Memórias da Copa 12: onde e como principiou o tombo de Maradona
Mesmo com um time dizimado por contusões e por arbitragens, a Argentina chegou à final contra a Alemanha. O "Pibe", no entanto, desandou a xingar os cartolas da FIFA. E a vingança viria em 1994.
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Foi peculiaríssima a odisseia dos jornalistas brasileiros, os da escrita, os das imagens e os do microfone, que se dedicaram à cobertura da Copa de 90 na Itália. Imagine você que o último jogo do dia se acabava em torno das 23h30 de lá, ainda 18h30 no Brasil. Na teoria, eu tinha que esticar ao máximo a minha jornada de trabalho, até para acompanhar o ritmo do fechamento da “Folha”, o periódico que me enviara ao Mundial. Sem problemas, pois sou um madrugadófilo. Só que, na manhã seguinte de lá, por volta das sete, eu precisava estar de pé, e já de banho bem tomado, na direção de uma Lancia Delta, ora em busca da concentração da Itália, em Marino, a cerca de 35k no rumo sudoeste, ou da concentração da Argentina, em Trigoria, idem no rumo do sudeste. Por um tempo, quando não cometia o meu macarrão na espiriteira do meu quarto do hotel, sobrevivi de sanduíches de atum.
Eu já tinha duas semanas de Itália quando, no dia 10 de Junho, meu ritmo nutricional se aprimorou um tiquinho. Diante de um dos telões do Gaetano Scirea, o galpão que abrigava o Centro de Imprensa, enquanto a seleção de Sebastião Lazaroni penava para suplantar a da Suécia por 2 X 1, cruzei com Sylvio Guedes, um colega de Brasília, e, enfim provido de companhia, me animei a procurar um lugar que ficasse aberto depois de a voz maravilhosa de Luciano Pavarotti, com o “Nessun Dorma”, anunciar que em minutozinhos se apagariam todas as luzes do Scirea e, inclusive, do seu estacionamento. Levei o Xará ao bairro boêmio do Trastevere e lá descobrimos um espaçozinho delicioso. Apesar do nome, Action Blu, mistura de pizzas e de pratos de “pastasciutta”. Gostamos, ao ponto de nos agraciarem com uma mesa cativa, na qual ninguém mais se aboletava. Ficamos amigos do Marco Forte, o chefe-de-cozinha, e do Tullio Gervasoni, que cuidava do forno. Tão amigos que, numa rara noite de folga, lá eu perpetrei um legítimo Picadinho em honra da sua freguesia mais fiel.
Na competição da Bota eu me dediquei exclusivamente à “Folha”, embora também fosse um comentarista da Band. Questão de ética. Afinal, era o jornal que pagava todas as minhas despesas. No máximo, na tribuna do Olímpico, eu aceitava passar pela posição de onde a Band fazia as suas transmissões, cumprimentava a turma de plantão. Dia 23, o saudoso Luciano do Valle chegou a requisitar a minha viagem até Turim, onde o Brasil travaria a sua partida das oitavas de final contra a Argentina. Expliquei o motivo e, claro, não fui. Na verdade, naquela Copa, só numa vez eu integrei, mesmo, a equipe da Band: em 4 de Julho, logo depois da semifinal em que a Alemanha havia superado a Inglaterra, numa disputa de penais. Compareci à Antica Trattoria Santo Padre e participei dos festejos de 43 anos do Luciano, um magnífico jantar preparado por um outro saudoso, Giovanni Bruno. A Band havia praticamente se apossado do Santopadre, e lá a sua brigada se reunia após o seu “Apito Final” e devorava as comilanças opulentas, generosíssimas, do bravo Giovà.
A eliminação do Brasil pela Argentina, 0 X 1, graças ao tento fatídico de Caniggia, depois de uma bola muito mal dividida por Alemão com Maradona, ambos jogadores do Napoli, essa eu vi nos telões do Scirea. Éramos, o Sylvio Guedes e eu, os únicos “brasiliani” no enorme salão. Daí, nada mais lógico do que nos tornarmos alvos imediatos de todas as entrevistas imagináveis. Eu, inclusive, topei participar de uma espécie de mesa-redonda, ao vivo, da Cubavisión. Detonei a CBF e Ricardo Teixeira, esculhambei o ridículo sistema 3-5-2 montado por Sebastião Lazaroni, que obrigava atacantes explosivos como Careca e Muller a atuar de costas para a meta do inimigo e que mantinha Romário na reserva. Ao se encerar o papo, o âncora me agradeceu com uma frase bem singular: “El Comandante Fidel envía sus mejores saludos a Brasil”. Protocolar? Ou uma despedida com dedicatória? Ah, jamais saberei...
Um fã público de Fidel e de Cuba, o “Pibe” Maradona foi um dos personagens que mais exigiram as minhas atenções na Copa de 90. Eu já o conhecia dos idos do Napoli e ele não me considerava um “brasileño” que merecesse a sua desconfiança ou o seu repúdio. Papeávamos em italiano e isso, de certa maneira, o tranquilizava. Maradina tinha torcido o seu tornozelo direito e até me permitia, bem-humoradamente, que usasse uma fita de costureiro para medir o diâmetro, como ele mesmo ironizava, do seu “melón”. Determinada “mattinata”, desapareceu uma das Ferraris, com placa NA de Napoli, que havia guardado em Trigoria. Furibundo, o “Pibe” responsabilizou os porteiros do lugar, quase espancou os coitados. Até que os “carabinieri” localizaram a máquina, a se reabastecer num posto de gasolina, guiada por ninguém mais, ninguém menos, do que o seu mano Hugo que a tinha, digamos, surrupiado de Trigoria. Ali já se prenunciava o futuro polêmico de Maradona.
Indiretamente, também coube ao “Pibe” provocar a pior sensação que me assolou na Itália/90. Em 2 de Julho, na mesma já famosa Lancia Delta, com o Xará, desci de Roma a Nápoles, para a semi que a Bota nunca olvidará. Claro, foi delicioso revisitar o venerável Castel dell’Ovo, erigido nos meados do Século V, onde a FIFA instalou a sub-sede local do seu Centro de Imprensa. E foi delicioso saborear as pizzas da Cirò, logo ao lado, e as vongole do Gabbiano, bem à frente. Sem um abuso de generalização, no entanto, eu direi que o comportamento do napolitano me chocou. Porque o nosso hotel ficava longe do Castel e do Stadio San Paolo, deixei a Lancia na garagem e optei por um táxi. O Sylvio Guedes seguramente se lembrará do sustaço que ambos levamos quando, numa troca inconsequente de palavras, o motorista, nativo da cidade, desembestou a falar mal da “Azzurra”, do seu treinador Azeglio Vicini e de tudo que, lá na Itália, pairava ao norte da Campânia, a região em que Nápoles se situa. Na tarde da peleja, como de hábito, cheguei cedo ao estádio, antes mesmo de seus portões se abrirem aos espectadores. Gosto de reconhecer a minha posição nas arquibancadas da Mídia, verificar as conexões elétricas do monitor de TV e do micro que os organizadores fornecem aos jornalistas. E me impactei ao ver que torcedores do Napoli espalhavam faixas de apoio a Maradona e de desdém pela sua própria “Azzurra”. Era mesmo assustadora, na cidade, a idolatria pelo Dieguito.
Os “carabinieri” recolheram todas as imprecações antes de a pugna principiar. Os “tifosi” respeitaram o Hino da Itália e, enfim, depois do apito inicial de Michel Vautrot, o árbitro francês, paulatinamente transferiram seu prazer à seleção da pátria. Explodiram aos 17’, com o tento de Totó Schillaci, um meridional siciliano. E permaneceram calados quando, numa falha patética do arqueiro Walter Zenga, o esperto Caniggia, quase de dorso para a meta e praticamente de nuca, fez 1 X 1. Mesmo contra uma equipe dizimada fisicamente, Vicini arruinou o que ainda havia de chances de a “Azzurra” vencer. Aos 70’, tirou o ágil Vialli e colocou no prélio o estático Serena. E só aos 73’ lançou na arena Roberto Baggio, o mais brilhante dos seus avantes, tolamente ignorado. No bingo dos penais o arqueiro Goycochea conduziu a Argentina ao triunfo. Ele que começara a Copa na suplência de Nery Pumpido.
Vinte anos depois de fulgurar no México, re-desabara no vácuo a seleção do Brasil que abrigara a minha "Famiglia" e me proporcionara os meus filhos. Descartado o time pífio do Lazaroni por quem era difícil torcer, cheguei a me animar com a possibilidade de um novo sucesso, ou um mero lenitivo, da “Azzurra” dos meus ancestrais, a seleção que já havia me consolado na Espanha. Mas, também a “Azzurra” de Vicini se revelou decepcionante. Um profissional, que nunca deixei de ser, eu voltei a Roma, voltei a Trigória e à fita métrica no tornozelo de Maradona, e aos repastozinhos tardios no Action Blu. E me controlei para não colocar na “Folha” que a decisão de 8 de Julho, no Olímpico, foi grotescamente ruim como partida de Futebol, Alemanha 1 X 0 diante da Argentina, um tento de Brehme, aos 83’, num pênalti nebuloso, apontado pelo horroroso Edgardo Codesal, um apitador mexicano, genro do cartola Guillermo Cañedo, um "amigazo" de João Havelange, o presidente da FIFA.
Fracionada por lesões e por excesso de cartões amarelos, suspenso Caniggia, a Argentina que disputou a final só entrou em ação com sete remanescentes do San Paolo. E Codesal ainda não marcou um pênalti muito mais claro de Klaus Augenthaler em Gustavo Dezotti, expulsou de campo Dezotti e Pedro Monzón da “Albiceleste”, e impediu que a Argentina reagisse . Na cerimônia de entrega da taça a Lothar Matthaeus, o capitão da “Mannschaft”, sobrou o ensandecido Maradona a espalhar um coro de vitupérios contra as mães dos magnatas da FIFA. O rumor do estádio evitou que Havelange & Cia. ouvissem o refrão. Mas não foi necessário ler lábios para traduzir as imagens da TV. O universo todinho presenciou o seu incontrolado acesso público de raiva, diante da tribuna de honra, um episódio que levaria brutais consequências à Copa dos EUA/94. Façanha derradeira em 90, eu conseguiu me imiscuir no ônibus que levou a “Albiceleste” embora do Olímpico e entrevistei um Diego Armando Maradona choroso e irado. Mal sabia Diego do que lhe aconteceria, depois.
PS: Este texto representa o esboço de mais um capítulo de mais uma tentativa de eu escrever uma autobiografia; no mínimo, causos que vivi e/ou que testemunhei. No próximo, EUA/94, a primeira parte do que recordo da competição, como a antecipação de que Franco Baresi e Roberto Baggio emfrentariam o Brasil na decisão, assim como o estopim da vingança da FIFA contra Maradona. Depois, numa segunda parte, exporei a minha complexa reconstituição do seu suposto doping, investigação que pouco interesse produziu cá no Brasil mas foi premiada na Argentina. Até esgotar este tema, “Copa do Mundo”, publicarei, em meu espaço do R7, textos sobre as outras disputas de 1990 até 2018. Algumas que inclusive pude acompanhar in loco: além daquela do México/70 e desta da Itália/90, também a dos Estados Unidos em 1994.
Gostou? Clique num dos ícones do topo para “Compartilhar”, ou “Twittar”, ou deixe sua opinião no meu “FaceBook”. Caso saia de casa, seja cauteloso e seja solidário, use máscara, por favor. E fique com o abraço virtual do Sílvio Lancellotti! Obrigadíssimo!
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.