Imitar um galo desmoralizou a carreira de Zé Carlos. Ingenuidade sabotou o lateral, que estreou na Seleção na semifinal da Copa de 1998. E nunca mais voltou
Aos 56 anos, morreu o lateral que teve uma das carreiras mais surreais no futebol brasileiro. E que, ingênuo, resolveu comemorar sua inesperada convocação para a Copa de 1998 imitando um galo para a imprensa. Se sabotou. Passou a não ser levado a sério
Cosme Rímoli|Do R7
Zé Carlos teve uma péssima ideia ao ser convocado para a Copa de 1998.
Ele quis repetir o que fazia entre os companheiros do São Paulo.
E bateu no peito e imitou um galo.
O gesto ficou grudado no seu nome como tatuagem.
Na França, cobrindo o Mundial, percebia o desprezo, a ironia com que ele era tratado.
Principalmente pela imprensa do Rio de Janeiro.
Seu futebol visto de maneira preconceituosa.
Pela postura simples, ingênua, entrevistas sem profundidade e, principalmente, pela imitação do galo.
Ele sofreu com isso.
Foi menosprezado. Nas poucas entrevistas que deu em Ozoir-la-Ferriére, não era levado a sério.
Até porque estava completamente intimidado, treinava mal, não conseguia mostrar o mesmo futebol viril, de ultrapassagens rápidas, ótimos cruzamentos e marcação firme, como fazia no São Paulo.
Nós, jornalistas paulistas que cobríamos a Copa, ficamos assustados com o fraco rendimento nos treinos de Zé Carlos.
Pesou demais ter sido a sua primeira convocação justo para a Copa.
Situação bizarra que Zagallo deveria ter evitado.
O treinador estava aborrecido com Flávio Conceição, que assumiu publicamente não gostar de atuar improvisado na lateral, e foi esquecido para o Mundial da França.
E Zé Carlos, que começou 1997 desempregado, um ano e meio depois estava na Seleção, como reserva de Cafu.
Ele foi bancário, metalúrgico, só começou a jogar futebol com 21 anos.
Atuava em times pequenos como São José, Nacional, São Caetano, Portuguesa, Marília, União São João.
Depois de uma decepcionante passagem pelo Juventude, em 1996, ficou desempregado.
Sem empresário estava disposto a abandonar o futebol.
Foi quando foi chamado pela Matonense.
Era a última chance que daria para o futebol.
Só que foi tão bem, na conquista do A2, que despertou o interesse do então treinador do São Paulo, Dario Pereyra.
Ele mesmo telefonou para Zé Carlos, que, a princípio, ficou desconfiado se a ligação era verdadeira.
Era.
Foi jogar no São Paulo no segundo semestre de 1997.
Era o quarto atleta na posição, atrás de Cláudio, Pavão e o paraguaio Isasi.
Mas ele foi se impondo pela força física e técnica.
Tinha bom potencial, que ainda não havia sido desenvolvido.
Bastou para ganhar a Bola de Prata, troféu muito comentado, na época, entregue pela revista Placar.
Foi escolhido como o melhor lateral direito do Campeonato Brasileiro.
E a cereja do bolo foi ganhar o Campeonato Paulista de 1998.
Zagallo surpreendeu o país ao chamá-lo para a Copa da França.
Seria o reserva de Cafu, não estava programado ele entrar em partida alguma.
Para piorar a situação, ele estava há 52 dias sem jogar futebol.
Só treinando, por conta de eliminações do São Paulo.
E Cafu recebeu o segundo cartão amarelo contra a Dinamarca, nas quartas.
Zagallo, sem saída, resolveu apostar em Zé Carlos.
Ele iria estrear na Seleção na semifinal de uma Copa do Mundo, contra a Holanda.
Em Marselha, onde seria a partida, o clima na imprensa brasileira era de muita preocupação. Lembro muito bem de Zé Carlos respondendo várias e várias vezes se estava com medo de Zenden, habilidoso meia/ala holandês que descia pela esquerda.
Soube depois que Cafu e Roberto Carlos fizeram questão de acalmar Zé Carlos, insistindo que jogasse como no São Paulo.
Zagallo colocou mais pressão, e enganou a nós jornalistas.
“E ele não imita galo, passarinho e cachorro na concentração? Pois ele vai ter de imitar o Cafu”, disse o técnico.
Só que na partida, Zé Carlos ficou preso na lateral, proibido de passar do meio-campo brasileiro.
Dunga teve a missão de ficar à sua frente, ajudando na marcação, com Júnior Baiano na cobertura.
O técnico holandês Guus Hiddink tratou de colocar Zenden, Cocu e Kluivert no lado esquerdo.
O Brasil tomou enorme sufoco.
Zé Carlos foi firme na marcação.
Mas Taffarel fez excelentes defesas, que evitaram a derrota.
E nos pênaltis foi sensacional.
Zé Carlos estava absolutamente aliviado e emocionalmente desgastado depois da partida.
Ele não entrou na derrota na final para a França.
E nunca mais foi convocado.
Zé Carlos voltou para o Brasil desacreditado, foi uma das maiores vítimas daquele Mundial.
Não era levado a sério pela imprensa.
Perdeu confiança em campo.
Sua carreira fulminante entrou em decadência de maneira mais rápida ainda.
Não rendia no São Paulo, foi emprestado para o Grêmio, não ficou.
Foi para a Ponte Preta, Joinville, Noroeste.
E se aposentou.
Para entender um pouco a sua personalidade, vale essa resposta que deu para o site arqtricolor, em março de 2022.
“Eu sou do interior de São Paulo, eu vivia na roça, agora não, mudou tudo completamente, energia, tem tudo. Na época que eu morava aqui até os 10 anos, em casa não tinha energia elétrica, não tinha geladeira, tudo complicado, o chuveiro colocávamos água em um lugar pendurado, abria a torneirinha para sair água, a situação que eu vivia ali era complicada, mas era o que nós tínhamos na época.
(...) Imitava galo, cachorro, convivia com isso, né (risos), a gente brincava, eu gostava de fazer, porque sempre fui alegre, extrovertido, brincalhão. Os caras gostavam porque era algo diferente, tem pessoas que nunca viveram em um sítio, não sabe o que é um quiabo, um milho como é, amendoim, feijão, só vê só no mercado, mas tem que bater o feijão para soltar, um galo, às vezes vê só pela televisão, eu vivia no meio disso.”
Zé Carlos, que morreu hoje, dia 25 de outubro de 2024, aos 56 anos.
Ele era puro demais para o futebol...
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O Rubro-Negro entrará em campo neste sábado (26), às 16h30, pelo Campeonato Brasileiro.
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