Agora no Atletismo, mais um absurdo do esporte no Brasil
Embora legítima, uma licitação anti-ética prejudica um treinador consagrado e coloca num cargo importante um punido por dopar os seus pupilos
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Sou visceralmente contra qualquer penalidade definitiva. Acredito na redenção, torço bastante para que um punido se recupere, se regenere, se reintegre à sociedade. Jamais me arriscaria, porém, a usar uma raposa como a zeladora de um galinheiro. Afastado das pistas do País já faz quase oito anos, Jayme Netto, o protagonista principal do maior escândalo de doping do esporte por aqui, acaba de ganhar um novo emprego na CBAt, a Confederação Brasileira de Atletismo. Com o salário mensal de R$ 6.000, assumirá o posto de consultor da CBAt para provas de velocidade.
Não se discute o currículo admirável de Jaime Netto, hoje na casa dos 60 de idade. De acordo com a irrepreensível Plataforma Lattes, ele é graduado em Fisioterapia, fez um mestrado em Educação Física, doutorado em Ciências da Saúde. Tornou-se livre-docente da UNESP, Universidade Estadual Paulista, apresentou cerca de 240 trabalhos em congressos inclusive internacionais, publicou mais de 50 em revistas especializadas. Também cuidou das equipes dos revezamentos de 4X100 que, formidavelmente, acumularam medalhas de prata nos Jogos Olímpicos de Sydney/2000 (dos homens) e medalhas de bronze nos Jogos de Pequim/2008 (dos homens e das mulheres).
Também não se discute a transparência com que a CBAt montou o procedimento de contratação do tal consultor, que exercerá a sua incumbência no Centro Nacional de Desenvolvimento do Atletismo, o CNDA, de Bragança Paulista, no mesmo endereço, ironicamente, do escândalo de doping. Aconteceu uma licitação, aberta àqueles que se dispusessem a participar. No procedimento, todavia, a entidade privilegiou os títulos acadêmicos, que ganharam peso por pontos extras e tornaram Jaime Netto imbatível. Mesmo com o ouro dos rapazes e das moças no 4X100 do Pan de Lima/2019, o ouro dos rapazes no recente Mundial de Yokohama, Japão, outro treinador, Katsuhico Nakaya, somou 44,50 pontos contra 48,83.
O vencedor se escuda na meritocracia. Ao blog “Olhar Olímpico”, de Demétrio Vecchioli, literalmente declarou: "A gente amadurece, cresce. Esses anos parecem ter um significado muito maior depois de tudo que eu passei. Essa é a forma que eu tenho de fechar esse capítulo. Se não fosse meritocracia eu não teria como voltar. Eu paguei pelo que eu fiz e essa é uma vaga que eu conquistei por direito". Não necessariamente, porém. Da mesma forma que valorizou os títulos acadêmicos, o concurso da CBAt obrigatoriamente deveria estabelecer um índice de redução para quem feriu a ética, a disciplina e a normalidade. Nakaya nunca maculou o seu nome e nunca transformou o Atletismo, convenhamos, em um triste, nefando caso de polícia.
Exatamente agora completa uma década o escândalo em que Jaime Netto se enredou. Era Agosto de 2009 quando ele assumiu a responsabilidade por ministrar, de maneira constante e sistemática, a EPO, ou Eritropoietina, a cinco integrantes de uma bela equipe brasileira que disputaria o Mundial. Trata-se de uma substância sintética, simulacro de um hormônio secretado pelos rins, capaz de estimular a medula a ampliar a produção das células vermelhas do sangue. Utilizada basicamente no tratamento da anemia, a EPO se tornara comuníssima entre os super-ciclistas de estrada. Como Lance Armstrong, um heptacampeão do “Tour de France”, enfim banido, de vez, das duas rodas.
Nos seus périplos, então, supostamente épicos, de 1999 a 2005, Armstrong driblou os exames de plantão. Josiane da Silva Tito, Luciana França, Lucimara Silvestre, Bruno Lins e Jorge Clélio da Rocha Sena, os atletas submetidos ao comando de Jaime Netto, foram flagrados, porém, nos primeiros testes fora de competição que se fizeram aqui no Brasil. Ao menos o treinador, felizmente, manifestou que os pupilos eram inocentes, ignoravam o que ingeriam sob o disfarce de suplementos. Jaime Netto ainda acusou, como seu mentor, o fisiologista Pedro Balikian Jr., demitido da UNESP. O fisiologista lhe tinha assegurado que não havia chance de os atletas serem surpreendidos.
Na realidade, nos bastidores do Atletismo da época, já se comentava, cautelosamente, sobre um escândalo prestes a explodir. Havia atletas, inclusive, que confidenciavam os seus temores a colegas e, dentro da UNESP, a professores dispostos a ouvir e a ajudar: sofreriam pressões de Jaime Netto e de outro treinador, Inaldo Justino de Sena, para que experimentassem a EPO, “sem contra-indicações”. O escândalo detonou Jaime Netto e os cinco velocistas mas, principalmente, destruiu o sonho de Jorge Queiroz, dono da Rede Energia. Queiroz havia perdido um filho para as drogas e, por isso, construíra o CNDA para afastar jovens do perigo desesperante do vício. O doping custou o fim da equipe da Rede. Jorge Queiroz acabaria por falir.
De novo, é óbvio e é evidente que o pior criminoso tem o humano direito de, cumprida a sua sentença, refazer a sua vida. Em 2012, o CREF, Conselho Regional de Educação Física, suspendeu Jaime Netto por quatro anos. A pena, de todo modo, não o impediu de permanecer na UNESP, em outro departamento, o da Fisioterapia. Embora banido do Atletismo, recorreu à Corte Arbitral do Esporte, CAS, na Suíça, que reduziu a pena a quatro anos. Aposentou-se como professor mas, em Presidente Prudente/SP, ainda que discreto, seguiu conectado à modalidade. Agora, dá a sua volta por cima.
Pena que seu retorno as ribaltas ocorra num cenário de dúvidas imensas, em meio a uma polêmica desnecessária e com o sacrifício de um companheiro de lutas, Nakaya, um grande velocista nos anos 70 e 80, inclusive finalista dos Jogos de Moscou/1980 e de Los Angeles/1984 com o Revezamento 4X100. A história de Nakaya, impoluta, merecia respeito integral. Desde Março de 2018 sob a presidência de Warlindo de Souza Filho, que assumiu o lugar depois da renúncia de Toninho Fernandes, acuado por denúncias de irregularidades de gestão, a CBAt bem poderia ter se poupado dessa situação agora nebulosa.
Alberto Murray Neto, o presidente do Conselho de Ética do COB, não economiza palavras na sua crítica. Observa que a seleção promovida pela CBAt “pode ter contornos de legalidade, mas é imoral”, além de representar “uma injustiça sem tamanho com pessoas muito competentes e honestas que se dedicam com sucesso ao seu ofício.” Ele se refere, claro, a Katsuhico Nakaya. “É prestigiar o ruim em detrimento do bom, inverter valores. A meritocracia não se faz preenchendo formulários (mas) se observa no comportamento reiterado da pessoa ao longo do tempo.” Pois eu assino em baixo da declaração de Murray, referendo e dou fé, Sílvio Lancellotti.
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