Brasil X França, no México/86, o "Jogo do Século"? Mas como?
Na falta de assunto em que a Covid-19 mergulhou o mundo dos esportes, até mesmo a FIFA inventa moda e cria uma polêmica divertida porém inútil
Silvio Lancellotti|Do R7 e Sílvio Lancellotti

O drama da falta de inspiração ou de assunto não atinge exclusivamente os jornalistas e os escritores. Neste final de semana, o último do mês de Março de 2020, sem um único e escasso tema da atualidade para colocar na capa da sua revista eletrônica, a FIFA elegeu como “O Jogo do Século”, claro, Século XX, o combate França x Brasil nas quartas-de-final da Copa do México/1986. Sinceramente, não creio que, sequer para os torcedores franceses, tenha sido aquele o seu prélio inesquecível. Certamente, valeu muito mais o cotejo de 1998, entre as mesmas seleções, quando “Les Bleus” conquistaram o primeiro Mundial - um segundo título surgiria na Copa da Rússia, em 2018.

O exagero faz parte de um projeto até que bem interessante da entidade, #WorldCupAtHome, ou “Copa do Mundo em Casa”, no qual, durante esta crise da Covid-19, a FIFA libera a integralidade de teipes clássicos da História do Futebol. São praticamente 2h20” de imagens do tempo regulamentar, 1 X 1, da prorrogação, 0 X 0, e da disputa de penais. O desafio, descartável em cerca de 90% do seu desenrolar, teve raros lances dignos de registro. O Brasil fez 1 X 0 aos 17’, numa tabela de Muller com Júnior para o arremate de Careca. A França igualou aos 40’, depois de um cruzamento despretensioso, horizontal, na linha da pequena área, que traiu o arqueiro Carlos e pegou Michel Platini livre, junto ao poste, precisamente no dia dos seus 31 de idade.

Foi o único lance de perigo dos “Bleus”, o único gol que o Brasil sofreu naquela Copa. O Brasil amargou um chute de Careca na trave e uma furada de Sócrates a quase um metro da meta. Pior, porém, ocorreu aos 74’. Advindo de uma contusão, Zico entrou aos 72 e, imediatamente, deu um passe delicioso, em profundidade, ao ala Branco, que acabou derrubado pelo arqueiro Joel Bats. Seguríssimo, o “Galinho de Quintino” vislumbrou a chance de superar o “Coq” azul e se propôs a bater a penalidade máxima. Ah, supremo infortúnio, cobrou mal e Bats catou. Empacado na prorrogação, o Brasil ainda acumularia erros e azares inolvidáveis numa fatídica, patética, disputa de penais.

Em toda a sua carreira, o Doutor Sócrates nunca havia se encarregado da primeira tentativa. Preferia esperar e ver como o arqueiro adversário se portava. O treinador Telê Santana, porém, preferiu poupar Zico, o habitual número um. E o Doutor ousou uma cavadinha e Bats encaixou. Stopyra, Alemão, Amoros e Zico acertaram, placar de 2 X 2. Aconteceu, então, a tentativa de Bellone, que logo provocou uma polêmica longa e dolorosérrima. Bellone atirou num poste, a pelota retornou, resvalou nas costas de Carlos e só daí entrou na meta. O mediador Ioan Igna, da Romênia, deveria ter invalidado. Na disputa de penais o lance se interrompia assim que a bola mudasse de rota e voltasse ao campo de jogo. Só bem depois, em 1990, uma emenda às Regras do Futebol alteraria esse conceito.

Branco anotaria e Platini, justo o aniversariante, enviaria a pelota às nuvens. Júlio César, craque do Brasil naquela Copa, teve a chance de colocar os “Canarinhos” à frente. Mas, desferiu um petardo no poste. Daí, Luís Fernandez despacharia o time de Telê. Um melancólico Sócrates se lastimaria, mais tarde, com o jornalista e seu amigo Juca Kfouri: “Quando o Telê me pediu pra bater primeiro... eu pensei que alguma coisa estava errada. E até chegar à marca do pênalti imaginava o Brasil inteiro olhando para mim. Bati fraco e perdi. E não por displicência, porque já vinha batendo assim no Corinthians.” Claro, lógico, que o França X Brasil da Copa de 86 não pode ser o “Jogo do Século” aqui em nossas plagas. E a FIFA aumenta o seu exagero ao afirmar que obedeceu a uma frase de Pelé. Sim. Apenas, todavia, mais uma frase do "Rei".

Ostensivamente, uma frase fora de qualquer contexto lógico. Na existência do “Rei”, como atleta ou como um simples observador, certamente houve prélios muito mais significativos. Por exemplo, o Brasil 5 X 2 França, em 24 de Junho de 1958, semifinal da Copa da Suécia, quando registrou três tentos, e ainda não havia atingido os seus 18 de idade. A decisão de 58, 5 X 2 na Suécia, deslumbrante o dele, o terceiro. Ou o Brasil 3 X 1 Uruguai de 17 de Junho de 1970, semifinal da Copa do México, quando, incrivelmente, ele NÃO realizou os dois gols mais lindos que eu pude ver em toda a minha vida.

O arqueiro Mazurkiewicz bateu um tiro de meta e, na intermediária, Pelé devolveu de primeira e, por sorte do rival precisamente onde ele se encontrava. E o lance dos dois dribles de corpo em Mazurkiewicz mas que a bola, caprichosamente, escapou a milímetros do poste. Sem falar na sua atuação majestosa em Brasil 4 X 1 Itália, 21 de Junho de 1970, a pugna da decisão em que ele e seus companheiros arrebataram em definitivo a Jules Rimet. Sim, Pelé teve mais do que um “Jogo do Século” para adotar. Não o que a FIFA lhe imputou num momento de falta de assunto. Menos, FIFA.
Para quem quiser ver as inúteis 2h20’: www.fifa.com
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