Santos dos 100 gols em 16 jogos e isso antes de o Pelé nascer
Em 1927, time do litoral, com seus uniformes brancos e repleto de jogadores caiçaras, já assombrava os campos do Brasil
Faltavam 13 anos para o Pelé nascer... Mas, em 1927, o Santos Futebol Clube, com seus uniformes brancos e repleto de jogadores caiçaras, já assombrava os campos do Brasil, se tornando o primeiro time da América do Sul a marcar 100 gols numa única competição. Um feito pouco falado, pois foi ofuscado diante de tantos outros alcançados pelo maravilhoso time do Rei do Futebol.
Hoje, nossa viagem no tempo será para uma época em que o futebol se tornava cada vez mais popular no país, ao ponto de um jogador desafiar o presidente da república, em plena Capital Federal... e isso teve consequências sérias para o campeonato daquele ano. Como veremos ao longo deste texto.
O Brasil em 1927
Em 1927, o presidente era Washington Luiz — anote essa informação, ela será fundamental para nossa história —, a capital federal se localizava onde hoje fica o Rio de Janeiro. Avanços importantes aconteciam no país: mulheres passaram a votar, a maioridade penal foi estabelecida em 18 anos e o primeiro voo comercial do Brasil foi realizado no dia 3 de fevereiro de 1927, pela companhia aérea Condor Syndikat, inaugurando o setor da aviação comercial no país. O Brasil decolava.
Com o futebol, não era diferente, o esporte finalmente caía nas graças populares e se tornava cada vez mais o esporte nacional. Em São Paulo e Rio de Janeiro, rivalidades eram construídas e alimentadas, fazendo essa paixão crescer ainda mais.
Obviamente que políticos viram uma oportunidade nisso. Uma forma de tornar esse esporte uma ferramenta popular era a realização de campeonatos brasileiros de seleções estaduais, onde os melhores atletas de cada estado se enfrentavam em torneios nacionais. Foi disputada entre 1922 e 1962, com diversos hiatos, e com uma tentativa de ressurreição em 1987 (sem sucesso).
Em 1927, esse torneio culminou com uma final entre São Paulo e Rio de Janeiro, disputada no recém inaugurado estádio de São Januário… em breve voltaremos a este episódio que mudou a história do Santos em 1927 e até do Brasil na Copa de 1930.
O Paulistão em 1927
O Campeonato Paulista de 1927 (que terminou em 1928) foi disputado por 14 equipes, que se enfrentaram em turno único na primeira fase, os 4 primeiros colocados se enfrentaram em returno.
O campeão deste campeonato acabou sendo o Palestra Itália, com vitória em partida polêmica na Vila Belmiro, que rendeu inclusive reportagem do Jornal Folha da Manhã (periódico que fazia parte da Folha de S. Paulo na época): “O juiz, senhor Anthero Mollinaro, do Palestra Itália, prejudicou grandemente o clube local. Não puniu, além de outras faltas, uma defesa feita com a mão por Bianco na área penal e anulou um ponto legitimamente feito pelos elementos do Santos”.
SANTOS 2 X 3 PALESTRA ITÁLIA
Vila Belmiro (04/03/1928)
Árbitro: Antero Molinari
Gols: Siriri e Camarão (Santos); Tedesco, Lara e Perillo (Palestra Itália).
Santos: Athiê; Bilu e Meira; Hugo, Júlio e Alfredo; Omar, Camarão, Siriri, Araken Patusca e Evangelista.
Palestra Itália: Perth; Bianco e Miguel; Xingo, Gollardo e Serafini; Tedesco, Heitor, Armandinho, Lara e Perillo. Técnico: Joaquim Almeida (Bororó).
Escola Santista de Futebol
O time da colônia italiana consagrou-se campeão, apesar da polêmica, mas o que marcou realmente aquele ano foi um feito jamais alcançado até então por um time de futebol nas Américas. O Santos, que tinha o ataque composto por Omar, Camarão, Feitiço (Siriri), Araken Patusca e Evangelista marcou 100 gols naquele campeonato, em apenas 16 jogos.
Para tanto o time possuía um estilo de jogo extremamente vertical e impressionantemente ofensivo, que marcou época, muito antes do mágico time do Pelé. A equipe era amplamente comentado pelos amantes do futebol na primeira metade do século XX, que chegavam a chamar o estilo ofensivo e irreverente de “escola santista de futebol”.
Todos os cinco jogadores foram históricos, principalmente Araken Patusca (do qual falarei no próximo texto, sobre o primeiro jogo profissional do país) e Feitiço… esse merece destaque especial.
O rebelde craque Feitiço
O Feitiço é um daqueles jogadores míticos do futebol pré-profissional, que já se tornaram maiores do que o próprio legado, que as histórias a respeito dele, vão ganhando caráter caricato e lendário, mas os feitos são realmente impressionantes, de uma época em que o futebol era amador, não existia televisão e o que resta são apenas os relatos e reportagens da época.
Luis Macedo Matoso, nasceu no bairro do Bixiga em São Paulo, em 29 de dezembro de 1901, onde começou a jogar futebol nos momentos livres, sua habilidade com a bola nos pés era tanta que uma amiga chamada Nenela uma vez disse “o Luizinho parece um feitiço quando joga”, o apelido pegou e o menino se tornou um dos maiores artilheiros da primeira metade do século XX conhecido como tal.
No Santos, ele é simplesmente o quinto maior artilheiro da história do clube, com incríveis 215 gols em 151 jogos, média superior a do Rei Pelé. Em 1927, pelo Peixe, marcou 28 gols e era uma sensação no campeonato até a confusão que marcou a sua exclusão do Paulistão daquele ano e da seleção de 1930…
Quem manda aqui
Bem, como eu expliquei, São Paulo e Rio de Janeiro disputavam a final do Brasileiro de Seleções. O jogo acontecia em São Januário, do vascaíno e presidente da República Washington Luís, que assistia à partida no seu camarote (já meio impaciente - isso eu imagino, desculpem a licença poética - pois o Santos, tempos atrás derrotara o Vasco na inauguração do estádio).
O jogo estava empatado 1 a 1, gol dele, do nosso herói Feitiço, para os paulistas. Foi então que o juiz Ary Amarante marcou um pênalti (contestável) para os cariocas. A marcação deixou os paulistas indignados, eles esconderam a bola, chutaram antes do batedor, estragaram a marcação do pênalti e fizeram um verdadeiro caos para impedir que o jogo continuasse.
Foi nessa hora, que o presidente, já envergonhado com a cena, mandou um emissário ao campo, para pedir aos jogadores que reiniciassem a partida. Isso já ganhou quase um status de lenda, mas Feitiço teria se indignado com essa atitude do presidente Washington Luís e proferido a seguinte frase: “pois diga ao excelentíssimo senhor presidente que ele manda no Palácio do Catete, mas quem manda aqui no campo somos nós”.
História não se suspende
Se foi verdade ou não, nunca saberemos, Feitiço nunca desmentiu ou confirmou em vida, mas tanto ele quanto o goleiro Tuffy, destaques do Peixe na campanha do Paulista, que integravam a seleção paulista, foram suspensos do resto do Paulistão e isso custou caro ao Peixe e ao próprio Feitiço. Pois, muito se fala até hoje, que ele deveria ter feito parte da seleção brasileira de 1930, mas foi preterido justamente por conta da confusão.
É curioso, pois em 1927, Feitiço não foi artilheiro do Paulistão, essa honraria coube a Araken Patusca com 31 gols. O Santos não foi Campeão Paulista, nem teve jogador de São Paulo na Seleção Brasileira. Mas isso não quer dizer nada diante da história. Não são títulos, ou mesmo convocações que tornam jogadores ou times lendários, o feito dos 100 gols do Santos de 1927 será eternamente lembrado, bem como o jogador que enfeitiçava o público com seu futebol e não se curvava nem mesmo diante do presidente, pois quem mandava no campo era ele e quem viveu no imaginário dos torcedores por anos, foram os caiçaras dos 100 gols.