Cairo Santos: ‘A paixão que o brasileiro pratica o futebol americano é inigualável’
Kicker dos Bears conversou com o Jarda por Jarda e falou das novas regras de field goal, Caleb Williams e sobre defender o Flamengo
Quando nós brasileiros nascemos, um dos primeiros presentes que recebemos é uma bola de futebol. Com o paulista Cairo Santos, de 32 anos, não foi diferente, mas a sua história mudaria décadas depois por conta da bola oval.
Apesar de ter viajado para os Estados Unidos em busca do sonho do soccer, foi o futebol americano que colocou Cairo nos holofotes internacionais. Ainda na faculdade, em 2012, quando defendia as cores de Tulane, o brasileiro recebeu o prêmio Lou Groza, entregue todos os anos ao melhor kicker universitário do país.
Embora não tenha sido escolhido no Draft da NFL, assinou com Kansas City Chiefs, em 2014, onde logo se tornou kicker titular da franquia. Após uma série de lesões e passagens rápidas por outras quatro franquias, reencontrou o bom futebol americano em Chicago, defendendo os Bears ao longo das últimas quatro temporadas.
Em entrevista exclusiva ao Jarda por Jarda, Cairo afirmou que vive atualmente a melhor fase da carreira. O kicker também comentou sobre a chegada do franchise quarterback Caleb Williams, as novas regras de kickoff e revelou o desejo de defender o Flamengo, clube do coração, no final da carreira.
Leia abaixo a entrevista com Cairo Santos:
Jarda por Jarda — Antes de falarmos sobre a sua carreira, como tem sido os dias em Chicago com a chegada do novo franchise quarterback Caleb Williams?
Cairo Santos — É sempre um ciclo novo, né? Você tem uma curiosidade de saber como é a pessoa. Acompanho o Caleb Williams desde a época do college, de alguns anos atrás, quando o nome dele já era elevado.
Essa é a segunda semana que eles [calouros] estão aqui desde que reuniram com o time depois do Draft, e tem sido muito legal ver a pessoa que ele é, que às vezes é diferente do que a mídia mostra. Sempre tem coisas que a gente realmente não sabe qual é a realidade. A gente vê dramas na internet, essas coisas, mas conhecendo ele pessoalmente, você gosta muito da personalidade dele.
Ele é diferente, tem uma certa aura, né? Acho que ele sabe lidar com esse momento de ser o primeiro jogador escolhido [no Draft], de ser o franchise quarterback, e eu vejo muito sucesso no futuro dele porque ele tem não só uma ótima ética de trabalho, mas sabe lidar com essa pressão muito bem.
Jarda — Estamos na offseason da NFL. Muitos recebedores postam vídeo correndo rotas, running backs postam vídeos levantando peso. Qual o processo de intertemporada de um kicker — tanto de exercícios físicos como técnicos?
Cairo — Nessa parte do ano, é hora para a gente focar mais no treino físico, na academia, para ganhar mais resistência na perna. E a gente chuta menos do que no Training Camp, em julho, e durante a temporada.
Então chuto duas vezes na semana com o time e os outros dias a gente foca mais nessa parte para ficar mais forte, ficar mais resistente, talvez treinar uma técnica nova que você quer. Tento não fazer muitas mudanças, ainda mais que tenho tido uma série de anos bons. Então, por mais que eu tente evoluir e melhorar, procuro não tentar me perder nessa procura da perfeição e tentar manter o que eu tenho feito.
De qualquer forma, [busco] melhorar a força, a resistência, a flexibilidade. Então é mais focado nisso [...] para estar forte e aguentar a temporada inteira.
Jarda — Você comentou que não chuta muito nesta fase da intertemporada, mas para esse ano a NFL trará novidades para o kickoff, que tem sido visto como um momento burocrático do jogo. Como você vê estas mudanças?
Cairo — A gente está praticando muito isso porque é uma novidade que não se tem muito filme ainda, muitas jogadas dentro das novas regras que eles colocaram. Então a gente está praticando esses chutes diferentes de kickoff para ter esse estudo, para a gente ver o que está acontecendo no retorno.
Tem chutes que não vão ser muito bons para a gente conseguir fazer aquela rede de proteção, fazer o tackle ali antes da linha de 30 jardas. Então tentar evitar chutes curtos ou muitos altos que o retornador pode só esperar a bola e sair correndo com aquele impulso.
Agora os jogadores não podem se mexer até a bola cair no chão ou ser pega pelo retornador. Então nisso você perde muito campo, né? Porque antes você podia estar correndo ali, velocidade máxima, e quando o cara pega a bola você já está na linha de 30. Agora a gente tem que estar parado na linha de 40 jardas.
É um estudo que está sendo feito. Pode ter mudança nas regras daqui até a temporada ou depois que a própria temporada começar.
Jarda — Na visão de um kicker, as novas regras vão atrapalhar o seu trabalho?
Cairo — Atrapalha. Essa regra cria mais oportunidade de retorno, que é algo bom porque a gente quer entretenimento, quer audiência. ‘Ah, é kickoff, vai ser touchback e não vou nem assistir’. Então, tendo mais oportunidade de retorno, pode gerar mais touchdown, field goals, pontos. Isso vai ter uma influência nos times pontuarem um pouco mais.
Afeta a vida do kicker porque talvez tenha que fazer mais tackles, talvez a gente perca mais [espaço de] campo. O objetivo [de um kicker] é dar um chute bom para [...] empurrar o time [adversário] pro campo deles. Então, se a gente não tiver fazendo isso, a gente está dificultando um pouco o resultado do nosso trabalho. Mas a gente entende que o objetivo disso é ter um jogo mais saudável para os jogadores que estão colocando o corpo deles em risco, ter mais audiência. Tudo isso vai dar frutos para os atletas que vão conseguir ganhar pelo time por causa dessa nova regra do kickoff. Enfim, sei que é para o bem da liga, para o nosso esporte, mas dificulta o meu trabalho sim.
Jarda — Cairo, você falou sobre field goals na sua última resposta. Você poderia comentar um pouco da sua rotina pré-field goal? Como você se prepara mentalmente na beira do campo para executar os chutes?
Cairo — Acredito muito em rotina. Ao longo dos anos fui estabelecendo uma rotina durante a semana de treino, rotina de pré-jogo, rotina durante o jogo e tento sempre me preparar para chutar na mesma rotina. O jeito que eu me aproximo para bola ou o jeito que eu respiro, as palavras que eu coloco na minha cabeça... tudo para tentar controlar o maior número possíveis de variáveis.
Isso ajuda na hora do chute de pressão. Quando é a hora de dar o chute, eu sempre foco na minha rotina. E essa rotina, como eu treino ela todo dia, todo chute que dou aqui no CT durante a semana, quando estou dentro dessa situação [de pressão], me parece que estou em um chute qualquer dentro da minha rotina diária. Isso ajuda demais a eliminar os fatores externos que criam essa pressão, criam esse barulho, e você foca nisso, naquilo tudo que você trabalha. A consistência dessa rotina te ajuda a ver os resultados.
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Quando erro um chute, isso me ajuda a mudar minha rotina, a melhorar algo da minha rotina. Às vezes estou dando meus passos muito rápido e não tendo aquela precisão de que estou alinhado certinho se dou meus passos devagar. O próprio sucesso de estar acertando um chute atrás do outro começa a te fazer andar rápido e ter mais confiança e às vezes isso acaba acelerando essa rotina também. Errando um chute, às vezes te lembra que estava indo muito rápido. Então deixa dou uma desacelerada nos meus passos e isso me ajuda a acertar os próximos 20 chutes.
Eu só cheguei nesse raciocínio através de psicólogos que tem aqui em Chicago e em outros times que já joguei. Foi uma área que só depois da minha lesão, quando estava no Kansas City, que realmente senti a necessidade de trabalhar porque a lesão criou muitas dúvidas, não só na minha parte física, mas também a capacidade de ter a performance de novo que tive no começo da minha carreira. Então passei por um momento difícil até chegar aqui nessa fase nos últimos quatro anos com os Bears.
Jarda — Minha pergunta seguinte era justamente sobre como se manter na liga. A maioria dos jogadores passa pouquíssimos anos na NFL. Entre os kickers, porém, aqueles que são bem-sucedidos, permanecem na liga facilmente até os 40 anos. Aos 32, o que você pensa sobre aposentadoria?
Cairo — Vou escutar meu corpo. De 30 anos até agora tem sido meu auge. E desde que eu consiga manter esse trabalho que faço de cuidar do meu corpo, de não chutar muito, de manter essa técnica que eu tenho hoje... Estou muito focado de manter essa base em que estou hoje em dia. Sinto que o foco na flexibilidade, no fortalecimento, na mobilidade é muito importante. Nos últimos anos tenho percebido isso.
Então, desde que consiga manter essa fase, acho que jogo por mais 10 anos. Vejo isso no meu futuro. Desde o primeiro ano, a cabeça [tem sido] em um dia, um treino de cada vez. Isso ajuda a manter o foco e não colocar expectativas que às vezes você não consiga chegar lá.
E tudo bem caso não consiga, mas desde que eu consiga maximizar meu potencial a cada dia, acho que assim vou chegar lá. Espero poder escolher quando que vou parar, mas não quero parar só por parar. Gosto muito do que faço, o desafio que é. Aprendo muito com as lições de jogos ruins, de dias ruins de treino, e é difícil às vezes lidar, mas tenho aprendido que isso tem me tornado uma versão ainda melhor.
Jarda — Em 2012, quando você ganhou o Lou Groza, foi a primeira vez que o grande público ouviu falar sobre Cairo Santos. De lá para cá, você se estabeleceu na liga, teve momentos de baixa, mas conseguiu superá-los. Você se considera um jogador bem-sucedido?
Cairo — Tenho muito orgulho por tudo que passei e por tudo que conquistei. As pessoas que estão ao meu lado durante essa jornada sempre me apoiaram. Independente dos momentos bons ou ruins, me ajudaram a lidar com tudo isso.
Quando perdi meu pai depois de ganhar o Lou Groza, o maior momento da minha carreira até ali, e no ano seguinte vendo meu nome cotado no Draft, entrando na NFL [...] passando pelas lesões que tive, pelos cortes que tive nas equipes e ter atingido o meu auge, o meu potencial, que é o que você procura como atleta todo ano, todo dia, tenho muito orgulho que consegui passar por cada obstáculo e fazer desses obstáculos algo para me fortalecer.
Em termos de títulos e essas coisas, comparo muito com o futebol. O Harry Kane [atacante inglês do Bayern de Munique], por exemplo, fez muitos gols, mas não ganhou nenhum título. Ele é um jogador bem-sucedido? Ao meu ver sim, porque ele fez o que é capaz de fazer e os títulos não são só de um jogador.
Gostaria de ter nesses últimos anos de carreira a oportunidade de chegar a um NFC Championship Game, um Super Bowl. Não ligo muito para Pro Bowl (jogo das estrelas da NFL) e essas coisas porque outros kickers podem ter oportunidades diferentes de que tive e vice-versa. Então não ligo muito, isso é só o resultado do ano que você teve e tudo mais.
Para mim, acho que gostaria mais de ter um título, de viver esse momento para poder sentir que conquistei um dos meus objetivos. E até lá, se continuar a evolução, essas conquistas e aprendizados, é o que que no fim vai me definir, a história que vou gostar de contar para as pessoas quando minha carreira tiver acabado
Jarda — Cairo, você já disse algumas vezes que torce para o Flamengo. Já pensou em jogar pelo clube no futebol americano nacional quando a carreira acabar? Pensa em voltar para o Brasil no futuro?
Cairo — Acho que morar no Brasil, por enquanto, a gente [Cairo e esposa] não pensa. Tenho dois filhos pequenos, de 2 e 3 anos, e eles são muito acostumados com aqui [Chicago]. Inclusive, a gente vai para o Brasil pela primeira vez mês que vem. Mas a gente nunca fala não para o Brasil porque a gente tem muita família aí, a gente gosta muito da cultura brasileira. Mesmo aqui, a gente faz churrascos, a gente vai em mercados brasileiros e mata aquela saudade de uma farofa, de um pão de queijo. Então o Brasil sempre vai estar dentro de mim. E agora depende do que as crianças vão estar fazendo quando a hora de decidir onde a gente vai morar chegar.
Mas pretendo sim, depois que minha carreira acabar, ainda estar envolvido no futebol americano. Já trabalhei com escolinhas de técnicos que me ajudaram ao longo da minha jornada e adoro trabalhar com isso. Acho que tenho uma visão da técnica, do jeito de ensinar e de inspirar. Os feedbacks que tenho tido de atletas com quem pude participar em camps, não só aqui, mas também nos camps que fiz no Brasil, tem sido algo que chega a me emocionar. A galera sente que ajuda, que contribui, que inspira eles. Então é muito gratificante para mim, é algo que quero continuar fazendo.
Acho que seria muito legal jogar na liga brasileira. A paixão que o brasileiro pratica o futebol americano é inigualável. Aqui o americano pratica porque se você jogar bem no high school, você pode ir para universidade. Se jogar bem no universidade, você vai para a NFL. No Brasil, esse caminho é muito difícil. Então assim, eles jogam pela paixão pelo esporte. O investimento muitas vezes é do próprio bolso, na maioria dos casos. Isso é muito bonito de ver.
Se a minha presença ajudar a aumentar o esporte, a gerar mais patrocínios e audiência para o esporte, vou lá com a minha perninha de 40 anos e dou uns chutes sim. Acho que seria muito legal viver isso com os jogadores brasileiros, com os fãs que estão cada vez mais acompanhando o esporte. Flamengo, se quiser abrir as portas um dia para o velhinho de 40 anos, vou estar pronto.
Jarda — Cairo, fique à vontade para mandar uma mensagem para os fãs brasileiros.
Cairo — Sempre gosto de agradecer demais. Vejo brasileiros praticamente em todos jogos aqui em Chicago, quando vou jogar em Boston, contra os Patriots, ou na Flórida. Sempre tem alguém com uma bandeirinha ali que chama o meu nome. Vejo eles me chamando e vou lá dar um autógrafo, tiro foto, selfie e isso é muito bonito de sentir porque eles torcem por mim.
Apesar de estar jogando contra a equipe deles, eles falam: ‘Cairo, espero que você acerte todos os seus chutes, mas que o Patriots ganhe hoje’. Aí eu falo ‘obrigado’.
Isso me motiva muito de representar o Brasil todo ano, estar com meu nome aqui representando o Brasil. A paixão do brasileiro conquistou a NFL de uma forma que a gente vai ter um jogo esse ano. Agradeço também os fãs e os espectadores por proporcionar essa oportunidade da gente viver esse sonho, então só gratidão mesmo. Tamo junto!
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