Para Felipão, o tempo parou em 2002. O Palmeiras fingia não saber
Tão trabalhador quanto teimoso. Scolari acredita que descobriu fórmula ideal do futebol. Afinal, ganhou a Copa. Mas estagnou. Daí, a sofrida demissão
Cosme Rímoli|Do R7 e Cosme Rímoli
São Paulo, Brasil
Vick Vaporub é uma pomada.
Um unguento criado nos Estados Unidos.
Em 1898, químicos misturaram mentol, cânfora e eucaliptol. E descobriram que servia para desobstruir narizes, aliviava a sensação de constipação.
Só que para o garoto rústico, zagueiro bruto, das divisões de base do Aimoré, de São Leopoldo, na década de 60, Vick tinha outro significado.
Trazia outra sensação.
Ele aprendeu com jogadores mais velhos, que beques deveriam passar o unguento nas partes íntimas. Conforme fosse correndo, a pomada ardia muito a pele sensível. E só piorava com o decorrer da partida.
Trazia a irritação com a qual os zagueiros deveriam jogar. Marcando com firmeza, 'jogo de corpo', ameaças e até uns bem-vindos pontapés, os abusados centroavantes de quase 60 anos atrás.
Muito provavelmente, seu pai, Benjamin, também zagueiro da década de 40, também apelasse para o Vick.
Futebol sempre foi sinônimo de irritação para Luiz Felipe Scolari.
Ele aprendeu e venceu assim.
Como zagueiro duro, que compensava a falta de refinamento técnico com muita garra, entrega, liderança. Queria ser técnico, mas para garantir o futuro da família, cursou Educação Física.
Mas sua visão prática da vida o transformou em um ótimo treinador de futebol. Com estilo definido, sugando o que via em treinadores que valorizavam a força física, a forte marcação, a velocidade nos contragolpes.
Como Ênio Andrade, Carlos Froner, Rubens Minelli.
E desenvolveu a visão paternalista de alguns professores de Educação Física. Transformou os grupos que comandou em famílias.
Tratava os adversários como inimigos.
E para os jornalistas que cobriam os clubes e seleções que trabalhou não havia saída. Ou eram aliados ou inimigos. Nos primeiros anos de Grêmio, ele chamava os repórteres de grandes jornais e exigia que eles questionassem os setoristas dos times que iria enfrentar.
Trouxessem desenhos, esboços de como os adversários haviam treinado, as principais jogadas em escanteios, bolas paradas, detalhes sobre os cobradores de pênalti, de faltas.
Esses eram os aliados.
Os inimigos eram aqueles que ousavam questioná-lo.
É assim até hoje.
O grande erro de Felipão, aos 70 anos, não é a acomodação. Longe disso. Ele segue muito trabalhador. E não precisa, porque é milionário. Dono de inúmeros imóveis em Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo, Portugal.
Mas, desde 2002, quando conseguiu ser campeão mundial com a Seleção Brasileira, ele estagnou como treinador.
Acredita piamente que o futebol de três volantes, ligação direta entre zagueiros e atacantes velozes, cruzamentos aéreos em escanteios e faltas, com cada jogador guardando sua posição, como um time de pebolim, é o correto.
Tudo é compensado com correria, vibração, personalidade, comprometimento com o grupo.
Seu Vic Vaporub psicológico.
China, Uzbequistão só confirmaram sua tese.
E o enriqueceram.
Felipão considera termos de moda recomposição, o preechimento dos espaços, a movimentação constante do meio de campo para a frente, as triangulações pelos lados, os ataques em bloco, a saída de bola rasteira, com qualidade.
Meu relacionamento com Felipão sempre teve altos e baixos. Discutimos, nos xingamos, nos abraçamos, nos ironizamos.
O vi chorar com pequenos torcedores com doenças terminais. O vi dar um soco na cara do meu colega jornalista Gilvan Ribeiro. Soube de sua discreta e forte ajuda financeira a instituições de caridade.
Vi sua ira contra Zinho que, dentro de campo, não só ousou contrariar suas ordens táticas, como decidiu mudar o posicionamento de alguns companheiros.
Ouvi sua mãe Ceci o chamar de Felipinho.
Mas também escutei seus gritos no vestiário do Palmeiras, mandando que 'enfiassem o dedo' em Edílson, que jogava no Corinthians. E que ninguém tivesse medo, encarassem cada atleta do Deportivo Cali. Até que cada colombiano tremesse.
Foi assim que ganhou a primeira e única Libertadores do Palmeiras, há 20 anos.
Me confirmou o único furo da Copa de 2002, de acordo com a Folha, a escalação de Juninho Paulista como titular na estreia do Brasil.
Também o vi, constrangido pelo hoje presidiário José Maria Marin, a abrir todos os treinos da Seleção na Copa de 2014.
Conter o ódio de ver o cantor Mumuzinho correr e abraçar Neymar, que iria cobrar um escanteio, no primeiro coletivo do Brasil naquele Mundial. Se submeter a Luciano Huck acabar com o aquecimento do time ao levar um garoto paraplégico à Granja Comary.
Olhei para a alegria irresponsável ao comemorar a conquista da Copa do Brasil, com um dos piores Palmeiras de sua história, em 2012. Façanha que encaminhou a equipe à Segunda Divisão, por escalar equipes ainda mais fracas no Brasileiro.
O abraço inesperado, e único, foi na Alemanha, quando me viu em uma coletiva de Portugal, que foi quarto colocado naquela Copa.
Ainda mais lembrando 1997, quando chegou ao Palmeiras e o então gerente de futebol, Paulo Angioni, nos trancou em uma sala. Onde nos xingamos por conta dele ter mentido, dizendo que não voltaria para o Brasil, porque estava preso por contrato com o Jubilio Iwata. E sarcástico, me mostrou o contrato em japonês.
Por trás da gritaria havia a rivalidade que Felipão trazia como treinador do Grêmio contra a imprensa paulista. Depois de cinco minutos de gritaria, percebemos o ridículo da situação e passamos a ter uma convivência mais ou menos civilizada.
Estava ao seu lado, quando foi sacaneado por Ricardo Teixeira. Era o único repórter paulista que o aguardou na rua da Alfãndega, na convocação final de 2002. Teixeira queria que chamasse de, qualquer maneira, Romário.
O técnico não perdoou o jogador por ter passado a noite com uma aeromoça, antes de um jogo contra o Uruguai, em Montevidéu. O fez capitão naquela partida, o atacante andou em campo, desgastado. Nunca mais foi chamado por Felipão.
Com a confirmação que não levaria Romário ao Japão, o presidente da CBF não mandou seguranças para proteger o treinador. Na antiga sede da entidade, a única saída e entrada era pela porta da frente.
A população carioca ficou revoltada por Romário não ser chamado. Quando Felipão desceu, depois de uma duas horas da convocação, eu o esperava. E não só assisti à cena deprimente.
Ele, sozinho, passando por inúmeros populares que o reconheceram. O xingavam, ironizavam, perguntavam porque havia deixado Romário fora.
Felipão não falava nada, só andava em direção ao seu carro. Foi quando vi dois torcedores mais covardes, eles gritavam perto do rosto do técnico.
Eu perdi a paciência. Era muita covardia. E entrei no meio com minha mochila imensa, sempre com o computador dentro. Fiz que iria entrevistá-los, para dar tempo para Felipão se afastar.
Sei que, desde sempre, nunca aceitou as demissões. Principalmente por seu envolvimento apaixonado com os clubes. A ponto de esquecer da verdadeira família para tentar descobrir como fazer o time vencer.
Felipão é o técnico mais trabalhador que conheci em 35 anos de carreira.
Mas turrão demais.
Como Luxemburgo, em menor proporção, lógico, ele tem um grupo de amigos que o tratam como uma divindade.
E não o alertaram nestes anos todos da necessidade de se modernizar taticamente.
Em 1998, fui cobrir uma partida importante do Palmeiras contra o Cruzeiro, em Belo Horizonte. Eu havia acabado de ler o livro de Tostão “Lembranças, Opiniões e Reflexões sobre Futebol”.
Nele, ele já alertava sobre as mudanças táticas no futebol. E que vingariam nestas duas décadas.
Nunca havia visto Felipão nas concentrações com livro algum, só com chimarrão e cercado de auxiliares, amigos, conversando.
Resolvi dar o livro para ele, no lobby do hotel Ouro Minas, em Belo Horizonte. Foi por impulso, sem pensar. Se tivesse pensado duas vezes, perceberia que viria patada.
Felipão pegou o livro, olhou para mim, com raiva.
A frase, nunca esqueci.
"Ótimo, obrigado.
"Vour ler quando for cagar..."
Ainda consegui responder.
"Aproveite seu banheiro..."
Felipão é um vencedor.
Conseguiu ser campeão do mundo, vice da Eurocopa, conquistou duas Libertadores, Liga dos Campeões da Ásia, dois Brasileiros. E vários outros títulos. Comandou o Chelsea. É adorado em Portugal e, principalmente, por Cristiano Ronaldo.
Mas parou no tempo.
Não quis renovar o repertório tático.
Acreditava que não precisava.
Sua demissão do Palmeiras não foi culpa sua.
Mas de quem o contratou.
Os times de Felipão são os mesmos.
Desde 2002.
Seu pragmatismo se sustenta em campeonatos longos, de pontos corridos.
É inaceitável, por exemplo, usar a mesma estratégia da Copa das Confederações, em 2013, na Copa do Mundo em 2014.
O 7 a 1 não foi por acaso.
Nos mata-matas seus times são convites para derrotas.
Pela previsibilidade.
Pela estagnação tática.
São reféns de jogadas individuais.
Felipão negou a modernidade há anos e anos.
Só se decepciona quem quer.
Ainda mais nos clubes que sonham com o Mundial.
Daí toda a tristeza do técnico de 70 anos, quando Alexandre Mattos foi até seu apartamento, ontem no final da tarde, avisar de sua demissão.
Felipão ainda acha que está certo.
Não há Vic Vaporub que dê jeito...
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