"Do moleque que eu acreditava Pelê ao monarca batizado de Rei Pelé"
Uma visão muitíssimo pessoal do superastro que propiciou o meu primeiro "furo" de reportagem ao responsável pelos mais belos gols que pude ver
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Sexta-feira, 7 de Setembro de 1956. Por causa do feriado, desde a noite anterior a minha Família havia descido a Serra do Mar na direção de São Vicente, onde mantínhamos um pequeno apartamento. Então, as nossas viagens à praia eram comuns em todos os finais de semana e nas férias. E eu já dispunha até de bons amigos da molecada da vizinhança da Ilha Porchat.
Sérgio Godoy (onde estará?) liderava o time de pelada na areia mas, naquela data, nos reuniu na sua casa, diante de um Spika, o primeiro radinho de pilha que eu vi em minha vida. A Rádio Atlântica transmitiria, direto de Santo André, um amistoso Santos X Corinthians do ABC. E naquela partida faria a estréia um garoto de 15 anos que, segundo a imprensa que eu já acompanhava, logo se transformaria em um jogador fenomenal de Futebol. Para mim, equívoco de leitura, o garoto se chamava Pelê, assim mesmo, o ê fechado, como Nenê.
Obviamente eu não me recordo de quem narrou o prélio, placar de 7 X 1 em favor do “Peixe”, um dos tentos feito pelo garoto da estréia. No entanto eu me lembro do susto que levei ao descobrir que o Pelê na verdade era Pelé de acento agudo ao invés de circunflexo, um embrião do tal jogador fenomenal ou, mais do que isso, do personagem mais mítico da história do seu esporte. E eu posso afirmar com orgulho e prazer que testemunhei como pessoa e como profissional muitos dos episódios que o transformariam no “Deus da Bola”.
Quarta-feira, manhã de 19 de Novembro de 1969. Já um sub-editor da revista “Veja”, acomodado numa poltrona de um Electra da Ponte-Aérea, eu percebo o nervosismo do senhor corpulento que se sentou ao meu lado. Puxo o papo e ele me conta que nunca, antes, havia entrado num avião. Aos poucos, o aparelho já estabilizado na altitude de cruzeiro, o senhor me revela seu nome, Zaluar Torres Rodrigues, e diz que vai ao Rio ver o jogo Vasco X Santos. “Eu também”. Afinal, poderia acontecer de o Pelé registrar o seu milésimo gol.
Incrível como uma coincidência fortuita acarreta um furo de reportagem. O prélio valia pelo “Robertão”, espécie de “Brasileirão”, e já fazia duas semanas que eu perseguia o “Peixe” na expectativa do ansiado milésimo, evento que, claro, se transformaria no assunto de capa na revista. Já fizera uma pesquisa ingente, e inclusive havia descoberto que, na tal porfia do Santos no ABC, o arqueiro fora um Zaluar. E lá estava o próprio ao alcance do meu cotovelo. Entrevistei Zaluar a 20.000 pés e ganhei uma foto que a “Veja” publicou com exclusividade, um lance da peleja em que ele e Pelé apareciam próximos.
Não preciso rememorar que Pelé, de fato, na cobrança de um penal, aos 78’, anotou o seu milésimo gol, placar de 2 X 1 em favor do Santos. E que de fato o episódio ganhou a capa de “Veja”. Mas, me obrigo a afirmar que o evento revolucionou a minha carreira. Eu era, na época, um sub na “Internacional” da revista, apenas temporariamente na “Geral”, e aquela reportagem me colocou na cobertura da seleção brasileira e daí, em 1970, da Copa do México, na qual fortaleci o meu relacionamento com o “Crioulo”, ou “Negão”, apelidos que não configuravam o politicamente incorreto que hoje pressupõe o racismo.
Na competição do altiplano eu testemunhei os três tentos mais maravilhosos que, infortúnio, nunca aconteceram na antologia do Futebol. Muito adiantado o arqueiro Viktor, da Tchecoslováquia, o também batizado “Rei” desferiu um chute alto, antes da linha divisória do gramado, e por um palmo a pelota não entrou no ângulo exato. Contra o Uruguai, o arqueiro Mazurkiewicz bateu um tiro de meta e, na intermediária, Pelé devolveu de primeira, por sorte do adversário precisamente onde ele se encontrava. E o incrível lance dos dois dribles de corpo no arqueiro mas a bola, caprichosamente, a escapar a meros, ridículos milímetros do poste. Obrigatório ver, rever e re-rever várias vezes.
Foi de Pelé, ainda, o gol mais lindo que eu apreciei, num estádio, igualmente contra a Tchecoslováquia em 1970, um levantamento de Gérson, de quase 50 metros, que o “Rei” matou no peito, espetacularmente, trocou de pernas em pleno ar, e fulminou Viktor, Brasil 2 X 1, prélio que acabaria em 4 X 1. E foi de Pelé o gol mais lindo que eu apenas desfrutei por filmes. Final da Copa da Suécia, em 1958, o Brasil com 2 X 1 no placar, levantamento de Didi e Pelé, ainda um adolescente de 17 anos, apara e, sem que a pelota caia ao solo, desenha dois “chapéus", dois "lençóis”, em dois zagueiros e daí empurra, de mansinho, aos 3 X 1. Pelé também anotaria de cocoruto, e de mansinho, já nos denominados acréscimos, o último gol daquele placar de 5 X 2.
Nos seus comentários de rádio e televisão, Mário Moraes (1925-1988), um dos meus mestres queridos, se recusava a dizer “Pelé”. Mário simplesmente identificava o craque por “Sua Majestade” ou, melhor ainda, “Ele”. Pois, pode acreditar quem quiser, até livrei “Sua Majestade” de um aperto curioso. Foi na Copa da Itália, em 1990, à saída do jogo da “Azzurra” contra a República da Irlanda, quartas-de-final, 1 X 0, Olímpico de Roma, 30 de Junho. “Ele” e Samir Abdul-Hak (1941-2016), seu advogado, a caminho do estacionamento, acuados por fãs, se assustaram com a pressão, me viram à distância e pediram auxílio. Depressa localizei uma viatura de “Carabinieri” e os conduzi até os dois quase sufocados. Mesmo amontoados na viatura, todos aos risos, Pelé distribuiu autógrafos aos policiais. E inclusive a mim, às gargalhadas, o seu "salvatore"...
Apenas um dos mimos que “Ele” me regalou. O saudoso Domício Pinheiro (1921-1998), queridíssimo colega do “Estadão” e uma espécie de biógrafo do “Rei” através das imagens, clicou inúmeros flagrantes antológicos de Pelé em plena acrobacia. Foi de Alberto Ferreira (1932-2007), do "Jornal do Brasil", porém, a imagem sensacional da “bicicleta” que a Petrobrás comprou, depois utilizou numa campanha publicitária e então transformou em distintivos de lapela. No México “Ele” me presenteou com um dos broches. Quando se despediu do Santos, em 2 de Outubro de 1974, na sua Vila Belmiro, 2 X 0 contra a Ponte Preta, no vestiário, mesmo comovidíssimo, entre dúzias de bicões, não hesitou em redigir uma dedicatória ao meu primogênito, de então três anos, em uma minicamisa do “Peixe”, claro, com o número 10 às costas.
Pena que, traído por sócios e por falsos amigos, o cidadão Édson Arantes do Nascimento, um empresário tentativo, tenha se arriscado à falência. Precisou ressuscitar o Pelé. Logo em 1975 aceitou uma proposta de jogar pelos New York Cosmos, na efervescente North American Soccer League. Assinou um contrato trienal, de US$ 2,8 mi por temporada, se transformou no atleta melhor remunerado de todo o mundo naqueles idos, e pendurou as chuteiras, profissionalmente, de vez, 1º de Outubro de 1977, num amistoso diante do Santos, meio tempo com cada equipe. De todo modo, ainda voltaria a defender os Cosmos num cotejo emblemático, em 5 de Maio de 1984. Atuou pelos veteranos do clube frente os jovens da época. Com “Ele” jogaram, por exemplo, Carlos Alberto e Rivellino. Pois o “Rei” me agraciou com a flâmula oficial de tal desafio, hoje pendurada numa parede do quarto de meu neto.
E Pelé até mesmo gravou um compacto com Elis Regina (1945-1982). Aconteceu em 1969, duas canções firmadas pelo Édson: a divertida “Vexamão” e “Perdão, não Tem”, de estilão mais melancólico. Nada que valesse um prêmio Grammy. Porém, juro, ambas tranquilamente escutáveis, principalmente pela presença carismática da “Baixinha”. Bem depois, no começo de 1978, mereci o privilégio de um longo jantar com ambos, logo depois de “Ele” surgir de surpresa numa uma exibição do show “Transversal do Tempo”. O “Rei” e Elis deixaram uma mensagem escrita num guardanapo que eu guardei em algum escaninho do meu escritório. Não, não vou procurar. Depois de enviar este texto ao R7 eu irei, sim, até a esquina. Para examinar o Céu e de algum modo agradecer o sublime regalo concedido à Dona Celeste, ao Seu Dondinho e ao mundo, exatos 80 anos atrás.
PS: Um provérbio da Sicília dos meus ancestrais diz que não existem coincidências: as coisas colidem. Pois com certeza foi uma trombada do destino que trouxe ao lume, em 30 de Outubro de 1960, um “pibe” Diego Armando Maradona. Numa mesma semana, Pelé faz os 80 e Dieguito faz 60. Bem mais do que vinte anos os separam, porém. Maradona é o segundo...
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