Celsinho protesta. Pleno de STJD perdeu a chance de punição exemplar ao racismo
Ricardo Chicarelli/LondrinaSão Paulo, Brasil
Pelé, Garrincha, Neymar, Didi, Leônidas, Friedenreich, Zizinho, Coutinho, Djalma Santos, Ronaldinho Gaúcho, Coutinho.
Todos estariam proibidos de jogar na Seleção Brasileira, em 1921.
Há cem anos, o presidente Epitácio Pessoa ordenou ao então presidente do Conselho Nacional de Desportos, José Eduardo de Macedo Soares.
Para preservar a imagem do Brasil no Exterior, a seleção de futebol deveria ter só jogadores brancos. Epitácio Pessoa havia ficado irritado porque jornais argentinos, que retratavam o selecionado brasileiro de 1920, repleto de negros, como macacos.
A raiva do presidente não foi com os preconceituosos órgãos de imprensa argentinos, mas com o fato de o Brasil ter negros na sua seleção.
A ordem foi atendida.
Naquela época, muitos jogadores negros, para esconder sua cor, passavam pó de arroz nos seus rostos, braços e pernas. Para serem confundidos com brancos.
Na maioria das vezes, para burlar dirigentes dos próprios clubes que defendiam.
Situação revoltante.
Não por acaso, o Brasil foi o último país a acabar com a escravidão.
A Seleção Brasileira retratada como formada por macacos. Em jornal argentino no século passado
ReproduçãoCem anos depois, neste 20 de novembro de 2021, no Dia da Consciência Negra, o futebol brasileiro segue dando exemplo de tolerância absurda ao preconceito racial.
O jogador Celsinho do Londrina é negro e usa cabelo grande, black power.
O que bastou para ser vítima de preconceito.
Em julho, no empate em 0 a 0, entre Goiás e Londrina, pela Série B, o narrador Romes Gomes e o comentarista Vinícius Lima, da rádio Bandeirantes Goiânia, travaram esse diálogo no ar, para milhares de pessoas ouvirem.
"Celsinho sentiu, tomou uma pancada no tornozelo esquerdo, está levantando mas o cabelo dele deve pesar demais, né Vinícius?", ironizou Gomes
"Exatamente, rapaz, parece mais um bandeira de feijão, né Romes, a cabeça dele do que um verdadeiro cabelo. Não é porque eu já estou perdendo os cabelos que eu vou achar um negócio imundo desses bonito. Parece mesmo uma bandeira de feijão", detalhou o comentarista.
Ambos foram suspensos da rádio. E imploraram desculpas nas redes sociais.
De forma inacreditável, mostrando que o racismo não é punido com o rigor que merece neste país, cinco dias depois, Celsinho foi outra vez humilhado em uma transmissão. Desta vez, o narrador Cláudio Gomes, da rádio Clube do Pará, decidiu também fazer piada com o cabelo do jogador negro.
Ao ver Celsinho correr para cobrar uma cobrança de falta, ele deixou escapar a frase racista.
"Celsinho vai com seu cabelo meio ninho de cupim bater falta."
Garrincha e Pelé. Dois gênios negros a quem o futebol brasileiro é eternamente devedor
CBFMesma situação.
Depois, arrependido, foi para as redes sociais pedir desculpas.
E a vida seguiu.
Até que o Londrina foi enfrentar o Brusque.
No noite de 28 de agosto, em Santa Catarina, o jogador ouviu a seguinte frase nas arquibancadas, ainda quase vazias, pela pandemia.
"Vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha."
Júlio Antônio Petermann, presidente do Conselho Deliberativo do Brusque, comparou o cabelo do jogador negro a um casulo de abelha. Na transmissão da partida é possível ouvir o grito de 'macaco' dirigido a ele, também vindo da arquibancada, de outra pessoa não identificada.
A partida acabou 0 a 0.
No dia 24 de setembro, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) julgou o caso. Decidiu suspender Petermann por 360 dias de jogos de futebol, multar o Brusque em R$ 30 mil.
E o principal: tirar três pontos do clube catarinense.
Sentença exemplar. Servindo para coibir o racismo no Brasil.
Mas acontece que o Brusque recorreu.
E há dois dias, o plenário do STJD decidiu devolver os três pontos para o Brusque.
Transformar a retirada dos pontos em uma partida sem torcida, a ser cumprida só em 2022.
Maurício Neves Fonseca (relator) e Paulo Sérgio Feuz votaram pela perda dos pontos.
Felipe Bevilacqua, Mauro Marcelo, Luiz Felipe Bulus, Ivo Amaral e Sérgio Martinez votaram pela devolução dos pontos.
Auditores que devolveram os pontos ao Brusque. Nenhum deles era negro
Reprodução/STJDTrês pontos que podem salvar o clube catarinense do rebaixamento.
E fazer justamente o Londrina ir para a Segunda Divisão.
Não foi uma vitória do Brusque.
Foi enorme derrota da luta contra o racismo no futebol brasileiro.
Porque a jurisprudência está aberta.
Ou seja, se algum membro oficial de um clube ofender um jogador por sua raça pode ficar tranquilo. Porque seu clube não irá perder pontos.
Não com a justiça esportiva brasileira.
100 anos depois, o país segue tolerante com o racismo.
É uma situação constrangedora.
Carlos Alberto, jogador negro, que passava pó de arroz no rosto, para ser confundido com branco
FluminenseNegros e pardos foram 54% da população brasileira.
Só 17%, de acordo com levantamento do IBGE, em 2015, fazem parte da parte rica do país.
Nos dois julgamentos do Brusque, no STJD, não havia sequer um auditor negro.
Feliz feriado a todos.
Dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra no Brasil...
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.