Memórias da Copa 7: quando eu ganhei a camisa do gol do "Corró"
Contra o Uruguai, nas semis do México/70, o (apenas) terceiro tento de Clodoaldo pela seleção do Brasil. Mas, seguramente, o mais importante, aos 44' da dificílima partida contra o Uruguai.
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Dia 10 de Junho de 1970. Manhã de calorama na cidade de Guadalajara. No refeitório do Clube Providência, José de Almeida, factótum da delegação do Brasil na Copa do México, supervisiona a montagem das mesonas em que o pessoal da Comissão Técnica e os atletas da seleção farão o seu desjejum. Por causa da peleja contra a Romênia, na fase de grupos, não aconteceria a tradicional “janela”, ou o franqueamento da concentração aos periodistas para os papos informais de datas sem jogo. Eu tinha um encontro pré-marcado no Clube, todavia. E, através das grades dos portões de metal eu examinava o interior e aguardava que lá despontasse o “Corró”, Clodoaldo Tavares de Santana, um sergipano de Itabaiana, aos 20 anos e já o indebatível número 5, o volante do Santos e da seleção de Zagallo.
Embora titularíssimo num meio-campo bem recheado de craques mais famosos como Gérson, Rivellino, Tostão e Pelé, o “Corró” era tímido, bastante discreto. E ninguém imaginava que desde antes, já na altitude de Guanajuato, dividia um trato comigo. Sabia que eu cuidava do malote aéreo da brigada da Editora Abril e que lá eu infiltrava as cartas de diversos integrantes da delegação. Namorado da Clery, garota de Santos com quem se casaria, lhe escrevia um batalhão de missivas. Pediu ajuda, me transformei no seu pombo-correio e o “Corró” me garantiu um presente: no caso de marcar um gol na Copa, ao invés de trocar sua camisa número 5 com um adversário, me daria como um “recuerdo”. Convenhamos, um trato unilateral. Até então, antes da Romênia, em 17 embates pela seleção, o “Corró” só havia anotado dois tentos, e em pelejas insignificantes: nos 8 X 2 contra um catadão de semi-profissionais do seu Sergipe, em Aracaju, em 9 de Julho de 1969; e nos 3 X 0 contra um mero combinado de Guadalajara, no dia 6 de Maio.
Não me aborreci, não, com aquela suposta desvantagem. Afinal, outros atletas de clubes paulistas, Leão, Zé Maria, Baldocchi e Ado, recorriam à minha ajuda. E muito mais. Carlos Alberto Torres, o “Capita”, ao perceber que minha máquina fotográfica era igual à que possuía, me passou a dele, para que eu pudesse clicá-lo em ação. E fique muito bem explicitado que eu topava tais funções por amizade, por solidariedade mas também, e principalmente, por um motivo acessório. Um dos calouros da mídia brasileira na Copa, dificilmente eu abiscoitava a oportunidade de uma exclusiva com os medalhões. E apoiar os não-celebrados me escancarava a probabilidade de informações muito além de triviais.
Pois naquela manhã, ao me entregar um pacotinho com as suas missivas, o “Corró” me revelou que time pegaria a Romênia. Era um fato público que, lesionados, Gérson e Rivellino não jogariam. Mas, de que modo o treinador Mário Zagallo armaria seu meio-campo sem ambos? Eu trabalhava para “Veja”, semanal, e antecipar a escalação não me valeria um furo de reportagem. No entanto, achei que me vangloriaria ao voltar ao Morales, para uma nova sessão de “queso e médio melón” etcetera, com a relação dos onze que nem os experientes Michel Laurence e José Maria de Aquino, e nem Aymoré Moreira, o campeão no Chile, em 62, visitante do Providência para a fisio na mão esmagada numa moenda do seu sítio de Taubaté, sequer fantasiavam. Confesso que me senti um totem.
Com a petulância de um jejuno repentinamente elevado ao altar das verdades, pontifiquei: “Félix, Carlos Alberto, Brito, Fontana, Everaldo, Piazza, Clodoaldo, Paulo César, Jairzinho, Tostão, Pelé. Desfalques sérios, o ‘Papagaio’ e o ‘Bigode’.” Só que o Aymoré, professoral, me ironizou: “Que é isso, garoto? Que outra seleção, nesta Copa, tem um reserva como o Paulo César? E que outra seleção tem Jairzinho, Tostão e Pelé?” De fato, o resultado de 3 X 2 não definiu o que foi a superioridade do Brasil contra a Romênia. O “Papagaio” e o “Bigode” retornariam diante do Peru, na fase das quartas-de-final, resultado de 4 X 2, também com tranquilidade. A consequência: na semi de 17 de Junho, o Brasil confrontaria o Uruguai.
Quase que exatamente três décadas depois, nos dias que antecederam o duelo do Jalisco, não se discutiu um outro assunto além do “Maracanazo” de 16 de Julho de 1950. A “Celeste” havia se qualificado em um grupo intrincado com a Itália, a Suécia e Israel. Depois, havia suplantado a União Soviética, nas quartas, graças a um gol do reserva Espárrago, na prorrogação, aos 117’. Não parecia ser um espantalho capaz de escantear Zagallo & Cia. da decisão. E no entanto, aos 19’, num lance bizarro de Cubilla, saiu à frente, 1 X 0. O Zé Maria, o Aymoré e eu nos olhamos e nos checamos. Sim, os três nas roupas de praxe. Então, num lampejo, eu me lembrei de um meu outro amuleto. Até mais determinante, talvez.
Ganhara do Pelé um maravilhoso distintivo de lapela em enamel azulado e mais um contorno em ouro, a celebrada efígie do “Rei” em plena bicicleta, flagrada numa foto de antologia por Alberto Ferreira do “Jornal do Brasil” – o Alberto, aliás, presente em Guadalajara. Eu podia mudar de camisa mas não abdicava do tal distintivo que pregava em meu colarinho. E, enorme susto, o Pelé desaparecera. Sim, precisava achá-lo depressa ou o Uruguai destruiria o Brasil. Procurei pelo chão, nas escadarias, nos corredores, no banheiro, até que repentinamente me estalou o eureka. Ao comprar refrigerante numa máquina vertical eu havia escorregado e caído no carpete. Corri até a máquina e, no carpete, achei o amuleto e me reacomodei em minha posição na tribuna. Rolavam os 42’ da etapa inicial.
Logo após, aos 44’, Everaldo empurrou a Clodoaldo que entregou a Tostão, quase encostado na lateral canhota do campo. Tostão se adiantou alguns passos e, de esquerda, devolveu ao “Corró” que invadia pelo miolo da defesa do Uruguai. Com o peito do pé, de destra, o rapaz sergipano que envergava a amarelinha que seria minha, decretou a paridade, 1 X 1. No segunda etapa, Jairzinho viraria aos 76’ e Rivellino triplicaria aos 89’. Pelé ainda desferiu um drible de corpo estupendo no arqueiro Mazurkiewicz mas colocou a bola a milímetros da meta. No galope, desci até os vestiários e na porta mesmo cruzei com o “Corró”, que me abraçou e me entregou o presente. Cujo eu vesti ainda molhado pelo suor. Mais um talismã, e um adicional, que me transmitiu a segurança de que o Brasil levaria, definitivamente, a preciosa Jules Rimet – e na minha primeira Copa como repórter.
PS: Este texto representa o esboço de mais um capítulo de uma tentativa de eu, ainda, completar a minha autobiografia; no mínimo, uma seleta de causos que vivi e/ou testemunhei. No próximo, falarei sobre a vigília da decisão na Cidade do México, a descoberta do restaurante La Pèrgola, a chuva que poderia ajudar a “Squadra Azzurra” e enfim o meu retorno atribulado ao Brasil.
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