De como a vida poderia ter sido muito mais gentil com Diego
Uma pequena antologia dos seus azares e, principalmente, dos sacrifícios que fez para se resgatar. Fui testemunha de dois, em 90 e em 94.
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Desde as vizinhanças das 12h30 da quarta-feira, o 25 de Novembro, eu desandei a matutar sobre as inumeráveis ocasiões em que a minha vida profissional se entremeou à de Diego Armando Maradona. Precisamente às 12h24 havia desembarcado no meu WhatsApp um recado de um bom amigo de Buenos Aires que dizia, de forma sintética e seca: “El Pelusa se fuè”. Era alguém de certa intimidade, a ponto de chamar Diego pelo apelido de infância, ainda em Vila Fiorito, conglomerado da Grande Buenos Aires, ironicamente mais perto da Avellaneda do Independiente do que da Boca do Boca Juniors. “Pelusa”, ou “Cabeleira”, pelo volume imenso dos penteados que envergava.
Havia morrido Maradona, o “Pibe” do Don Diego e da Doña Tota, o Dieguito, o “Mano de Diós”, exatos 26 dias depois de completar os seus 60 anos de idade. Eu passaria a tarde na cobertura da “Champions League” da Europa, a única competição de truz que o Diego não venceu. Sim, eu encontraria uma forma de citá-lo no texto obrigatório que me cabia na pauta da jornada. Mas, principalmente, teria tempo para raciocinar e até para encontrar um modo de fugir do óbvio e do piegas, da admiração melosa pelo talento do craque ou da crítica acanalhada ao personagem de tantos escorregões, em particular na droga da droga. E ainda teria tempo para re-colecionar troféus que amealhei em minha relação com o Diego, de uma linda camisa do Boca aos diversos autógrafos que ele rabiscava na agenda das minhas atividades na Copa dos EUA/94. Eu não largava nunca da agenda, lá eu anotava as minhas despesas, para uma futura prestação de contas, e lá também capturava o que podia de assinaturas dos craques com que deparava em minhas andanças.
E eis que subitamente me adveio o evidente. O meu testemunho. Conheci o Diego nos idos da década de 80, ou em 1984, quando ele se transferiu do Barcelona ao Napoli e, graças a Luciano do Valle, eu passei a integrar um trio de vozes na narração do “Calcio” pela Band, com Giovanni Bruno e Sílvio Luiz, e pude testemunhar de que maneira Corrado Ferlaino montou o melhor elenco de Futebol no Sul da Itália em todos os tempos. Depois, na Copa de 90, na Bota, eu pude testemunhar de que maneira o Diego, já um campeão do mundo no México/86, estoicamente se recuperou de uma tenebrosa lesão de tornozelo. E enfim, na Copa de 94, nos Estados Unidos, pude testemunhar a tramóia indecente, perversa, grotesca, que o tirou daquela competição.
Ficarei no quadriênio 90/94. Em meio século de ofício, só uma vez, a minha Copa de estréia, no México/70, me coube acompanhar o time do Brasil. E, até em função do “Calcio” na Band, foi natural que, em 90, a direção da “Folha” me incumbisse da cobertura da “Azzurra” dona da casa, que se concentrava em Marino, ao sul de Roma. Como a Argentina se alojou em Trigoria, mais a oeste, também natural que eu dividisse o meu tempo entre ambas. Determinada manhã, ao saber que o Diego sofrera a tal da lesão de tornozelo, o esquerdo, decidi verificar pessoalmente. E me espantei. Inchara tanto que parecia, ele brincou, entre debochado e auto-indulgente, com um “médio melón”.
Consegui uma fita métrica e, diariamente, rumava até Trigória para medir a circunferência do tornozelo do Diego. Flávio Gomes, o meu editor no jornal, inclusive abriu um mini-espaço numa coluneta de notas para que eu, a cada edição, indicasse o tamanho que, no correr do tempo, se reduziria a uma bolotinha no volume de um tomate. Diego, claro, basicamente transmutava o seu tornozelo numa múmia, tantas eram as voltas da faixa ortopédica que o seu massagista, Salvatore Carmando, pacientemente enrolava. Criou-se entre nós uma curiosa intimidade, a ponto de, encerrada a decisão, Alemanha 1 X 0 Argentina, ele me remeter um recado, via Carmando. Aceitava me dar uma entrevista exclusiva, desde que eu topasse encontrá-lo no ônibus da delegação. Não hesitei. Ironia, e muito azar, do Olímpico de Roma o ônibus levou a delegação diretamente para o aeroporto. Necessitei ditar o meu texto de um telefone público. Valeu, porém, chamada de primeira página.
A “Folha” repetiu a dose nos EUA/94 e me colocou para seguir a “Azzurra” e a Argentina. Só que, peculiaridade crucial, eu me alojei em Newark, Nova Jersey, a oeste de Nova York, até razoavelmente perto da concentração da Itália, em Martinsville, 60 quilômetros de distância, porém seis vezes mais longe que a Argentina, instalada em Boston. Afortunadamente, Nunzio Briguglio, dileto colega/amigo/irmão da revista “IstoÉ”, dividia comigo a direção de um heróico veículo alugado. Nós estávamos juntos em plena rodovia, aliás, na noitinha de 29 de Junho, quando voltávamos de outra epopéia, após uma descida até Washington, onde a Itália havia empatado de 1 X 1 com o México. Meu celular, na verdade um paralelepípedo, soou. Era um cartolaço da FIFA, e quando ele se for deste plano, eu revelarei o seu nome. Passou a informação de que o anti-doping do dia 25, após o prélio Argentina 2 X 1 Nigéria, denunciara o Diego como o consumidor de uma substância terminantemente proibida.
Imediatamente, pelo mesmo paralelepípedo, notifiquei a redação da “Folha” que teve tempo de abrir uma notinha de primeira página numa edição suplementar. Ficamos encafifados, contudo. Verdade que a saída do Diego do campo, ao final do duelo contra a Nigéria, fôra, digamos, folclórica, de mãos dadas com uma paramédica. Mas, na chamada Zona Mista, onde o pessoal da Mídia tem como bater um papo rápido com os jogadores a caminho dos vestiários, havíamos cruzado com o Diego. E ele, ultra-feliz, chegara a observar que jantaria com Cláudia, a sua mulher, e com Dalma Nerea e Giannina Dinorah, as duas filhas, num restaurante de lagostas, o Legal Sea Foods, por nós dois recomendado. Sucedeu o que se sabe, o seu ríspido desligamento da delegação dos platinos, a sua consequente pronúncia por dopagem.
Não me satisfiz e reconstruí, através de uma tonelada de pesquisas e de entrevistas, todo o trajeto do Diego desde um certo dia de Setembro de 1993, quando ele e outras quatro pessoas trafegavam pelas ruas de Rosário, cidade do Rosário Central onde, enorme de gordo, ele tentava retornar ao Futebol. Duas das pessoas representavam uma multinacional, patrocinadora da Copa dos EUA, que lhe oferecia uma nota preta para entrar em forma e disputar a competição. As outras eram Rulo Santecchia, o seu faz-tudo, e Júlio Marcos Franchi, o seu procurador. Depois de alguma relutância, Diego aceitaria a proposta e então mergulharia numa sacrificante operação de resgate físico e mental. A história que compus acabaria publicada na "Folha", página dupla, em 28 de Agosto de 1994. Basta procurar por “A Queda de Maradona”.
Sintetizo e aqui relembro que se criou uma verdadeira força-tarefa de gente empenhada na salvação do Diego. Os pais Diego e Tota. A esposa Claudia e as meninas Dalmita e Giannina. Franchi. Mais o advogado Daniel Bolotnikoff. O fisicultor Fernando Signorini. O doutor Néstor Alberto Lentini, da Secretaria de Esportes do Governo da Argentina. O professor Antonio Dal Monte, diretor do Instituto de Ciências do Esporte da Itália. O solerte ex-pugilista Miguel Angel Campanino, que se tornou xerife do Diego num campo de treinamento ultra-escondido em Santa Rosa, no Pampa. E, em cerca de três meses, incrível, ele ressurgiu novinho em folha, no estado que exibira no México/86.
Cocaína? Suficientemente escolados pela tragédia que quase tinha detonado Diego em 1991, Franchi e Lentini o compeliam a se submeter a exames constantes, radicais. De medicamento, entre aspas, ele apenas ingeria pílulas de um produto emagrecedor de nome “Universal Ripped Fast”, vendido sem receita até em bancas de jornais. Só que, em Boston, se acabou o estoque do “Fast” e um tal de Mario Daniel Cerrini, imposto à entrourage do Diego por Zulema Menem, a esposa do presidente Carlos, cuja dieta administrava, se ofereceu para comprar a reposição. Cerrini não reparou na embalagem. Levou o “Fuel” e não o “Fast”. E o “Fuel” contém Efedrina, substância vetada pela legislação anti-doping. Quando lhe revelei por que razão Diego fôra flagrado, Vincenzo Pincolini, o “capo” da preparação atlética da Itália, depressa rebateu: “Achar que a efedrina é um estimulante me faz rir. Hoje há substâncias mais eficientes – e muitas delas os velhos testes não conseguem detectar".
Pior, paralelamente, entre a coleta das amostras do xixi do Diego e a contra-prova do exame, ocorreu uma brutal, imperdoável comédia de erros, desde o preenchimento dos rótulos dos frascos até a ausência de um médico da Argentina. Muito pior, uma certa dama, perfidamente racista, Dona Nélida Grondona, a mulher de Júlio, o presidente da Federação, que odiava Diego, não permitiu que o marido armasse a defesa fundamental: “Indio hijo de puta! De novo, ele!”. Os brados de Dona Nélida tonitruaram pelos corredores do Holiday Inn Govenment Center de Boston. Até as formigas se assustaram.
Remanesce um resumo da ópera: a distração de um idiota absoluto, o tal Cerrini, arruinou um trabalho maravilhoso, e coletivo, de re-transformação do Diego. A Argentina, sem dúvida, ostentava a melhor seleção da Copa dos EUA. Na íntegralidade, completa e livre de abalos, bem mais provável que fosse a Argentina, não a Itália, a rival do Brasil naquela decisão horrorosa, a única final da antologia do Futebol que ficou no 0 X 0 no tempo normal e na prorrogação. Sim, eu sei, na vida não existe o “se”, ou o “talvez”, ou o “provável”. Mas, talvez, se levantasse aquela Copa, me parece muito, muitíssimo provável, que Diego Armando Maradona... É, sinto, este texto vai ficar sem o seu desfecho...
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