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Memórias da Copa 5: na altitude absurda da velha Guanajuato

Outra época, outro Futebol, outro calendário, e a seleção de Mário Zagallo teve tempo e teve sossego para se preparar e conquistar o tri. Meu primeiro Mundial, que cobri graças a um jogo de palitinho.

Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti

A foto oficial da seleção de 70
A foto oficial da seleção de 70 A foto oficial da seleção de 70

Estava escrito que eu literalmente conquistaria num jogo boboca de palitinho o privilégio de cobrir ao vivo minha primeira Copa do Mundo, no México/70. Corria o mês de Abril, nome da editora para quem eu então trabalhava, na “Veja”, como editor-assistente. E fôra estabelecido que a semanal enviaria cinco profissionais ao Altiplano, quatro no texto e um nas imagens. Então, determinada semana, a falta de um patrocinador obrigou a revista e se definir por só dois repórteres. Lógico que um fosse o Tim Teixeira, o editor de “Esporte”. E para a segunda vaga Mino Carta, diretor de redação da "Veja", optou por uma disputa entre Armando Salem, meu amigão até hoje, e eu. Numa renhida melhor-de-três, ganhei.

Guanajuato, o "Cerro de las Ranas"
Guanajuato, o "Cerro de las Ranas" Guanajuato, o "Cerro de las Ranas"

Mal conheci a capital, a Ciudad de México. Do aeroporto mesmo, em dois veículos alugados, uma equipe conjunta rumou a Guanajuato, quase 350 quilômetros de distância. Relíquia pré-colombiana, com os seus 32.000 habitantes, incrustada nas colinas do “Cerro de Las Ranas”, o “Cume das Rãs”, Guanajuato se deposita numa altitude de 3.180 metros. A Comissão Técnica da seleção do Brasil a havia adotado, como sua base de treinamentos, exatamente para facilitar a adaptação dos jogadores ao ar rarefeito do país. Hoje se sabe que, de fato, fisicamente a seleção sobrou na Copa de 70. Aliás, quando cheguei a Guanajuato, o time do treinador Mário Zagallo, bi como jogador em 58 e 61, já ostentava duas semanas de aclimatação espetacular. E os meus colegas e eu padeceríamos até nos acostumar à carência de oxigênio e de umidade no ar. Nossas narinas sangravam do nada e subir rampas internas e escadarias redundava em incômodas tonturas.

O subterrâneo das múmias
O subterrâneo das múmias O subterrâneo das múmias

Outros tempos, outro calendário, para o Futebol e para a Mídia, em me instalei por quase um mês só naquele lugar tão seco que as roupas lavadas se desidratam em um par de horas e uma das atrações é o Museu das Múmias, com centenas de corpos livremente preservados, inclusive sem o sepultamento. Talvez, no desenvolver de suas carreiras, os jogadores do Brasil não tenham desfrutado uma forma tão exuberante como na sua estada em Guanajuato. Claro, porém, que igualmente se multiplicaram as contrapartidas incômodas. Cidadezinha famosa pela excelente qualidade da sua antiga Universidade, Guanajuato atravessava o seu período de férias escolares. Não existiam diversões, nem restaurantes. A embaixada do Brasil ainda organizou um show de Bossa Nova no único teatro acessível. Restavam aos jogadores, apenas, os passeios pelas ruas subterrâneas que se emaranhavam sobre os leitos de rios secularmente extintos. Passeios bem soturnos...

Ruas, nos rios subterrâneos
Ruas, nos rios subterrâneos Ruas, nos rios subterrâneos

Abrigados no Castillo de Santa Cecília, gigantesco hotel que ocupa uma fortificação de 1686 e que tranquilamente serviria de cenário para um filme de terror e de vampiros, aos jornalistas cabia uma rotina monocórdica. Desjejum de “queso e médio melón”. O almoço de “queso e médio melón”. Jantar de “queso e médio melón”. Sim, pois logo se mostaram intragáveis a sopa de frango, o ensopado de frango, o assado de frango, o etcetera de frango. O velho Aymoré Moreira, treinador do Brasil bicampeão na Copa do Chile/1962, que integrava como comentarista a nossa equipe, descobriu um boteco que oferecia preciosas hamburguesas. Comprávamos às pencas. No intervalo da manhã, frequentávamos a “janela” da seleção, hospedada no mais bucólico Parador San Javier. À tarde, víamos os exercícios com bola. Na “janela” e na tarde colhíamos as informações e tirávamos as fotografias. Para “Veja”, que descartara o especialista, eu me desdobrava nas funções.

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O Castillo de Santa Cecília
O Castillo de Santa Cecília O Castillo de Santa Cecília

Os escritos nós transmitíamos, via teletipo, num aparelho colocado, por encomenda da Abril, num apartamento da sua equipe no Castillo: além do par de “Veja” meia-dúzia de colegas da “Placar”. Datilografar num teletipo arruína os dedos. E eu me compelia a enrolar as unhas com tiras de esparadrapo, ao estilo dos voleibolistas. Para os filmes com as fotos, formávamos um pool. Enfiávamos os rolos num malote e, a cada dia, um da equipe assumia a direção de um veículo hidramático e viajava 65 quilômetros até a cidade de León, onde havia uma agência de uma empresa aérea com que a Abril detnha convênio. De contrabando, no malote, enfiávamos cartas, cartões postais, nossos ou dos jogadores, cujos, em São Paulo, o saudoso Ulysses “Uru” Alves de Souza se incumbia de distribuir.

Treinamento do Brasil, em primeiro plano Rivellino e Ado
Treinamento do Brasil, em primeiro plano Rivellino e Ado Treinamento do Brasil, em primeiro plano Rivellino e Ado

Pois é. Naqueles tempos sem Internet, “redes sociais” ou câmeras eletrônicas, não era nada fácil cobrir uma Copa. Missão que, até, redundava em constrangimentos. Além da credencial oficial da FIFA, para o acesso à “janela” do San Javier a delegação do Brasil exigia uma identificação suplementar, controlada por uma tropa de seguranças sob o comando do Major Roberto Ipiranga dos Guaranys, um ex-paraquedista que já havia inclusive participado de um plano malévolo destinado a explodir o Gasômetro, mais outros logradouros do Rio e, no rastilho do terror que daí se disseminaria, talvez eliminar inúmeras personalidades da oposição à Ditadura do General Emílio Médici. O País atravessava um período de implacável repressão. E ainda pior, naqueles idos houve o sequestro, no Rio, de Ludwig Von Holleben, embaixador da Alemanha. Bastante gentil no trato, sempre sorridente, Guaranys não economizava no seu destruidor aperto de mão.

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O impacto do sequestro de Von Holleben
O impacto do sequestro de Von Holleben O impacto do sequestro de Von Holleben

Era ainda uma missão que podia desandar em perigos de origem insólita. Empenhada em promover largamente o lançamento de “Placar”, a Abril havia colado, na capa do primeiro número, uma espécie de moedinha com a efígie do Pelé. Outro saudoso, Cláudio de Souza, da cúpula da editora, forneceu a cada um dos seus jornalistas daquela Copa uma sacola repleta de tais bijus que nós doaríamos a quem pedisse. O Castillo tinha uma boate na qual uma bandinha mais se divertia do que entoava, Certa noite, na véspera de nos mudarmos, com a seleção, a Guadalajara, encerramos o milionésimo campeonato de buraco e uns doze de nós, entre a opção da cama ou de um novelão na TV do salão, escolhemos visitar a boate. Outros perdidos se juntavam ao redor de latinhas de cerveja. Numa mesa redonda, três homens soturnos e seis mulheres ruidosas bebricavam tequila. Em Guanajuato?

A primeira edição de "Placar", com a moedinha de Pelé
A primeira edição de "Placar", com a moedinha de Pelé A primeira edição de "Placar", com a moedinha de Pelé

Um garçom nos notificou. Que tomássemos cuidado, os homens vinham de Irapuato e se destacavam pela fama de violentos. Do grupo, apenas uma das mulheres morava na região, era a proprietária do único bordel dos entornos de Guanajuato. Esquecemos o caso, porém. Até que, num rompante, um colega cujas feições, vá lá, sugeriam Pelé, apareceu na boate e a dona do “rendez-vous” se alçou aos brados: “Foi ele! Foi ele!” Imediatamente, os três homens também se levantaram, e de pistolas em punho. O colega, intuitivamente, depressinha se antecipou ao que sucederia e zuniu em retirada enquanto os homens disparavam suas armas. Num reflexo coletivo, todos nos arremessamos ao chão e debaixo das mesas. E o pavor geral e irrestrito perduraria por cerca de tenebrosos dez minutos.

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Em detalhe, a moedinha
Em detalhe, a moedinha Em detalhe, a moedinha

Inacreditavelmente, as duas únicas, solitárias viaturas da polícia de Guanajuato enfim despontaram na noite e detiveram os violentos. E o mistério da razão do entrevero se desfez quando o colega ressurgiu na procura dos indispensáveis goles relaxantes. Contou que havia encontrado, esquecida num canto, uma sacola com as moedinhas do Pelé e que, claro, pretendia devolvê-la. Todavia, numa noite anterior, ao passar diante do lupanar e ao ver a luz acesa, resolveu se empavonar. Inventou que era irmão do Pelé, saboreou os atributos da dama e lhe pagou, audaciosamente, com o tal conteúdo da tal sacola.

Guanajuato, à noite
Guanajuato, à noite Guanajuato, à noite

Enquanto alguns riam da suposta marotice e outros, bem na maioria, se enfureciam com o risco que o colega lhes havia estupidamente propiciado, o comissário de polícia surgiu no Castillo de modo a verificar se alguém tinha se lesionado. E explicou o restante da mutreta. Ao entender que aquela fortuna que enchia a sacola era falsa e sequer valia o seu peso, a madame pediu socorro aos homens de Irapuato, leões-de-chácara, para dizer o mínimo. E então os três rumaram até Guanajuato com a intenção de pregar um susto no malandro. Acabaram por aterrorizar também uns trinta, quarenta distraídos. Afortunadamente, na tarde seguinte, a equipe da Abril se transferiria a Guadalajara - e ao Mundial de verdade.

PS: Este texto representa o esboço de mais um capítulo de uma tentativa de eu escrever a minha autobiografia; no mínimo, uma seleta de causos que vivi e/ou testemunhei. No próximo, falarei sobre as jornadas com a seleção já em Guadalajara. E, até esgotar o tema “Copa do Mundo”, publicarei, aqui no meu espaço do R7, textos sobre as outras disputas de 1970 até 2018. Algumas que inclusive cobri in loco: além de 70, de 1990 e de 1994.

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