Saiba quando futebol e política realmente se misturam
Uma coisa é a legítima manifestação política de jogadores e torcedores, a outra são interesses mesquinhos que não passam de politicagem
Copa 2018|Eugenio Goussinsky, do R7
Falar que futebol e política não se misturam já é uma postura política. A definição de política tem total relação do indivíduo com o meio que o cerca e, neste sentido, só o fato de uma pessoa sair de casa, olhar as pessoas na rua, dirigir no trânsito, interagir com a multidão no metrô já é uma atitude política.
Também para o bem e para o mal, esporte e o futebol, portanto, só conseguiriam estar alheios a isso se fossem praticados em outro planeta. O que é considerado prejudicial, e que muitos questionam, é a mistura de futebol com politicagem, um nível mais superficial do que é a política.
Esse foi, por exemplo, o interesse do ditador politiqueiro Ramzan Kadyrov, que deu a Mohamed Salah, que estava, com a seleção egípcia, hospedado na Chechênia, o título de cidadão honorário, na semana passada.
Real política
Mas as manifestações de jogadores e técnicos têm mais a ver com o nível mais profundo da política e não com interesses comerciais ou mesquinhos de políticos e dirigentes.
As comemorações dos suíços Xakha e Shaqiri, no jogo contra a Sérvia, pela Copa do Mundo, os levaram a ser punidos pela Fifa, que os multou em 10 mil francos (R$ 38 mil) por se manifestarem politicamente contra a manutenção de Kosovo, de origem albanesa, sob controle da Sérvia.
Shaqiri é kosovar, assim como os pais de Xakha. Eles comemoraram fazendo com as mãos o gesto da águia dupla, um símbolo da Albânia.
Mas, por mais que a entidade tente controlar este tipo de manifestação, para que ela não se espalhe, não há como ela desatrelar o futebol dos acontecimentos mundiais.
Em 1999, a Sérvia, então Iugoslávia, se envolveu em um sangrento conflito com separatistas de Kosovo, o que gerou inclusive uma ação militar da Otan contra o famigerado governo do sérvio Slobodan Milosevic, autor de vários massacres que nem a Fifa nem a história conseguem esconder. Tanto que ele foi preso, após ser condenado pelo Tribunal de Haia.
Não foi a primeira situação que expôs essa relação entre esporte e política. Já na Copa do Mundo de 1934, a seleção da Itália foi utilizada como instrumento político do fascismo. O título daquele Mundial, realizado em território italiano, serviu como propaganda para o ditador Benito Mussolini. Não se sabe quais jogadores eram contrários a esse fenômeno, mesmo porque eles poderiam correr sérios riscos de vida caso revelassem sua verdadeira opinião.
Vinte anos depois, a seleção húngara despontou para o mundo jogando um futebol organizado e talentoso. O regime comunista, controlado pela União Soviética, tentou fazer daquela equipe um símbolo da eficiência que os próprios comunistas atribuíam a eles mesmos.
Mas, os jogadores, inconformados com as interferências deploráveis (essas sim, por pura politicagem), deixaram o país e se exilaram nos anos 50, após uma histórica excursão do Honved, time que eles defendiam, pela América do Sul, com jogos no Brasil. A federação vetou a viagem, com medo de deserções, mas os jogadores a bancaram e sofreram as consequências.
O craque húngaro Ferenc Puskas foi punido pela Fifa e ficou cerca de um ano parado. Mesmo gordo e inativo, foi convidado pelo então presidente do Real Madrid, Santiago Bernabeu, a jogar pela equipe espanhola, aceitando e, já livre da punição, recomeçando a carreira. Outros que foram jogar na Espanha, pelo Barcelona, foram Sandro Kocsis e Gyula Czibor.
Nos anos 70, ficou famosa a maneira como a ditadura militar brasileira tentou interferir na seleção, antes da Copa do Mundo no México.
Não é lenda a resposta do politizado João Saldanha, ex-jornalista que assumiu o comando do time, quando, impelido pelo general Emílio Garrastazu Médici a convocar o atacante Dario, retrucou com a frase, "o senhor escala seu ministério e eu a seleção". Ele foi demitido na ocasião, deixando de comandar a seleção que conseguira a classificação para a Copa sob seu comando.
Guerra e paz
No Chile, na época da sangrenta ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), foi a vez de Carlos Caszely se manifestar de forma corajosa contra aquele regime.
Tendo sua mãe sido torturada nos porões do governo chileno, o então jogador se recusou a apertar a mão de Pinochet, no chamado "Jogo da Vergonha". Na ocasião, a União Soviética se recusou a enfrentar o Chile nas Eliminatórias (por causa da ditadura) e a Fifa aprovou o jogo, mesmo realizado sem adversário. O Chile se classificou para o Mundial de 1974.
Outros jogadores conhecidos por seu cunho político foram Afonsinho, nos anos 70, e Sócrates, nos anos 80. Ambos foram corajosos em expor suas opiniões em favor da democracia, quando o Brasil vivia uma ditadura militar.
Participante do movimento estudantil e atuando em prol dos direitos dos atletas, em pleno regime Médici, Afonsinho foi monitorado pelos órgãos de segurança do governo.
Em 1982, Sócrates, por sua vez, encabeçou a chamada Democracia Corinthiana, que desafiava o sistema rígido do futebol, utilizando este movimento como um símbolo de luta pelo retorno da democracia ao país, que ocorreu sete anos depois.
Até Pelé, que para muitos é um jogador alheio aos interesses das causas populares, se manifestou politicamente durante sua carreira.
O próprio alerta para que a sociedade se preocupasse com as crianças, principalmente aquelas em situação de pobreza e falta de perspectivas, feito na ocasião de seu milésimo gol, em 1969, foi uma manifestação política que, por sinal, vinha carregada de uma profunda verdade.
O Santos de Pelé, inclusive, interrompeu dois conflitos, no Congo e na Nigéria, em excursões em 1969. Na Nigéria, dirigentes conseguiram um cessar-fogo com separatistas de Biafra para que a partida ocorresse.
No Congo, então conhecido como Congo belga, militares, comandados pelo major Marien Ngouabi, então presidente empossado em 1968 após golpe de Estado, lutava contra rebeldes que tentavam tirá-lo do poder. Para a partida, ambos os lados paralisaram os combates para permitir a passagem da delegação santista e a realização de dois jogos.
O futebol, enfim, serve, em última instância, para promover a paz. Cada vez que a Fifa, sempre inserida em interesses políticos e, muitas vezes, de politicagem, tenta negar isso, está, no fundo, negando o real sentido, político, de sua existência.