Tino Marcos revela a antipatia despertada pela seleção brasileira de Neymar. 'Ficou muito chato'
Depois de cobrir a seleção pela Globo desde 1989, Tino Marcos se demitiu. Ele se desiludiu com o estudado e cruel afastamento dos jogadores, de Tite, de Neymar. Para deixar a cobertura do Brasil mais superficial possível
Cosme Rímoli|Do R7 e Cosme Rímoli
São Paulo, Brasil
"Está muito chato cobrir a seleção, porque você vê basicamente roda de bobinho, brincadeira e aquecimento."
"Depois disso você vai embora (…)"
"Hoje, é aquela coisa mais pasteurizada, aí eu comecei a achar muito chato."
"Acho que isso foi uma imposição natural dos jogadores que vêm da Europa, porque eles começaram a reclamar bastante que a imprensa estava lá toda hora."
"Em 2002, o Felipão fez todos os treinos abertos. Ele dava esporro no Cafu na nossa frente, ele brigou com o Marcos e até o expulsou de um treino. Então, você tinha muito mais conteúdo e rendia mais assunto."
O depoimento é de Tino Marcos. Ele foi repórter esportivo da TV Globo por 35 anos. Cobriu a seleção brasileira de 1989 até 2021, quando se desligou da emissora carioca.
Tino Marcos sempre foi um repórter discreto. Ao contrário de Mauro Naves, que, por ter personalidade mais gregária, aberta, logo se tornava próximo dos treinadores, dos jogadores da seleção. E de suas famílias, excelentes fontes em coberturas longas. Daí a quantidade de informações exclusivas que conseguia.
Tino, não. Reservado, mas incansável, elaborava mais suas matérias, procurava dar um tom de documentário minimalista, detalhado, a cada cobertura.
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Ambos eram excelentes e sabiam como explorar algo que era um presente para jornalistas tão perspicazes, incansáveis: as regalias que a CBF dava à Globo.
Quando Tino desabafou ao podcast Flow Sport Club que está "chato" cobrir a seleção foi apenas a ponta do iceberg. Ao seu estilo, ele não quis polemizar.
Foi superficial.
Mas suas poucas palavras já servem para alertar o novo presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues. Ele afirmou que pretende "aproximar a seleção brasileira do povo".
Ednaldo só precisa entender que os jornalistas são o elo entre a seleção e o "povo".
O clima entre a imprensa e o time de Tite é o mais distante, constrangedor e improdutivo possível.
Por isso, por exemplo, a cobertura da Copa do Mundo da Rússia acabou se confundindo, na maioria dos veículos, com cobertura turística.
Sem acesso "de verdade" à seleção, jornalistas foram obrigados a se reinventar. E trataram de investir nos costumes russos. Culinária, monumentos históricos, a praça Vermelha, o Kremlin, a revolução socialista, o metrô de Moscou, o alfabeto cirílico. Tudo foi detalhado.
Porque havia espaço determinado, principalmente na Globo, dona do evento. Mais de 300 profissionais envolvidos no Mundial. E sem acesso especial à seleção. A não ser a coletiva de dois jogadores, escolhidos pela assessoria de imprensa da CBF, e o aquecimento de 15 minutos.
Entrevistas exclusivas, as mais superficiais possíveis, só nos sites da CBF. Assim como as fotos. Que eram acessíveis a todos os veículos de comunicação.
Foi tão frustrante a cobertura da Globo da seleção que a emissora reduzirá drasticamente o número de profissionais no Mundial do Catar. Porque o esquema é massacrante para os jornalistas. Sem entrevistas exclusivas.
Nem a zona mista, espaço por onde os jogadores passam após as partidas, virou garantia de acesso aos atletas. Enquanto Messi e Cristiano Ronaldo falaram normalmente com os jogadores. Neymar, por exemplo, fez questão de não falar depois dos jogos da seleção no Mundial da Rússia. Jornalistas da Globo imploravam aos gritos que ele parasse, falasse, mas Neymar fingia que não ouvia, provocando risos dos seus companheiros de seleção.
Esse desprezo dos atletas pelos jornalistas acabou, na prática, em falta de respostas importantes, esclarecimentos fundamentais sobre o time. O que só tornou tensa, pesada a cobertura da seleção.
Não é por acaso que cobrir a seleção chegou a ponto de desestimular um dos melhores repórteres esportivos do país, incentivando-o a deixar a Globo.
Tino tem razão, tudo começou com a influência dos jogadores que atuam na Europa. Eles começaram a pressionar a cúpula da CBF para que os jornalistas tivessem menos acesso. Como acontece nos seus clubes.
O movimento foi crescendo de acordo com os fracassos da seleção nas Copas do Mundo. As farras e o sobrepeso de Ronaldo, Ronaldinho e Adriano vieram à tona em 2006, na Alemanha, com a cumplicidade de Parreira. Em 2010, o clima de quartel militar imposto por Dunga, que incomodava profundamente os jogadores. Já em 2014, o então presidente José Maria Marin forçou Felipão a abrir todos os treinamentos e permitir absurdos como o cantor Mumuzinho, travestido de repórter, abraçar Neymar em pleno coletivo de uma Copa do Mundo.
A Globo, via SporTV, transmitiu todos os treinos do Brasil em 2014. Situação absurda, exigida por Marin, para ter a emissora carioca como parceira.
O excesso virou escassez a partir de 2015, com o escândalo da Fifa. Marin foi detido na Suíça por corrupção. E depois preso nos Estados Unidos.
O vice, que se tornou presidente, Marco Polo del Nero esperava ter todo o apoio dos veículos de comunicação do país. Principalmente da Globo, que desfrutou por décadas o monopólio da seleção brasileira. Não só nas transmissões.
Era muito comum, por anos e anos, após os treinos, Galvão Bueno e Mauro Naves acompanharem treinadores e jogadores para conversas exclusivas. Muitas delas nos hotéis da seleção. Os demais jornalistas de outros veículos eram obrigados apenas a acompanhar de longe. Mérito dos dois, sim. Mas com o respaldo da união entre Globo e CBF.
Ao sentir que a Globo resolveu virar as costas e não apoiá-lo, Marco Polo del Nero decidiu. Iria impor um novo sistema de cobertura na seleção brasileira. Travando o acesso de todos os veículos de comunicação ao time e ao treinador. Se quisessem, só coletivas.
A ordem foi cumprida à risca a partir da Copa do Mundo de 2018, mesmo com Del Nero também afastado do cargo por suspeita de corrupção.
Com ordem do então presidente, Rogério Caboclo, que perderia o cargo por assédio sexual e moral, a assessoria de imprensa da CBF impôs as limitações aos jornalistas.
O Brasil passou a ir além também nas coletivas do técnico Tite. Muitas perguntas "difíceis", questionamentos importantes são respondidos por seus auxiliares. Situação bizarra, mas estudada de propósito. Para que as respostas não repercutam. Porque, por mais competente que seja, Cléber Xavier é auxiliar do treinador da seleção. Não tem o poder de decisão.
Não bastasse tudo isso, o Brasil decidiu ser o país a sair mais tarde dos vestiários nos jogos de Copa do Mundo de 2018. Entre uma hora e meia e duas. Por quê? Porque, além do banho, do jantar, Tite decidiu conversar com os atletas após as partidas. E os assessores de imprensa orientavam os jogadores que poderiam se envolver em polêmicas. Como os que falharam, não produziram.
Tudo o mais pasteurizado e fake possível.
Além disso, os assessores acompanhavam esses atletas que poderiam ser questionados. E faziam questão de acelerar, acabar com as entrevistas, de acordo com as perguntas. Como se eles não fossem adultos, capazes de responder por eles mesmos.
Muitas vezes os jogadores queriam se explicar, mas eram puxados da zona mista, com os assessores cochichando nos seus ouvidos que era "para o bem deles".
As explicações "superficiais" e sem questionamento eram dadas pelos atletas no site da CBF.
Nas coletivas, o esquema também passou a ser cruel.
Não há como o questionamento não acabar superficial.
O repórter pergunta. E logo o seu microfone é passado para outro jornalista. Se o jogador não responde à pergunta, ou decide atacar o repórter, não há como ser registrada a tréplica. Porque o jornalista não tem mais microfone. E nada do que falar, depois da resposta do jogador, fica registrado nos outros veículos de comunicação.
Como a esmagadora maioria dos atletas da seleção atua no exterior, eles não estão preocupados com os veículos de informação do Brasil.
Eles usam suas redes sociais para expressar o que quiserem. Suas equipes bloqueiam comentários que não lhes agradam, e a vida segue.
Por tudo isso, Tino Marcos acha "chato" cobrir a seleção brasileira.
Quando começou, o acesso era liberado. Acabavam os treinos, jornalistas falavam, de maneira exclusiva, com os jogadores que queriam. Os técnicos costumavam dar explicações diárias.
Sei, porque comecei, por coincidência, a cobrir a seleção brasileira também em 1989, mesmo ano que Tino Marcos. Eu estava no Jornal da Tarde, do grupo Estado de São Paulo.
E acompanho nestes 36 anos, nas últimas sete Copas do Mundo, indo para Estados Unidos, França, Japão, Alemanha, África do Sul, aqui e na Rússia, o processo de distanciamento da seleção brasileira não só da imprensa. Mas do povo.
O esquema de cobertura do Mundial do Catar promete ser o mesmo.
Com esse distanciamento e privilégio total para o site oficial da CBF.
Os veículos de comunicação sabem disso. E o número de profissionais deverá ser muito menor do que foi no Mundial da Rússia.
Diante de informações relevantes, virá a cobertura desesperada dos vídeos de um homem fantasiado de Canário Pistola, com torcedores cantando velhos gritos de guerra, tocando de forma deprimente instrumentos de escola de samba.
De detalhes da história do Catar.
Repórteres brasileiros de turbante e kandura, vestimentas tradicionais árabes. Explicações sobre a culinária árabe. Sobre os estádios magníficos construídos por operários em condições de trabalho mais do que questionáveis. Pontos turísticos.
Tudo, enfim, para preencher o espaço que deveria ser da seleção brasileira.
Mas não será por conta da superficialidade oferecida, de caso pensado, aos jornalistas.
Daí a decisão de Tino Marcos.
Preferir deixar a seleção a quem aceite essa superficialidade.
O que é um erro.
Com sua credibilidade, ele poderia denunciar.
Mostrar os verdadeiros motivos que fizeram a seleção se tornar desconhecida, antipática para grande parte da população.
Talvez ele não tivesse a liberdade de mostrar o real cenário montado por vingança.
Aí, seria motivo mais claro de sua saída da Globo...
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