O ouro do Futebol de Cinco vale pelo que foi surrupiado no Peso
Brasil pentacampeão no Esporte em que só o arqueiro consegue enxergar. E, apesar da medalha revogada de Thiago Paulino, uma jornada felicíssima para Atletismo, para Canoagem e Taekwondo
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Sabe-se lá por quê, na manhãzinha de sábado, dia 4 de Setembro de 2021, ainda na noite do dia 3 por aqui, os cartolas do International Paralympíc Comitee, ou IPC, revisaram o resultado da prova do Arremesso de Peso e invalidaram as marcas que teriam assegurado um ouro a Thiago Paulino dos Santos, acima dos 15m00 do chinês Wu Guoshan, Por tal decisão, inentendível, Thiago ficou com 14m77, Wu Guoshan assumiu o topo do pódio e um outro brasileiro, Marco Aurélio Lima Borges, que havia registrado 14m85, herdou a medalha de prata. Como a ginástica administrativa do IPC pressupunha apelação, o troca-troca no pódio do Peso bagunçou a lista de lauréis arrebatados pelo Atletismo do Brasil em Tóquio/2020, e, bem pior, também a própria tabela de prêmios da competição.
Os doutos senhores do IPC demoraram quase 12 horas para oficializar tão insólita, inusitada atitude, e formular a alegação de que o brasileiro, um amputado da perna esquerda abaixo do joelho, tinha se mexido de maneira irregular na sua cadeira de apoio e sustentação. No pódio, enquanto Guoshan, constrangidíssimo, mal pendurava a maravilha que seria de Thiago, e o brasileiro, aos gestos, batia no peito, fazia um sinal de “Número 1” e cerrava o punho no clássico protesto dos afro-descendentes, o seu “Esporte Base” ultrapassava a Natação e se consagrava como o mais galardoado do País nestes Jogos. Com a melhor performance da sua história a Natação fechara a sua participação com 23 medalhas, ou oito de ouro, cinco de prata e dez de bronze. Mesmo com a transformação do ouro de Thiago em bronze, e com a promoção a prata do bronze de Borges, o Atletismo somava já 22 (8-6-8). E acabaria o sábado euforicamente com 27 (8-8-11)
Sonhar, porém, não machuca e nem dói. Nos 200m T37 para deficientes físicos, com dois velocistas na decisão, o Atletismo levou o nono bronze. Paralisado cerebral sem um diagnóstico exato, de comprometimento só detectado na sua infância, Christian Gabriel Luís da Costa, 19 anos, um paulista de Sertãozinho, foi o oitavo, 23”42. Porém, Ricardo Gomes de Mendonça, de 31, um fluminense de Natividade, mesmo longe do novo recorde mundial, os 21”99 de Nick Mayhug, dos EUA, marcou 22”62, o seu primado pessoal. Em 2014 Ricardo tinha se lesionado em um acidente incrível, uma escada que desabou sobre seu corpo e prejudicou os seus movimentos no lado direito, dolorosas sequelas no braço e na perna. E mais seis atletas do País poderiam ampliar esse butim.
Aconteceria na segunda metade da jornada do Atletismo, noite por lá e amanhecer no Ocidente. E principiaria com duas garotas numa única prova. E principiaria com uma chegada inacreditável, a chinesa Liu Cuiqing e a potiguar Thalita Simplício, na prova dos 200m da categoria T11, deficientes visuais, exatamente com o mesmíssmo tempo de 24”94. Os fiscais se obrigaram a recorrer ao detalhe da foto e dos milésimos, Cuiqing com 936, Thalita com 940. De novo, como já havia ocorrido nos 400m, o guia Xu Donglin acelerou à frente de Cuiquing, bem ao contrário de Felipe Veloso da Silva, que conduziu Thalita dentro da ética e dentro das regras. A acreana Jerusa Geber dos Santos, de Rio Branco, com Gabriel Aparecido na guia, levou o bronze, 25”19. Ambas compensaram o infortúnio dos 100m, quando as indispensáveis fitas de conexão se romperam.
A derradeira prova de pista do evento também exibiu um par de atletas, dois rapazes, os 400m T47 para deficientes físicos. Normalmente favorito a escalar o topo do pódio, Petrúcio Ferreira dos Santos, o paraibano de São José do Brejo da Cruz que perdeu parte do braço esquerdo numa máquina de moer capim, já tinha vencido os 100m, mas se ressentiu de uma lesão de coxa. Mesmo com dores, se esmerou o bastante para ficar com o bronze, 48”04. No entanto, o garoto Thomaz Ruan de Moraes, paulista de Jundiaí, de apenas 20 anos completados em 8 de Agosto, que nasceu com uma má-formação no seu braço direito, assumiu o lugar do ídolo na luta pelo ouro. Com 47”87, Thomaz quebrou o recorde sul-americano, que pertencia a Petrúcio. Só não ganhou a prova porque o avassalador marroquino Ayoub Sadni, com 47”38, quebrou o recorde mundial.
A Canoagem já havia propiciado uma prata, no Caiaque, com um piauiense de Picos, 36 anos, Luís Carlos Cardoso da Silva, classe KL1, para quem usa apenas os braços na remada. Num barco do mesmo tipo, mas numa categoria diferente, a KL2, para quem usa os braços mas consegue movimentar o tronco, Fernando Rufino de Paulo, de 36 de idade, também, arrematou o ouro. Sul-matogrossense de Itaquiraí, Fernando queria mesmo ganhar a sua vida como peão de rodeio. Fantasiava corcovear no lombo de um touro bravio. Em 2005, no entanto, ao descer de um ônibus ainda em movimento, caiu debaixo das rodas, foi atropelado e perdeu parcialmente o movimento das suas pernas. Encerrada a sua fantasia de ser peão, acabou por optar pela Canoagem. Certamente não se arrependerá.
Absolutamente espetacular no seu comportamento geral, a Canoagem, aliás, se sobressairia ainda mais em Tóquio. Uma medalha de prata na categoria VL3, que abriga um outro tipo do barco, o VA’a, de origem no Pacífico, nas ilhas dos povos Maori. Além do casco, tem uma espécie de esqui ao lado. O atleta rema entre o casco e o esqui. E Giovane Vieira de Paula , 27 anos, de Apucarana/PR, se apaixonou pelo Va’A, graças ao então marido da sua mãe de adoção, depois que, aos 11 de idade, ao voltar para a sua casa depois da escola, foi atropelado por um trem e teve a perna esquerda amputada acima do joelho. A generosidade do homem, que logo se separou da esposa, estimulou Giovane a reagir e a procurar um esporte. O seu tempo, 52”148 ficou, apenas 1,611 longe do ouro.
Restava, no penúltimo dia dos Jogos, o duelo pelo ouro na categoria +58kg do Taekwondo. Pena, a paulistana Débora Bezerra de Menezes, 31 anos, uma professora de Educação Físiva que nasceu com má-formação abaixo do cotovelo direito e competia no Lançamento do Dardo, por 8 X 4 perdeu de Guljonoy Naimova, do Uzbequistão. E faltavam três disputas de medalha em esportes coletivos. No Vôlei Sentado, duas batalhas pelo bronze. As mulheres, terceira colocação no Rio/2016, diante do Canadá. Os homens, contra a Bósnia-Herzegovina. No Vôlei Sentado, de times de seis atletas, como no convencional, os elencos mesclam deficientes físicos de diferentes condições, de amputados de perna a amputados de dedos. Mesmo os que conseguem andar, de todo modo, não podem se levantar do chão, a não ser em eventuais deslocamentos. Os rapazes saíram à frente, 25-23, mas perderam três sets em sequência, 19-25, 18-25 e 11-25. As garotas abriram a contagem, 25-15, cederam o segundo set, 24-26, porém não mais fraquejaram, 26-24 e 25-14.
Aconteceria, ainda, a grande decisão do ouro no Futebol de Cinco para deficientes visuais – apenas o arqueiro tem a acuidade total mas precisa estar afastado dos certames regulares da FIFA por ao menos cinco anos. Joga-se em uma quadra semelhante à do Futsal, com cercas nas duas laterais, que funcionam como tabelas. Os quatro atletas de linha usam vendas especiais e não podem tocá-las sob pena de cometerem uma infração, cobrada sem barreira. Um guizo, embutido na bola, sugere a sua localização, E um guia, o “chamador”, fica atrás da meta do adversário e, pela fala ou graças a um apetrecho com o qual bate nos dois postes da trave, orienta o posicionamento dos chutes. Incluído no menu dos Paralímpicos desde Atenas/2004, o Futebol de Cinco apenas havia conhecido desde então um campeão – o Brasil. Na decisão de Tóquio, pegaria uma rival eterna, a Argentina, sua mesma adversária de 2004, sobrepujada nos penais por 3 X 2. E o combate de agora parecia se encaminhar à mesma loteria, empate de 0 X 0, quando, a 7’ do final, o pivô Raimundo Nonato Mendes, pernambucano de Orocó, 34 de idade, realizou um tento que seria sensacional mesmo para um jogador de visão perfeita. Dominou a pelota pouco além da linha divisória, imparavelmente se infiltrou no meio de dois becões platinos e desferiu um petardo, de esquerda, no canto oposto do arqueiro. Brasil de ouro, Brasil penta.
O resumo do Brasil: 71 medalhas, com 22 de ouro, 19 de prata e 30 de bronze. Batido o recorde de 21 de ouro de Londres/2012. No total, uma menos do que as 72 que o País conquistou em casa, no Rio/2016. E agora, neste domingo, dia 5 de Setembro de 2021, data da festa de encerramento dos Jogos de Tóquio/2020, ainda se desenrolarão as duas versões da Maratona, para deficientes físicos, homens e damas, e para deficientes visuais, rapazes e moças, que percorrem os 40 quilômetros e tanto com os seus guias respectivos.
Gostou? Clique num dos ícones do topo para “Compartilhar”, ou “Twittar”, ou deixe a sua opinião no meu “FaceBook”. Caso saia de casa, seja cauteloso e seja solidário, use máscara, por favor. E fique com o abraço virtual do Sílvio Lancellotti! Obrigadíssimo!
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.