Memórias da Copa 9: de 74 até 82, sobrou o lindo agasalho do Zico
Um presente do "Galinho" me compensou pelo insucesso da preciosa seleção de Telê Santana na Espanha. E também foi um consolo a bandeira da Itália, autografada pelo time da campeã
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
São impiedosamente nulas as minhas lembranças das competições da Alemanha/74 e da Argentina/78. Isso, de todo modo, por razões aleatórias. Entre 1972 e 1973, eu passei um gostoso período sabático de estudo na Universidade de Stanford, na Califórnia, e também acompanhei, como correspondente de “Veja” nos EUA, as eleições norte-americanas que reconduziram Richard Nixon à Casa Branca, mais todo o seu envolvimento calamitoso no “Escândalo Watergate”. Ao retornar ao Brasil e ao semanário, em 1974, assumi a pilotagem da área de “Artes & Espetáculos” e me afastei do Futebol. Então, em 1978, como secretário-de-redação da “IstoÉ”, ausentes o diretor Mino Carta, na Itália, e Tão Gomes Pinto, seu sub, em Buenos Aires, me dediquei aos fechamentos da revista. A Copa/78 virou detalhe.
Bem diferente da “Veja”, que dispunha de grana e de um robusto elenco de repórteres, a “IstoÉ” se esmerava em uma abordagem conceitual, apoiada num estilo que se denominou, naquela época, de “pensata”. À parte os textos admiráveis que o Tão nos remetia, e com a escolta preciosa do Clóvis Rossi, que era o “Grandão” ao triplo, na altura, no caráter e na competência profissional, consegui coletar uma série de artigos de cientistas sociais e/ou políticos que analisavam as relações eventuais entre Esporte e Ditadura. Por aqui, uma quase na agonia. Por lá, outra em pleno apogeu, com o governo do General Jorge Videla e seus múltiplos cúmplices civis e militares a se locupletarem, escancaradamente, dos sucessos da seleção “Albiceleste”. Ironia: Videla acabaria condenado à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade. De diferente em 74/78 valeu a escultura da nova Taça Fifa, na substituição da clássica Jules Rimet que o Brasil havia arrebatado de vez em 70.
Meros três anos depois, todavia, a minha perspectiva se alterou. Em 1981 eu tinha me transformado em responsável pelo setor de “Projetos Especiais” da empresa publicadora da “IstoÉ”, que então necessitava de um salto na sua tiragem e na sua venda de assinaturas. Da inventividade brilhante do Armando Salem, velho amigo, o factótum da empresa, brotou a ideia providencial de uma coleção de fascículos com a História dos Mundiais. Eu já dispunha, em casa, de uma vastíssima bibliografia, Também pude contar com o apoio de Mauro Pinheiro, um comentarista de rádio e TV que me escancarou as suas prateleiras; do Eduardo, além de meu filho o cuidador de meus arquivos domésticos; e do pesquisador Rubens Tavares Aidar, pioneiro no vasculhamento de informações no Futebol europeu.
Sem vanglória, assevero que fizemos um trabalho digno de premiações. Havia de tudo naquela série. Da infância do jogo de bola, do alvorecer da FIFA e da concepção da Copa do Mundo ao desenvolvimento dos sistemas táticos. Edições do Uruguai/30 à Argentina/78. Mais um passeio pela antologia do Futebol no País, do seu time inaugural até o elenco de Telê Santana, o treinador da seleção que iria à Espanha. E ainda exibimos o trajeto das 22 nações classificadas para 82, mais a Argentina detentora da taça e a anfitriã. Uma história do Ludopédio nas 24 e ainda os seus campeonatos locais e a lista dos seus ganhadores e a relação dos seus convocáveis. Tudo muito bem enriquecido por fotos e por grafismos.
Funcionou afortunadamente a ideia dos fascículos, de fato essenciais na disparada das vendas em bancas e de assinaturas da “Istoè”. Telê, inclusive, compareceu ao evento de lançamento na Churrascaria Rodeio. Concedeu uma entrevista a mim e ao Alberto Helena Jr., no “Show da Noite” da Record. Até pediu que passasse a municiá-lo com o máximo de informações a respeito dos adversários eventuais da seleção. Já na sua bagagem rumo à Espanha carregou consigo um catatau de dados sobre os três rivais da etapa de grupos, a União Soviética, a Escócia e a Nova Zelândia. E logo depois, na etapa subsequente, eu lhe transmiti um novo batalhão de infos sobre a Argentina e a Itália, adversárias futuras.
Até a data fatídica de 5 de Julho, quando a “Azzurra” de Enzo Bearzot, no Sarriá de Barcelona, bateu a seleção de Telê, 3 X 2, a “Canarinho” do mineiro de Itabirito havia despachado todos os seus inimigos, sempre, de maneira vistosa, 13 tentos a favor e 3 contra. Do outro lado, mal e porcamente, a Itália tinha se qualificado em sua chave: 3 igualdades, 2 tentos a favor e 2 contra, escassos 3 pontinhos como Camarões, só que o representante africano registrara um reles golzinho e se despedira invicto. Na etapa seguinte, contra a Argentina, o Brasil fizera 3 X 1. A Itália fizera 2 X 1. Pelo mesmo critério dos gols, a Telê bastaria um empate contra Bearzot para se promover à semifinal.
Acredite quem quiser. Porém, ao invés de confiar apenas nos “scouts” da sua própria delegação, Telê me telefonou da Espanha, à cata de novidades da “Azzurra”. Com meu tato viável, eu não titubeei e lhe sugeri que substituísse o elegante zagueiro Luizinho, do Atlético/MG, por Edinho, um mastim já destinado à Udinese da Bota. O argumento: ao contrário do estilista Luizinho, Edinho se comportaria como um marcador de choque. E Telê rebateu, irritado, e até áspero: “Lancellotti, e desde quando você vê os jogos do Brasil? Pois saiba você que, desde aquela partida com o Eire o Luizinho não faz uma falta!” Impossível debater contra esse tipo de fé. A seleção de Telê havia enfrentado o Eire em Uberlândia, em 27 de Maio, no seu último amistoso antes da Europa. De fato, um tempão atrás. Eu ainda insinuei, porém, que na Azzurra” aparentemente em crise só faltava Paolo Rossi explodir como o artilheiro que era. Pena. Telê me ironizou e desprezou a sua própria solicitação.
Não foi Toninho Cerezo o culpado integral pela derrota do Sarriá. Examine os teipes dos três tentos do Pablito. No primeiro, Antonio Cabrini cruza precisamente sobre o cocuruto de Luizinho, que nem se move enquanto Rossi chispa às suas costas e fulmina, de testa. No segundo, vá lá, Cerezo comete o erro de um fraldinha e ousa um passe horizontal, paralelo à linha da área. Sim, a bola atraiçoa o atrasado Falcão mas, ao invés de uma dividida, Luizinho tenta um carrinho ridículo e permite que Rossi arremate. No terceiro, sim, Cerezo produz um escanteio infantil. O levantamento, porém, na ida e na rebatida, de novo viaja acima de Luizinho, que nem se mexe para impedir que Pablito desfira o seu chute fatal.
Obviamente eu não me considero o patriarca da verdade e nem ousarei asseverar que, com Edinho, talvez o Brasil não sucumbisse à Itália no Sarriá. Contudo, especulo. No primeiro gol, mais adequado ao estilo de bolas alçadas do Calcio, seguramente Edinho teria saltado e, no mínimo, roçado na pelota levantada por Cabrini. No segundo, ora, uma simples cutucada de dedo serviria para desequilibrar o atacante. No terceiro, com certeza, Edinho teria pulado etcetera etcetera etcetera. Telê costumava afirmar: “Se for pra mandar o meu time matar a jogada ou dar pontapé no adversário eu prefiro perder o jogo”. Pois o seu delicioso esquadrão tristemente tombou justo a milímetros da esquina da glória.
Confesso que eu me frustrei amargamente pelo fracasso daquela geração magnífica, mas também porque o meu álbum de fascículos não se completaria com o exemplar celebrativo da conquista da taça pelo Brasil. Ainda bem que ganhei do Zico, com a devida dedicatória, um lindo abrigo da seleção. E me consoliei com um maravilhoso presente que me propiciou um saudosíssimo irmão de vida, Leonardo Regazzoni, que viajou da Espanha à Bota no aeroplano da delegação da “Azzurra” e me obteve uma bandeira da Itália com os autógrafos de todos os atletas, membros da Comissão Técnica e até de Sandro Pertini, o carismástico Presidente da Itália que fascinou o planeta ao quebrar os protocolos na tribuna de honra do Santiago Bernabéu de Madrid, e ao torcer alegre e desbragadamente pela sua “Azzurra” enquanto, ao lado, o perplexo Rei Juan Carlos apenas admirava aquele "addio" à etiqueta.
PS: Este texto representa o esboço de mais um capítulo de uma tentativa de eu, ainda, completar a minha autobiografia; no mínimo, uma seleta de causos que vivi e/ou testemunhei. No próximo, falarei sobre minha estranha experiência de cobrir a Copa do México/86 à distância, no chamado “backup”, aqui do Brasil, com textos para a “Folha” e comentários de TV para a Band.
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