Faz-de-conta que os Jogos de Tóquio/2021 vão ocorrer em 2020
Uma gambiarra, uma improvisação do COI e do governo do Japão permitirão que aconteçam sem ferir a velha tradição da Carta Olímpica
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Emília Escarrabodes de Oliveira, a Marquesa de Rabicó e Condessa das Três Estrelinhas, uma personagem clássica de Monteiro Lobato (1882-1948), inventou um universo do “Faz-de-Conta”, onde tudo dava certo mesmo que não funcionasse. Obviamente sem conhecer a boneca de pano e a obra maravilhosa de Lobato, o COI, Comitê Olímpico Internacional, acuado pela pandemia Covid-19 e também pela implacável pressão de atletas e entidades esportivas, enfim se decidiu pela lógica com pitadas de gambiarra e, num engenhoso acerto político com o governo do Japão, transferiu os Jogos de Tóquio/2020 para 2021 sem que o evento mudasse a data-sufixo da sua denominação. Ainda sem uma data efetiva, vagamente determinada para “até o final do Verão” de 2021, o evento seguirá como Tóquio/2020.
A gambiarra, o faz-de-conta, soluciona uma questão que angustiava os defensores mais aferrados das tradições do chamado Olimpismo. Na veneranda Carta Olímpica, dos tempos em que um certo Pierre de Frédy (1863-1937), o Barão de Coubertin, decidiu ressuscitar uma competição da Grécia de 25 séculos atrás, e instituiu os Jogos da Era Moderna, a partir de Atenas/1896, há um Artigo, o 6, em que textualmente está escrito: “Olimpíada é um período de quatro anos civis consecutivos, com início no primeiro dia de Janeiro do primeiro ano e fim no 31º de Dezembro do quarto ano”. Insisto: uma Olimpíada é um intervalo de quatro anos. Por isso ninguém deveria dizer “Olimpiadas de Tóquio” ou coisa parecida. Mas, enfim, a prevalecer na lógica e na rigidez a letra desse Artigo 6, depois dos Jogos do Rio/2016 ou se fariam os Jogos de Tóquio/2020 ou não haveria absolutamente nada.
No último dia 19 de Março, quando eu me enfronhei nas pesquisas sobre a reorganização do Calcio, num texto que publiquei cá no R7, travei contatos com gente do CONI, o Comitê Olímpico Nacional da Itália. E, num retalho da conversa, intuí que adviria a improvisação em relação aos Jogos de Tóquio. Cheguei a papear a respeito com alguns amigos da cúpula do Esporte no Brasil. Parecia inevitável a gambiarra. “Tokyo 2020”, afinal, é uma marca patenteada pelo COI e pelo COL, o Comitê Organizador Local. E já se negociaram zilhões de dólares com os fabricantes e os intermediários da comercialização de bugigangas através dos 202 países membros do COI. A marca já foi impressa em trocentos mil produtos, de blocos de papel até os uniformes estilizados, de chaveiros a canetas, de pins a bonés, de óculos a tênis, uma derrama, um prejuízo desastroso no caso de um encalhe.
Conflitos bélicos, no passado, levaram ao cancelamento dos Jogos sem que ninguém cogitasse da gambiarra. Não seria possível um faz-de-conta nos Jogos de Berlim/1916, a Europa na I Guerra. Ironia: o COI de então remeteu tal evento para 1940, no Japão, sem imaginar que o Império Nipônico entraria numa conflagração, quem diria, contra a China, a raiz da Covid-19. Os Jogos de Tóquio/1940 se mudaram para 1952, em Helsinque. E Londres, de evento previsto para 1944, em plena II Guerra, pôde realizá-lo em 1948. Aquelas, todavia, foram contendas impedidas por bombardeios de verdade, localizados na Europa, no Norte da África e na Ásia. Desta vez, o drama se espraia através do globo e coloca os 202 membros do COI, ou os 193 da ONU, ou as 210 afiliadas à FIFA, contra um microrganismo no desenho de coroa.
Do ponto de vista estritamente esportivo, ótimo que ainda se celebrem esperanças de que, mesmo em 2021, Tóquio consiga abrigar os seus Jogos. “Trabalhamos durante seis anos para o evento se iniciasse em 24 de julho, e agora todo esse esforço precisará recomeçar”, observa Yoshiro Mori, CEO do Comitê Local: “Assinamos inúmeros contratos e revisar todos representará uma tarefa ingente”. E existem outros desafios paralelos a vencer. Reformular os acordos com diversos espaços já reservados exclusivamente para os Jogos e que ficarão ociosos e que, talvez, nem estejam mais disponíveis em doze meses. Renegociar os milhões de diárias reservadas em hotéis, pensões, pousadas etc. E a Vila Olímpica, o alojamento das delegações, em que os apartamentos já estão vendidos e, na teoria, deveriam ser entregues a seus proprietários logo depois dos Jogos. Obstáculos complexíssimos.
“Não será nada fácil”, observa Shinzo Abe, o premiê do Japão. Porém, como completa um caro amigo que pediu anonimato, jornalista do “Asahi Shimbun”, 12.000.000 de exemplares em duas edições diárias, “absolutamente nada é impossível para o povo que inventou o ‘Samurai’, o “Harakiri’, o ‘Kamikaze’, e que se reconstruiu mesmo depois de atacado por duas bombas nucleares”.
De fato, paira um volume muito maior de complicações sobre as modalidades e sobre os atletas. Primeiro fato, elementar: aqueles que estariam hoje classificados, claro, estarão um ano mais velhos em 2021. Parece idiotice essa afirmação além de óbvia. Mas, ela tem um significado natural. Não há como se assegurar que os atletas, cujo pico de melhor forma ocorreria neste Julho, preservarão o mesmo nível em Julho de 2021. Absolutamente inviável.
No Futebol, pior, existe uma limitação regulamentar. Os elencos em ação podem ostentar 18 jogadores, 15 deles abaixo dos 23 anos. Na excelente seleção brasileira de hoje, onze rapazes, em 2021, ultrapassarão tal fronteira. E os esportes olímpicos são 33. No Atletismo e na Natação, sem dúvida os mais atraentes, já existe cerca de 80% dos disputantes com índices classificatórios e nas chamadas fases de manutenção. Conseguirão remontar o seu ciclo para daqui a doze meses? E o Basquete, o Handebol, o Voleibol, os coletivos femininos e masculinos ainda com vagas a se preencherem, retornarão ao zero ou torcerão para que os seus elencos não sofram baixas fundamentais até lá? E os atletas paralímpicos, com suas peculiaridades específicas? Impossível responder. Convenhamos, nem importa. Esportes são sinônimos de Saúde. E valem todos os sacrifícios para a derrota da Covid-19.
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