Da Travessia do Casão ao Túnel de LeCarré, ótimas leituras de 2020
De todo modo, foi... Sem Papas da Língua, da psicóloga Mariangela Blois, um livro delicado sobre como encarar a fatalidade do Câncer, aquele que mais me tocou no ano
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti

Especialmente nos idos peculiares como estes de 2020, em que praticamente não saí do reduto que me serve ao ofício e à habitação, os eventos de Natal e de Ano Novo meramente me lembram de como fica mais difícil, além dos 70 de idade, uma passagem de tempo. De todo modo, sou incapaz de acusar 2020 pelos males da Humanidade. Pobre 2020, não tem culpa pelo que representantes da tal Humanidade perpetraram às suas costas. E também não me cabe desejar Feliz 2021, visto que um ano numérico não passa de uma formalidade de calendário. Considero impossível desvencilhar o dia 31 de Dezembro do 1º de Janeiro. Aliás, na verdade, agradeço a 2020 porque não adoeci, continuei a produzir e li, sim, eu li, e bastante.

Não, eu não aderi à tecnologia dos e-books. Permaneço um fã obstinado do papel. Lembro da infância em que o meu Nonno Battista dispunha de estantes até mesmo nos banheiros de sua casa. Ou da meninice em que meu pai, Eduardo, aparecia no nosso sobradinho de vila com uma valise repleta de obras que recolhia de um amigo, o dono de uma farta livraria no Centro Velho da Paulicéia. Pude conhecer clássicos luso-brasileiros como Eça e Machado, Lobato e Amado, mais os estrangeiros em ebulição, como Scott Fitzgerald, Hemingway, Morris West. Em honra do código da palavra, já bem adulto, até cometi a audácia de perpetrar um romance, “Em Nome do Pai dos Burros”.

Neste 2020 eu fiz a “Travessia” com Gilvan Ribeiro e o sempre craque Casagrande, um raconto pungentíssimo da batalha sem fim de um homem especialmente inteligente contra a adicção das drogas. Retornei a diversas de tantas viagens futebolísticas na companhia do delicioso “Minha Vida de Repórter” do amigo José Maria de Aquino”. Em “Medo”, de Bob Woodward (do “Washington Post”, que ajudou a derrubar Richard Nixon), sobre a delirante Casa Branca na administração Trump, pude vislumbrar o final que enfim teria um amalucado na presidência dos EUA.

Aqui no Brasil, Mário Magalhães, velho companheiro de “Folha de S. Paulo”, me apresentou uma “biografia” de 2018 em “Sobre Lutas e Lágrimas”. Também da “FSP”, Thaís Oyama me exibiu, em “Tormenta”, semelhanças entre a Casa Branca de Trump e o Palácio do Planalto do Governo Bolsonaro. Houve ainda o duro diagnóstico de “Um Paciente Chamado Brasil”, no qual Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, discorre a respeito dos seus dilemas no combate à Covid-19. E enfim, presente de Natal, que recebi de meu filho Dado, o preciosíssimo “O Tunel de Pombos”, em que o mago John LeCarré, o espião que virou autor, conta histórias verdadeiras que, pela qualidade da sua pena, se transformam em enredo.

Nesse cenário, todavia, consegue se sobressair um lindo trabalho que fechou o meu 2020 com um punhado de lampejos de esperança. De título “Câncer sem Papas na Língua”, da psicóloga Mariangela Blois, em somente 94 páginas, redigidas como quem conversa, ela suavemente trata das suas próprias relações com pacientes, familiares e amigos, todos emaranhados no suposto drama daquela que, lá atrás, na minha infância, era a “Doença Ruim”.

Diplomada pela PUC-SP, uma integrante da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia e da Sociedade Brasileira de Psicologia, ela, fundamentalmente, ministra uma lição que serve para se enfrentar qualquer mal: “Doenças são bem democráticas”. Ou, não escolhem a quem atingirão, homens, mulheres ou crianças. E cada paciente é apenas uma pessoa, um indivíduo, e jamais uma estatística. “A pior das doenças é aquela que a pessoa tem”. Assim, que se enfrente o mal com a verdade e com carinho. Doenças não admitem fantasia ou mentira. E eu me permito, com a devida vênia de Mariangela, uma transliteração. Pode vir, 2021, e que seja um exemplo do triunfo da compaixão.
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