Sarri, no comando da Juventus, o treinador das manias divertidas
Supersticioso, não sai do lugar quando vê um gato preto, não usa gravata em campo, mas promete fazer da "Senhora" a vencedora da Champions
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Na Copa de 94, nos Estados Unidos, numa das inúmeras sessões de treinamento da seleção da Itália, que me cabia cobrir para a “Folha de S. Paulo”, resolvi contar quantas trancinhas havia no rabo-de-cavalo de Roberto Baggio, o apelidado “Codino”. O Roby me olhou, um tanto irônico, e desferiu: “Não precisa, são dezoito!” Eram dezessete, eu jurei. Com a ajuda de mais um punhado de pessoas, eu recontei, três, quatro vezes, até garantir: “Dezessete”. O Roby empalideceu: “Dezessete dá azar!” E, na correria, como um "fùlmine", se refugiou no vestiário da concentração da “Azzurra” para que alguém lhe reconstruísse o “Codino” com as dezoito trancinhas.
De fato, desconheço um povo mais supersticioso, ou mais “scaramantico”, como o da terra dos meus ancestrais. No Futebol, dou os exemplos que testemunhei. Na função de presidente da Juventus, Giampiero Boniperti abandonava a tribuna do estádio no intervalo e, sozinho em seu carro, escutava o segundo tempo de cada prélio da “Signora”. O treinador Giovanni Trapattoni espalhava água benta, nos vestiários, de modo a afugentar os maus espíritos. Ciccio Causio, ao estacionar a sua “macchina”, batucava quatro vezes na direção e também quatro vezes lhe dizia “Ciao”. A manha de Boniperti, que acaba de completar 91 anos, deve ser mesmo poderosa. Como atleta, de 1940 a 1960, ele acumulou 5 “scudetto” e 3 títulos da Copa Itália. Daí, em menos anos como o cartola-mór do clube, de 1971 a 1990, amealhou 9 “scudetto”, 3 vezes a Copa, mais uma vez a Champions League, uma vez a Copa das Copas da UEFA, 2 a Copa UEFA e a Intercontinental de 1985.
Ora na torcida e ora na reportagem, no entanto, em seis décadas de acompanhamento do Calcio da Bota, eu juro que não conheci um ser tão radicalmente obsessivo como Maurizio Sarri, novo treinador da “Vecchia Signora” de Turim. Um napolitano de 10 de Janeiro de 1959, filho de um casal de operários, disputou peladas na infância e na adolescência, mas se tornou um funcionário em diversas agências do Banco da Toscana. Começou a se aventurar no ofício de treinador em 1990, numa equipe do mínimo vilarejo de Stia, nem 3.000 habitantes, vizinho a Arezzo, onde a sua família tinha se alojado. Continuou a brincar de “mister”, bem sucedido, em outras cinco agremiações incipientes, quando, em 1999, nos diletantes do Tegoleto, passou a disputar um campeonato mais sério, 96 times, e mereceu um salário que lhe permitiu abandonar o banco. Frase com que mais tarde se justificaria, aos risos: “Eles não sabiam. Porém, eu continuaria a trabalhar de graça”.
Paulatinamente edificou o seu currículo em equipes que até já tinham participações anteriores na Série A, como o Pescara, o Avellino, o Verona, o Perugia. E, entre 2012 e 2015, transformou o Empoli num contendor a ponto de atrair o olhar de Aurelio de Laurentiis, o dono do Napoli. Sarri fulgurou na Terra da Pizza até 2018 com dois vices, atrás apenas da insuperável Juventus. Armou um elenco tão fiel e tão afetuoso que inclusive se opôs à sua partida rumo à Inglaterra e ao Chelsea de Londres. Na capital de Sua Majestade, na temporada de 2018/19, estacionou no terceiro posto da Premier League mas arrebatou o troféu da Europa League ao detonar, na decisão, precisamente, o seu rivalíssimo de cidade, o Arsenal, pelo placar solene de 4 X 1.
Nada fácil, todavia, para um napolitano “scaramantico” e obsessivo, conviver com um patrão maníaco e autoritário como o russo-israelense Roman Abramovic. E Sarri não hesitou quando recebeu da “Signora”, que havia cortado o seu relacionamento com Massimiliano Allegri, a meiga proposta de um valor equivalente a R$ 30 mi líquidos por ano, muito superior aos R$ 25 mi que levava do Chelsea e infinitamente superior ao nada por que, havia afirmado em 99, toparia tocar o Tegoleto. Casado com Marina faz 26 anos, tem um filho, Nicolè, isso mesmo, Nicolè, com o acento grave no e final do nome. Nesse caso, não se trata de uma estranheza mas de uma homenagem a um jogador do passado, Bruno Nicolè, ídolo do seu papai Amerigo e, acredite se quiser, craque da Juve entre 1959 e 1963. Pois é, o “babbo” de Maurizio também era um fanático pela “Velha Senhora” de Turim.
Leitor de autores cáusticos como o transgressor Charles Bukowski (1920-1983) e o seu inspirador John Fante (1909-1983), ao contrário de tuiteiros fanáticos como Allegri, detesta as chamadas “redes sociais”. Redige suas cartas à mão, com caneta tinteiro ou hidrográfica de cores não triviais. Problemas de fornecimento? Nada. Seu filho Nicolè é o proprietário de uma distribuidora de materiais de escritório, localizada em Matassino, um subúrbio da Grande Florença, famoso por abrigar indústrias de base como a quase falida Solava, que ressuscitou após vender 50.000 artefatos de cerâmica para o seriado “Breaking Bad”, um sucesso mundial de 2008 a 2013. Aliás, o novo treinador da Juve é um fumante desenfreado. Quando não burla a proibição de consumir cigarros, mesmo no banco de reservas e em plena peleja, ou mastiga filtros usados ou paga multas de até R$ 90 mil ao ser flagrado por uma câmera de TV. Ele queima o absurdo de 60 cigarros ao dia.
Diz que se atrelou ao vício nos tempos de Stia, quando ia de Arezzo ao vilarejo por uma estrada terrível, repleta de curvas perigosas: “Acendia um a cada vez que superava um ziguezague. Me dava sorte”. Adorava as camisetas pretas. Mas sempre teve medo dos gatos negros. Também conta por quê se atrasou para uma partida em Craviglia, outra cidade da Toscana, esta com 8.000 habitantes, num tempo em que coordenou o time local, de 1993 a 1996: “Um bichano atravessou a estrada à minha frente. Eu não me movi antes que um outro carro passasse incólume”. Certa ocasião, em Monte de San Savino, também perto de 8.000 viventes, como treinador do Sansovino, esbarrou na BMW de um pupilo, descendente de família nobre e datada do Século XVI. Ganhou por goleada. Pois a cada nova partida Sarri não titubeava e abalroava a BMW na certeza de que o Sansovino voltaria a resplandecer.
Folclórico, para os amadores e para clubes de exigência meramente local. Como se portará Maurizio Sarri, porém, diante dos 950.000 habitantes de Turim, uma metrópole que se orgulha dos seus quase 18 quilômetros de calçadas cobertas desde o Século XVIII? Como se portará ele no comando de uma esquadra insolitamente octocampeã da Bota? Nas gestões de Antonio Conte (2011/14) e Allegri (2014/19), em 304 cotejos, de 912 pontos disponíveis a “Zebra” conquistou 728 (79,8%); acumulou 225 triunfos, com 52 empates e 27 derrotas (só 3,38 por temporada). O seu ataque produziu 591 tentos (1,94 por contenda), a sua defesa permitiu meros 194 (0,64). Sim, extraordinário.
Conte e Allegri apreciavam alternar o 4-5-1, o 4-4-2 e o 4-3-3, na dependência do estilo do seu adversário. Sarri, todavia, desenvolveu o seu próprio formato de jogo, um processo que constantemente se modifica no decorrer de uma mesma porfia, a pressão constante no rival, a luta sem trégua pela posse da bola, dois alas potentes no apoio e um abuso na quantidade e na velocidade dos toques que os cronistas franceses de “L’Equipe” apelidaram de “tiki-taka vertical”, uma espécie de anteposição à lateralidade de Pep Guardiola no Barcelona. Curiosamente, os “tifosi” do Napoli preferiam acreditar que o seu então ídolo havia inventado um método inédito, originalíssimo na História do Futebol, batizado d Sarrismo, um termo inclusive agregado como um neologismo na ilustre Enciclopédia Trecanni, que é publicada desde 1925.
O Sarrismo, para tais “tifosi”, não propunha significado apenas no Calcio. Também oferecia uma faceta política, ideológica. Num momento em que a Itália aceitava, e de novo, quase como intenção de governo, a antiga divisão Norte/Pomposo X Sul/Humilde, além de um treinador de coração meridional, além de idolatrado na Terra da Pizza ele representava o anti-sistema. Portais da Web e grupos do Facebook o elevavam à condição de “comandante”, um Che Guevara da orla do Vesúvio. Bastou, no entanto, Sarri se identificar com a aristocrática Turim para que a paixão se esgotasse e um manifesto anti-Sarri eclodisse, raivoso: “O treinador prevaleceu sobre o homem e matou o comandante. Se ele atraiçoou alguém, foi a si mesmo”.
Eternamente contido e discreto, Sarri se recusa a emitir a menor crítica aos seus agora ex-idólatras. Prefere falar sobre a Juventus que herdou: “Quem, neste planeta, não gostaria de ter um Cristiano Ronaldo no seu elenco”. Já manifestou a sua euforia pelo retorno de Gigi Buffon ao lar alvinegro: “O bom filho do provérbio será utilíssimo como um líder nos vestiários”. Também aplaudiu Fabio Paratici, o Diretor Esportivo do clube, pelas aquisições do jovem ala Luca Pellegrini (da Roma), do promissor central Merih Demyral (turco do Sassuolo), dos volantes Aaron Ramsey (galês do Arsenal) e do armador Adrien Rabiot (francês do PSG). E ainda sonha, enfaticamente, com as prováveis contratações de Matthijs DeLigt, super beque do Ajax da Holanda, e de Paul Pogba, francês que já passou pela Juve e se despede do Manchester United. Sarri encerra o papo com uma notificação petulante: “Eu quero a taça da Champions League. É o meu objetivo.”
Na sua primeira ação oficial de impacto como o “mister” da Juve, num jatinho particular, sábado, 6 de Julho, Sarri levou Paratici até Cannes, na Cote d’Azur da França, para uma visita de surpresa a um Cristiano Ronaldo ainda em férias. Descreveu seus planos de liberar o CR7 para que jogue como preferir, sem a responsabilidade da marcação e com o máximo de liberdade para finalizar. Fantasia que o lusitano sobrepuje o recorde de artilharia que, nesta era moderna do Calcio, inaugurada em 1929/30, o argentino Gonzalo Higuaín estabeleceu via Napoli, 36 gols, quando era seu um atleta na “stagione” de 2016. Sarri, um crucial pregador da lealdade, promete corpo e alma em favor da “Zebra” e da consolidação do seu sonho com a CL. Ao discutir seu contrato, porém, não dispensou uma cláusula bizarra: não se incomoda em usar o terno e a gravata que, fora dos gramados, definem a elegância da “Signora”. Só que, dentro do campo, "sicuramente", escolherá ele mesmo o que vestir.
PS: Mais um velho companheiro que se vai, Paulo Henrique Amorim, o Paco nas redações por que passamos, desde a "Veja" original em 1968. Fez de tudo na carreira. Menos perder a dignidade e o caráter. Faz pouquíssimo tempo que, entre muitas recordações e gargalhadas, compartilhamos uma gorda macarronada no Olea Mozzarella Bar cá de São Paulo de Onorato Florentino, outro amigão que não se esquecerá do gentleman que veio do Rio.
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