Por mais de oito décadas, desde a Copa do Itália/1934, a sua primeira em toda a longa História do Futebol, a seleção da Suíça ganhou uma fama ruim por dedicar o seu estilo ao “Verrou” (em francês), ao “Riegel” (no alemão), ou no “Catenaccio” (em italiano). Na tradução elementar, um “Cadeado”, um “Ferrolho”. Sumariamente, uma solene e implacável retranca. Criação do austríaco Karl Rappan (1905-1996), o treinador da Suíça de 1937 até 1963, o “Ferrolho” se baseava numa linha de beques protegidos por um líbero – naquela época, exclusivamente, com as funções de defender, uma obrigação que o craque alemão Franz Beckenbauer re-codificou nos meados dos anos 60. Não foi na retranca, porém, que uma seleção da Suíça acaba de complicar a Itália nas Eliminatórias do Catar/2022.
A Suíça de Rappan não brilhava. Meramente impedia os seus adversários de jogar decentemente. Eram muito feias as suas pelejas. Só eventualmente surgia um gol. De todo modo, graças à retranca e aos tentos de contra-ofensiva e em situações de bola parada, a “Nati”, a equipe helvética, eliminou a Alemanha na Copa da França/38 e a Itália na edição que hospedou em 1954. Apenas a partir dos anos 90 o cenário se transformaria. Então, com a abertura das fronteiras internas das nações da EU, a União Européia, mais a tolerância com a imigração e ainda as tradicionais facilidades que o regime financeiro da Suíça propicia ao dinheiro lá investido, a sua federação, a denominada “Schweizerischer Fussballverband”, permitiu que os clubes se reforçassem com inúmeros atletas importados de outras plagas. Hoje, ironia, a “Nati”, diminutivo de “Nationalmannschaft”, a seleção nacional, é, curiosamente, a mais internacionalizada do planeta ludopédico.
O processo de estrangeirização começou no banco, pelo argentino Enzo Trossero, seu treinador de 2000 a 2001. Depois, se aprimorou com um único nativo, Kobi Kuhn, de 2001 até 2008, falecido em 2019. Em seguida, com o alemão Ottmar Hitzfeld (2008/2014), o bósnio Vladimir Petkovic (2014/2021) e o atual “manager”, o turco Murat Yakin. Tanto Petkovic como Yakin, aliás, são helvéticos por naturalização. Em tal percurso, a Suíça conseguiu um milagraço: embora eliminada pela Ucrânia nos penais, nas oitavas de final, terminou invicta a Copa da Alemanha/2006 e sem ceder um único tento no tempo regular, Na África do Sul/2010, bateu a Espanha, a futura campeã, e manteve a sua meta incólume até perder do Chile, 1 X 0. Já havia, no entanto, acumulado um magnífico recorde para as antologias da competição, preciosos 558 minutos sem sofrer um golzinho sequer.
Paralelamente, paulatinamente, ao menos nos palcos continentais da UEFA, a Suíça se provou capaz de lutar por títulos. Em 2018/2019, na primeira edição da Nations League, a disputa que a entidade inventou como alternativa da sua Eurocopa, chegou às semifinais, perdeu de Portugal, que seria o campeão, 1 X 3, e só ficou sem o bronze, diante da Inglaterra, na loteria dos penais. Então, nas oitavas da Euro/2020, 1 X 3 atrás da França, ganhadora da Copa da Rússia/2018, virou o placar, 3 X 3 e nos penais seguiu às quartas. Saiu atrás da Espanha, 0 X 1, empatou a peleja e levou o desafio à prorrogação, quando desperdiçou duas possibilidades claras de sucesso. Desafortunada, fracassou nos penais.
Impressiona absurdamente a escalação do time com que Murat Yakin, em detrimento da Itália favorita, abiscoitou a sua vaga à Copa de 2022. Funcionou bem a retranca, a Suíça não perdeu nenhum dos oito cotejos do Grupo C, a sua retaguarda sofreu apenas dois tentos. A sua ofensiva, no entanto, registrou 15, um ostensivo sintoma de mudança de padrão pelo reforço das novas opções de convocação. Detalhe significativo: de seus onze titulares da partida decisiva contra a Bulgária, 4 X 0, aquela da qualificação ao Catar, seis, a maioria, têm as suas origens no Exterior. O lateral Kevin Mbatu e o volante Denis Zakaria, na República Democrática do Congo. O meia e capitão Xherdan Shaqiri, no Kosovo. E os atacantes Mario Gavranovich, Rúben Vargas e Noah Okafor, respectivamente, se orgulham de suas raízes bósnio-croatas, dominicanas e nigerianas. Enfim, um coquetel de fato “globetrotter”.
E também dentre os reservas transbordam aqueles não-helvéticos. O defensor Manuel Akanji, de pai da Nigéria. Bryan Okoh, seu colega de posição, idem, e nasceu nos Estados Unidos. O central Ulisses Garcia, caboverdiano, nasceu em Portugal. O apoiador Djibril Sow tem sangue senegalês. O meia Kastriot Imeri e o avante Andi Zeqiri, como o capitão Shaqiri, poderiam atuar por Kosovo: as suas famílias fugiram juntas dos conflitos balcânicos dos anos 90. O ala Ricardo Rodriguez é filho de um espanhol com uma chilena. Outro ala, Sebastiano Esposito, provém das vizinhanças de Nápoles. E o central Eray Comert, da Turquia do treinador Yakin. Complementa essa ONU o seu Supervisor Técnico, Pieluigi Tami, italiano. Detalhe derradeiro: de todos os 22 atletas que o treinador mobilizou nas Eliminatórias, somente oito atuam em clubes da Suíça. A grande ironia: foi a “Azzurra”, já nos anos 30, a primeira seleção a usar, extensivamente, os atletas não nativos.
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