Em 'Vita Mia', um tocante passeio de Cyro de Laurenza pela Pauliceia
Num livro lindo, o mestre do cálculo do concreto protendido, também um defensor do transporte ferroviário e, nas horas vagas, excelente saxofonista, evoca os desbravadores da zona leste
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti

Naqueles meus idos de estudante de arquitetura, entre os anos de 1963 e 1967, era comum que os da minha turma, arrogantemente, e grosseiramente até, considerassem que éramos artistas privilegiados enquanto os outros da engenharia não passariam de meros misturadores de concreto. Tolice mais do que cretina, eu descobri, no decorrer do curso, ao ter aulas de protendido com o saudoso Roberto Zuccolo, o calculista mágico que transformou em realidade o precioso projeto do Museu de Arte de São Paulo, que Lina Bo Bardi havia desenhado com o seu vão livre, sem pilares, de absurdos 74 m.

Um dos pupilos do Zuccolo, também ele de ancestrais italianos, Cyro de Laurenza foi sumariamente o melhor de todos os educadores que eu conheci, do primário até a universidade e aos meus pós. Era um poeta, um jovem docente com os ares de um anjo barroco, que não admitia que o chamássemos de professor. Graças ao Cyro eu me fascinei por disciplina aparentemente tão rústica, a ponto de, em suas provas, ultrapassar o tema exigido e inclusive propor estruturas de audaciosa fantasia. Posteriormente, ele seguiu carreira na administração pública e, em certa ocasião, quando visitei um concorrido bar paulistano de música ao vivo, me surpreendeu como o excelente saxofonista de uma banda de amadores batizada de Swingin’ Sound. Uma performance incrível, sensacional.

Pois agora o já veterano Cyro me impacta como o autor temporão de um livro de fato delicioso, Vita Mia, editado pela Laserpress, 306 páginas do que parece ser, pelo título, uma autobiografia, e no entanto vai muito, muito além. Trata-se, na verdade, da saga empolgante de uma “famiglia”, mescla de várias origens da Velha Bota, do Vêneto a principalmente o Sul, Salerno, que buscou, como a minha, o “risorgimento” na América. Vita Mia não se limita à trivial exposição dos fatos óbvios em ordem cronológica. Com o suporte sereno e afetuoso da jornalista Ana Maria, também sua esposa desde 1983, erigiu uma obra de texto irretocável, no qual as descrições se enriquecem com flashbacks.

O capítulo 1, “Último encontro, hoje perdi meu pai”, datado de setembro de 1939, é empolgante em sua cinematografia. Acontece uma briga de rua, no bairro paulistano do Brás, entre a Serraria do Almeida e a linha de trem da Central do Brasil, o Cyro bebê no colo da “mamma” Vanice e a irmã Lelé, 6 de idade, agarrada à saia da progenitora. Diante de circunstantes que ora se omitem, ora torcem e ora tentam apartar, ali se engalfinham um senhor, o pai de Vanice, e seu marido, um jogador de cartas e descontrolado apostador em cavalos, que tinha abandonado a dama e se sentia no direito de rever os bambinos. Tal contenda o apostador perdeu. E derrotado desapareceu da vida de Cyro, Lelé e Vanice.

O lírico estilo, entre emocionado e aliviado, ou entre magoado e irônico, com que Cyro descreve a cena já prenuncia como seguirá seu mergulho apaixonado nas aventuras de uma “brava gente” que, adequado pleonasmo, literalmente desbravou boa parte da zona leste de São Paulo. Das suas frases emanam aromas de molhos, o gosto de lágrimas, a temperatura de febres e o temor pela eclosão da Segunda Guerra Mundial. Pena, só, que a sua Vita Mia não vá além de 1945. Quem ler o livro sem conhecer outros detalhes de seu lado profissional, na prancheta ou na escrivaninha, não saberá que ele, desde a década de 1980, batalha ingentemente pela valorização dos transportes ferroviários no país. “Valorização”? Ah, essa palavra não passa de um eufemismo triste para algo que nem existe mais.

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