A remuneração dos árbitros, a desfaçatez da CBF e a mudez da FPF
O triste drama de um ofício razoavelmente bem pago mas grotescamente profissionalizado por um decreto de 2013 que não vale absolutamente nada
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti
Quinta-feira, dia 22 de Março de 2020, o colega e amigo Cosme Rìmoli levantou a lebre em um texto pertinente e objetivo, como é de seu costume, intitulado “A bilionária CBF empresta dinheiro aos desamparados árbitros”. Daí, no seu teor, acentua o Cosme que, para amenizar a crise disseminada pela Covid-19, a entidade que administra o Futebol no País, num laivo de generosidade (uma ironia, fique bem claro!) decidiu adiantar a taxa de UMA partida aos principais mediadores do País. E mais: como a grana é mirradinha, promete colocar “psicólogos” à disposição daqueles que eventualmente sentirem a necessidade do suporte moral. Ah, que generosidade...
Vem do Século XIX a expressão “levantou a lebre”, uma metáfora para “chamar a atenção sobre um problema que não se conhecia”. Aqui eu apenas engato o meu vagão na locomotiva que o Cosme colocou em movimento com a sua indignação. Lembra ele do discurso empolgado com que Rogério Caboclo, o Presidente da CBF, explicitou a sua felicidade pela pujança da CBF: "Chegamos a mais de meio bilhão de reais investidos no futebol nacional apenas em 2019... Se considerarmos os últimos três anos, os valores aportados superam R$ 1,37 bilhão." Detalhe: o pronunciamento eufórico de Caboclo aconteceu em 17 de Março, seis dias depois, DEPOIS, de a OMS declarar a pandemia.
Não considero que sejam pobres coitadinhos os árbitros de Futebol do Brasil, ao menos aqueles da Série A, e já explicarei a razão. Parece-me indecente, porém, como denunciou o prezado Cosme, que a CBF pretenda receber de volta o dinheiro miúdo que topou distribuir. Aqueles com as credenciais da FIFA, os atuais e os já não mais, R$ 4.140,00. Árbitros da CBF, R$ 3.000,00. Assistentes FIFA e ex, R$ 2.484,00. Assistentes CBF, R$ 1.800,00. No total, um butim de quase um milhão, valor dividido por quase 500 pessoas. Média minguadinha, R$ 2.000,00, que os agraciados se obrigarão a devolver.
Uma ofensa à dignidade humana quando se analisa toda a vaidade do Rogério Caboclo ao bradar que, nos “últimos três anos, os valores aportados superam R$ 1,37 bilhão” – faço questão de reprisar o tamanho do absurdo. E, por favor não importa, ofereço um exemplo, que Sandro Maria Ricci seja um funcionário público do Governo, analista de Comércio Exterior, o salário de R$ 25.000,00. E nem que Heber Roberto Lopes e Anderson Daronco sejam professores de Educação Física. Que Péricles Bassols seja dentista e Rafael Claus um personal trainer. Ou, nem que Marcelo de Lima Henrique seja um Fuzileiro Naval.
A mim parece vergonhoso, isso sim, que a profissão de árbitro tenha sido “regulamentada” por decreto federal em Outubro de 2013 e que tal cidadão ainda permaneça sem o devido vínculo empregatício com a CBF ou com as federações estaduais, sem direito ao piso salarial, ao 13º, às férias, como um trabalhador protegido pela CLT. Os mediadores e os auxiliares apenas recebem quando existe um certame em andamento. E que ocorre com os que usam o apito em certames de Série B e C etcetera, nos areiões espalhados do Oiapoque ao Chuí? No fim das contas, o decreto de 2013 não vale bulhufas.
Pior, instada a se agregar à salvação da categoria, a FPF, Federação Paulista de Futebol, em carta assinada por Ana Paula de Oliveira, uma ex-mediadora, agora no comando da sua Comissão de Arbitragem, gelidamente desprezou e humilhou a sua própria categoria,: "... impossibilitados de atender ao requerimento formulado, considerando que a ... acarretou a suspensão dos recebíveis relacionados aos campeonatos organizados por esta Federação”. Por quê o presidente Reinaldo Carneiro Bastos não se manifestou? "Que pouco caso. Parece até resposta do dia da mentira”, se lamentou Aurélio Sant’Anna Martins, do SAFESP, Sindicato dos Árbitros de Futebol do Estado.
Detesto recorrer ao Calcio quando necessito comparar o bem-feito com o mal-feito. Inexorável, porém. Na Itália, em que a crise, por enquanto, se demonstra muito mais atordoante, o cenário geral se descortina, perdão pela palavra, decentemente. Os prejuízos causados pela suspensão dos campeonatos são infinitamente maiores, o equivalente a R$ 3,5 bi. E Gabriele Gravina, o presidente da FIGC, a Federazione Italiana Giuoco Calcio, e Marcello Nicchi, o presidente da AIA, Associazione Italiana Arbitri, não se vangloriam de cofres repletos. Ao contrário, se mobilizaram em atitudes modelares.
Lá, como cá, mediadores exercem outros ofícios, além do apito. E tanto que, ao se aposentarem do Calcio, até mesmo multiplicaram suas rendas. Nicola Rizzoli, o condutor da decisão da Copa do Brasil/2014, comanda um importante escritório de projetos de Arquitetura e Urbanismo. Paolo Silvio Mazzoleni é o dono de uma empresa de objetos de antiquário. Roberto Rosetti dirige um hospital. Pierluigi Collina divide o seu tempo entre o divertimento como um astro ocasional de comerciais de TV e a seriedade de uma grande consultora de investimentos e o sisudo Comitê de Arbitragem da FIFA. Paolo Tagliavento administra uma charmosa “griffe” de salões de beleza.
Em média, um árbitro de primeira linha na Velha Bota pode amealhar o correspondente a R$ 25.000,00 em uma única peleja. Caso acumule atuações na Série A e mais as copas continentais, porfias de seleções, chega a receber a bagatela de um milhão no ano. Invejável. Só que, diante do caos que a pandemia pode causar, inúmeros se uniram em grupos de WhatsApp e, formidavelmente, passaram a se dedicar, a se cotizar, no apoio não somente de colegas menos privilegiados mas também de regiões necessitadas de ajuda monetária para víveres e suprimentos em geral. Afortunadamente, mesmo o perigo súbito e o sofrimento também podem ser educativos.
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