O dia em que Pelé fez 8 gols: imagens inéditas inspiraram livro
Elas foram tiradas por Antonio Lucio e descobertas recentemente por sua filha, que conta a história do pai e faz campanha para publicar a obra
Especiais|Eugenio Goussinsky, do R7
Gol de Pelé. Essa frase, tão corriqueira nos anos 50, 60 e 70, virou lembrança, virou saudade. Eternizou-se na memória e, quando possível, nos retratos. Quando essas imagens não existem, ficam os inúmeros relatos dos que testemunharam as façanhas do maior jogador de todos os tempos.
E quando elas são descobertas, vêm para provar que tudo o que se falou do Rei era verdade. Como nas imagens do repórter fotográfico Antonio Lucio Miguel Rodrigues Ramos, conhecido como Antonio Lucio, então na revista Fatos & Fotos.
Com seu olhar aguçado, ele conseguiu fotografar todos os 11 gols da histórica partida em que o Santos venceu o Botafogo (SP), em 21 de novembro de 1964, por 11 a 0, na Vila Belmiro. Oito deles, de Pelé. Os outros foram de Pepe, Coutinho e Toninho Guerreiro.
Até o fim de 2019, eram conhecidas apenas quatro imagens daquele jogo. As outras só vieram à tona em função do trabalho da filha de Antonio Lucio, Silvia Herrera, jornalista e historiadora, de 53 anos, que, após a morte do pai, em 2000, pesquisou todas as imagens por ele registradas ao longo da carreira. Ela, que iniciou a carreira em 1987, como repórter fotográfica, conta a sua descoberta ao R7 e hoje planeja o lançamento de um livro artístico.
"É um acervo muito rico, ao qual me dedico nas horas vagas para catalogar os negativos. Em 2013 localizei os negativos inéditos da concentração da seleção brasileira em Poços de Caldas, em abril de 1958, que foram eternizadas em livro: Seleção Nunca Vista, via crowdfunding (vaquinha virtual). E no ano passado cataloguei este do jogo inteiro, do 11 x 0 - desde a entrada no campo até o apito final - do Santos e Botafogo. Há os 11 gols, mais várias defesas de Gylmar e do Machado (goleiro do Botafogo)".
Naquele dia chuvoso na Vila Belmiro, Pelé estava ainda mais inspirado. Foi quando ele fez o maior número de gols em um único jogo, durante sua carreira, recorde nacional de então, batido apenas em 1976, quando Dario fez 10, contra o Santo Amaro, pelo Sport. Pelé só não fez chover naquele dia porque a natureza já havia se encarregado disso. Ou não?
"Do jogo do recorde, meu irmão mais velho lembra que papai contou para ele da chuva no campo, de como foi difícil fotografar este jogo, que realmente foi mágico - e uma verdadeira enxurrada de gols na Vila Belmiro", destaca Silvia.
Com sua companheira, a máquina, Antonio Lucio, nascido em 2 de janeiro de 1930, em Espírito Santo do Pinhal (SP), conseguia uma combinação de ângulos capaz de flagrar os mais efêmeros fenômenos. Como a brisa acariciando uma folha. Uma leoa lambendo a cria. Uma gota de orvalho. O instante exato em que se faz a noite. O sorriso de uma criança. A vida na mão de um bombeiro. Movimentos mágicos de Pelé.
Novo livro
Era para isso que ele saía de casa todas as manhãs. Para contar, através do olhar, o que via em nosso estranho e fascinante mundo, não importando qual fosse o tema. Foi inclusive ganhador do Prêmio Esso.
"Ele tinha um faro de repórter extraordinário. Era muito observador e amava futebol. O primeiro furo internacional de um jornalista é dele, o caso do sequestro do navio português Santa Maria, em janeiro de 1961, que rendeu prêmio Esso. Meu pai era corintiano, mas tinha o maior respeito pelo Santos e muita admiração pelo Pelé. Ele cobriu milhares de jogos de futebol", diz Silvia.
As imagens descobertas por Silvia serão base de um livro, com pesquisa e texto dos jornalistas Antero Greco e Roberto Salim. Para publicar a obra, Silvia organizou uma vaquinha virtual, que pode ser acessada aqui, assim como fez com o livro anterior, sobre a seleção brasileira.
"O projeto está inscrito na Lei Rouanet, mas com a pandemia os patrocínios derreteram. Por isso optamos pela vaquinha virtual. Toda e qualquer quantia é bem vinda, e há recompensas a partir de R$ 190,00. O livro terá tiragem única de 2 mil exemplares, trilíngue, capa dura. Nossa intenção é conseguir publicar este ano para dar este presente à torcida do Santos, neste ano que o Pelé completa 80 anos", afirma.
Tendo trabalhado no Estadão, nos Diários Associados, nas revistas Manchete, Cruzeiro, Fatos & Fotos, entre outros veículos de comunicação, entre 1948 e 1989, Antonio Lucio, que teve três filhos, também era um craque em sua função. Foi ele o criador do departamento de imagens do Zoológico de São Paulo. E, além do Esso de 1961, recebeu outro, por equipe, pela cobertura da inauguração de Brasília.
"Uma foto bem conhecida dele, que está em todas as bases do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, é a do bombeiro Geraldo carregando a bebê no combate ao incêndio do Edifício Andraus, em 1972", lembra Silvia.
De olhos abertos
O pai de Pelé, Dondinho ensinou o filho a cabecear com os dois olhos abertos, para ele ter a opção de tirar a bola do goleiro. O mesmo fazia Antonio Lucio ao fotografar, em uma época em que a tecnologia das câmeras começava a dar novas opções, conforme lembra Silvia.
"Ele realmente dominava muito bem a arte da fotografia, tinha um olhar pra lá de treinado. Ele fotografava com os dois olhos abertos, um no campo e outro no lance. Como ele pegou a evolução da câmera chapa de vidro para as câmaras reflex, desenvolveu uma prática invejável. Ele realmente fazia misérias com uma câmera fotográfica. Mas tinha esse lado artista também, de transmitir emoção nas imagens. E com certeza Pelé inspirou uma geração inteira de fotógrafos".
No jogo, conta-se que Pelé foi determinado a realizar o feito. Primeiro porque queria se "vingar" do Botafogo que, no turno anterior, ganhara do Santos, sem ele, e teria tripudiado a equipe praiana, tocando a bola com soberba em parte do jogo.
Depois porque ele queria a artilharia do Campeonato Paulista, do qual o Santos terminaria como campeão. Estava sete gols atrás de Flavio, do Corinthians. Atento, Antonio Lucio, que Pelé (chamado por ele de Dico) conhecia bem, intuiu o objetivo do craque.
Silvia conta que Pelé, anos depois, ao lado de companheiros, se emocionou ao ver as imagens mostradas por ela. Como as pessoas se emocionavam com seus gols.
"Pelé, Pepe e Lima só viram estas imagens na minha mão, no ano passado. O brilho no olhar deles vendo essas fotos, não vou esquecer nunca. Na época só foram publicadas quatro fotos, mas a qualidade da impressão (das fotos anteriores) era muito ruim e quase não dá para enxergar os lances", revela.
A vida de repórter fotográfico é difícil. Não são raros os que vivem de forma simples, em casas de bairros distantes ou pequenos apartamentos no centro.
Antes da correria, apegam-se aos pequenos desfrutes, como uma boa conversa no bar, um pingado com pão com manteiga, um chopinho, contando piadas, falando da vida ou apenas observando. Raul Seixas chamaria muitos deles de "malucos beleza".
Os hábitos módicos contrastam com um interior efervescente, que, todo dia, encara a árdua missão de parar o tempo. E mostrar que o presente, um dia, já existiu. Assim como cada um dos gols de Pelé.
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