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Toque de recolher e abusos verbais: a vida das mulheres no futebol espanhol

Atletas detalharam mais de uma década de machismo sistêmico, com situações que vão desde paternalismo a falas depreciativas

Futebol|Do R7


Futebol feminino na Espanha tem histórico de abusos e excessos de autoridade
Futebol feminino na Espanha tem histórico de abusos e excessos de autoridade

Beatriz Álvarez disse que, no verão passado, quando assumiu a presidência da liga espanhola de futebol feminino, solicitou uma reunião por videoconferência com o chefe da federação de futebol do país, alegando que queria ficar em casa com o filho recém-nascido. Depois de décadas de gestão irregular, fazia pouco tempo que o futebol feminino se tornara totalmente sindicalizado e profissional, e o encontro era indispensável.

Mas Luis Rubiales, o agora criticado presidente da federação de futebol, recusou o pedido e sugeriu que outra pessoa fosse enviada, afirmando que Álvarez deveria se dedicar à maternidade em vez de participar da reunião. Depois disso, as reuniões continuaram sem a presença dela, e esse incidente foi apenas um dos muitos lembretes, tanto sutis quanto explícitos, ao longo dos anos de que, aos olhos do principal dirigente de futebol da Espanha, as mulheres deveriam se limitar a certos papéis, contou Álvarez em uma entrevista.

Esse desequilíbrio de poder veio a público depois que a Espanha venceu a Copa do Mundo no mês passado e Rubiales beijou à força a jogadora principal, Jenni Hermoso, ao vivo na televisão. Hermoso apresentou uma queixa-crime à promotoria pública, desencadeando uma investigação para determinar se o beijo foi um ato de agressão sexual.

Esse beijo provocou uma reação generalizada no futebol feminino do país. No dia 5 de setembro, a Espanha demitiu o técnico da seleção feminina, Jorge Vilda, que havia sido criticado pelas jogadoras por seu estilo de gestão autoritário e humilhante. Sua substituta, Montse Tomé, de 41 anos, é a primeira mulher a ocupar esse cargo na Espanha.

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Em entrevistas ao "The New York Times", mais de uma dúzia de mulheres envolvidas com o futebol espanhol detalharam mais de uma década de machismo sistêmico, com situações que vão desde atitudes paternalistas e comentários depreciativos até abuso verbal. Relataram que eram submetidas a um toque de recolher e obrigadas a manter as portas dos quartos de hotel entreabertas à noite.

Houve até o caso de uma funcionária de alto escalão que renunciou depois de concluir que sua contratação era apenas uma fachada. Veronica Boquete, ex-capitã da seleção nacional, contou que o antecessor de Vilda, Ignacio Quereda, costumava dizer às jogadoras: "Você precisa mesmo é de um bom homem e de um pênis grande." (Quereda negou ter sido verbalmente abusivo.)

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Com seu beijo e seu desafio diante da recriminação pública, Rubiales personifica os problemas do futebol espanhol. Álvarez o definiu como um "machista egocêntrico" que nunca se importou com a liga feminina e que conduziu o esporte "com base na depreciação e na humilhação".

Rubiales não respondeu a um pedido de entrevista, e sua agora ex-federação de futebol se recusou a responder às perguntas do "Times" ou mesmo encaminhá-las a Rubiales. Rubiales se descreve como uma vítima do "falso feminismo".

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Para as jogadoras, a saída não foi o suficiente, porque os problemas do futebol espanhol são anteriores à sua chegada e exigem grandes mudanças para ser resolvidos. Dezenas de jogadoras atuais e antigas firmaram um abaixo-assinado exigindo reformas na administração. Elas expõem suas queixas e traçam estratégias em um grupo do WhatsApp chamado "Se Acabó", que significa "Acabou" em espanhol.

As jogadoras reivindicam salários mais altos, a manutenção do contrato durante a licença-maternidade e acesso aos mesmos nutricionistas e fisioterapeutas disponíveis para os homens. Além disso, estão considerando a possibilidade de fazer uma greve para garantir esses benefícios. As autoridades sindicais afirmam que o salário mínimo para as mulheres é de 16 mil euros (pouco mais de US$ 17 mil), em comparação com o de 180 mil euros (mais de US$ 193 mil) para os homens.

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Ana Muñoz, ex-vice-presidente de integridade da federação de futebol, informou que, depois de uma competição, cada jogadora recebeu um tablet em vez de um prêmio em dinheiro, e que na época Rubiales justificou essa decisão dizendo: "Tenho filhas. Sei o que as mulheres gostariam de ganhar."

Muñoz, que renunciou em 2019 depois de um ano no cargo, revelou pela primeira vez os motivos de sua saída: "Eu era só uma figura decorativa, como um vaso de flores." Ela também disse que levantou preocupações éticas relacionadas a várias decisões de Rubiales, incluindo um acordo de US$ 43 milhões para transferir uma competição de futebol para a Arábia Saudita.

Essa medida está sendo investigada, bem como as alegações públicas de seu ex-chefe de gabinete e de outras pessoas de que Rubiales usou dinheiro da federação para organizar uma orgia em uma propriedade na costa sul da Espanha. (Rubiales já havia negado qualquer irregularidade em ambos os casos.)

Muñoz destacou que 15 dos 18 membros da diretoria da federação eram homens, e que foram rejeitadas as tentativas dela de afastar temporariamente um membro enquanto este era investigado por ter usado dinheiro da federação na reforma de sua casa e nos negócios de sua esposa. Também afirmou que não tinha autoridade no cargo que ocupava: "Eu não conseguia entender o fato de um departamento de integridade não lidar com questões de integridade."

No ano passado, as jogadoras tentaram, sem sucesso, forçar uma mudança por causa do comportamento de Vilda, o agora demitido técnico da seleção.

Boquete recordou que durante sua passagem pela seleção nacional, de 2015 a 2017, quando ela era a capitã e Jorge Vilda o treinador, ele insistia que as jogadoras tomassem café em locais onde ele pudesse observá-las. Ela disse que ele queria monitorar a linguagem corporal delas, com quem estavam se encontrando e saber se estavam reclamando dele. E que as capitãs das equipes recebiam instruções sobre onde deveriam se sentar durante as refeições para que Vilda pudesse manter contato visual com elas.

Vilda também exigia que as jogadoras mantivessem a porta aberta à noite até que ele verificasse se cada uma estava na cama. "Ele queria controlar tudo", afirmou Boquete.

Não se sabe se essas práticas continuaram na seleção mais recente, porque as atletas se recusaram a dar declarações em meio à controvérsia. Segundo pessoas que convivem com as jogadoras, elas temem possíveis retaliações. Em raras ocasiões em que os agentes declararam que suas clientes queriam se pronunciar, os clubes rejeitaram tais pedidos.

Quinze jogadoras acabaram se unindo, recusando-se a jogar sob o comando de Vilda. Rubiales se recusou a demiti-lo, e a federação exigiu que as jogadoras se desculpassem antes de considerar seu retorno à equipe.

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Algumas jogadoras ficaram particularmente irritadas, depois da vitória na Copa do Mundo e da controvérsia sobre o beijo, quando Rubiales não só se recusou a renunciar e pedir desculpas, como também anunciou planos de renovar o contrato de Vilda e aumentar seu salário. No entanto, essa decisão foi revertida com a demissão de Vilda e após a saída de Rubiales. 

Desde o início, Rubiales resistiu à profissionalização do futebol feminino, segundo registros obtidos pelo "Times". Em 2020, quando a criação de uma liga de futebol feminino oficial e sindicalizada estava em discussão, a federação nacional liderada por Rubiales se opôs à ideia, de acordo com um documento do Conselho Nacional de Esportes da Espanha.

Rubiales questionou se os clubes poderiam arcar com os custos, de acordo com María José López, a principal advogada do principal sindicato de jogadoras da Espanha, que participou das negociações. Mas ela suspeitava que a verdadeira razão de Rubiales era evitar conceder poder às equipes femininas: "Especificamente, ele não queria que os clubes negociassem os direitos de transmissão de TV."

Não é apenas a Espanha que trata suas jogadoras dessa forma; longe disso. Em 2004, o então presidente da Fifa, Sepp Blatter, sugeriu que as mulheres poderiam ter melhor desempenho esportivo usando shorts mais justos. Durante uma entrevista em 2015 em Zurique, ele repetidamente acariciou o cabelo de uma repórter do "Times".

Potências europeias como a Inglaterra e a Alemanha proibiram as mulheres de jogar futebol durante anos, até 1970.

"Os espanhóis não são uma exceção. Representam totalmente a norma", afirmou Andrei Markovits, professor de política da Universidade do Michigan e autor de "Women in American Soccer and European Football" (As mulheres no futebol americano e no europeu, em tradução livre).

A temporada de futebol feminino profissional na Espanha já está na segunda rodada. Mas, líderes sindicais alertam que, na ausência de um acordo, uma greve pode paralisar a temporada pouco após seu início.

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