; “Mas, como foi que isso aconteceu?” E o rapagão recordou: “Já faz uns doze, treze anos. Eu era um meninote e me alistei na guarda do Vizir. Cabia ao senhor nos ministrar as instruções básicas de ética e de comportamento. Um colega de turma havia ganho do pai uma moeda, um dárico de ouro puro. E sem que ele percebesse, eu lhe surrupiei a moeda e escondi na minha algibeira. O colega, porém, acabou por perceber o furto e reclamou ao senhor, que logo conclamou o ladrão a entregá-la ao dono. E eu não me abalei. Então, o senhor idealizou um truque para não humilhar ninguém. Achou a moeda e daí a devolveu. Lembras-te de mim, agora?”

Brandamente, o ancião sorriu, e explicou: “Não, eu ainda não me lembro, porque nunca pretendi saber quem fôra o ladrão.” Pasmado, o moço gaguejou: “Mas como, então, o meu colega recuperou a moeda? Com certeza, o senhor descobriu que o dárico estava comigo. E, quando optou por não me denunciar, o senhor me ensinou um conceito que me fez ser o homem que sou hoje.” De novo o ancião sorriu. E então, arrematou: “Sim. Primeiro, te recordes de que eu pedi que todos vocês fechassem os olhos. Assim, ao procurar a moeda, eu não exporia nenhum ao vexame. Depois, cerrei os MEUS, pois não queria, também, ver quem tinha cometido a infâmia”.

Já aos prantos, enfim, o rapagão revelou ao mestre o que restava, de crucial, para se fechar aquela experiência de fato inesquecível: “Verdade, senhor. Acontece, contudo, que de esguelha entrevi os teus olhos cerrados. E na hora em compreendi tudo que deveria ter aprendido. Eu havia cometido três pecados em seguida. Furtar a moeda. Fingir que não era o ladrão. Fingir que não percebi que o senhor havia encontrado o dórico na minha algibeira. E o senhor nunca me acusou de nada. E mesmo hoje ficou firme, ao insistir que não me conhecia. Sim, o senhor me transmitiu o que é a essência do ensino. Provou que o verdadeiro mestre não precisa humilhar para corrigir.”
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