O futebol brasileiro estagnado contra assediadores e pedófilos
O país mantém conivente silêncio com predadores de garotos. Rara exceção é o trabalho de Alê Montrinas. CBF? Omissa
Cosme Rímoli|Cosme Rímoli
"Os predadores sabem como chegar nos garotos. Onde esses meninos vão quando saem dos clubes. Onde vão comer, jogar videogame, conversar, passar o tempo, quando não estão treinando ou jogando. Muitas vezes esses assediadores usam um garoto infiltrado nas equipes. Pagam só para atrair esses jovens, criar a situação do assédio.
"Um lugar muito usual é o caminho entre o clube a escola onde o garoto deveria estudar à noite. Predadores sexuais ficam esperando com carros, oferecendo dinheiro, passeio, bebidas para se aproveitar de 12, 14, 16 anos.
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"Não é preciso muito dinheiro para convencer o menino a ceder ao abuso sexual. Muitas vezes basta dar uma réplica da chuteira que o Neymar usa. E até mesmo oferecer comida, pizza, sanduíches de fast food. Ninguém imagina a realidade dos clubes pequenos neste país. Garotos que são arrimo de família e que sonham que o futebol vai tirar todos da miséria. Se sujeitam a dormir mal, comer mal, vivem em ambientes insalubres. Os alojamentos dos meninos da base são indecentes. Recusam, recusam até que um dia acabam cedendo.
"O pior mesmo são os predadores infiltrados nos clubes. Aí, não tem controle. Treinadores, preparadores físicos, dirigentes, empresários. Os pais deixam seus filhos nas mãos de pessoas que não conhecem, sonhando com o dinheiro que os filhos podem ganhar jogando futebol. É uma situação desesperadora.
"No Brasil, existem inúmeros garotos que jogam bem. Com o mesmo nível. Muitos deles percebem que a concorrência é fortíssima. E aí é que entram os predadores sexuais nos clubes garantindo que, se os meninos se submeterem a favores sexuais, vão levar vantagem. Isso nos clubes, nas escolinhas de futebol.
"Milhares de crianças brasileiras estão à mercê de abusadores. Todos sabem e fingem que não existe."
As revelações são chocantes, detalhadas com exclusividade ao blog. Ainda mais ditas por quem as vivenciou. E decidiu acabar com a hipocrisia, com o silêncio e reagir contra a inércia cúmplice dos clubes, das escolinhas de futebol e da CBF.
O ex-goleiro da Portuguesa e de outros clubes pequenos, Alexsander Montrinas, confessa ter sido assediado por dez anos, a metadei inicial de sua carreira. Assim como sabe que jogadores consagrados e até alguns que chegaram à Seleção Brasileira também foram.
Alê não cedeu por convicção e por ser filho de classe média. Não precisava se entregar aos predadores para comer, ter uma chuteira decente. Mas viu muitos garotos que cederam. Por medo de jogar fora a chance de tirar a família da miséria. E outros que não cederam, mas se calaram, não denunciaram os assediadores, por receio de ter suas carreiras acabadas.
"Infelizmente essa é a realidade no futebol brasileiro desde sempre. Eu mesmo tenho certeza que fui prejudicado na minha carreira por isso. Havia um jornalista homossexual em Campinas que defendia em jornais poderosos o goleiro do Guarani.
"Eu era do Palmeiras e disputava a vaga na Seleção Brasileira de base com esse menino. E ele acabou levando vantagem pela pressão daquele jornalista, que também era próximo de vários jovens jogadores importantes do Interior de São Paulo. Todos sabiam, mas por medo, todos se calavam.
"Eu decidi dar o total apoio do sindicato ao Alê Montrinas. Porque é preciso acabar com esse abuso de meninos, de garotos, de crianças. A hora de denunciar não poderia ser melhor. O mundo está passando por uma faxina contra os abusadores. No cinema, na televisão. A sociedade não suporta mais.
"Demorou, mas chegou a hora também do futebol se livrar desse tipo de gente. Não é fácil. Porque muitos estão há anos e anos se aproveitando de crianças. Graças à conivência dos clubes. É preciso conscientizar, cobrar e punir esses predadores. Estamos cobrando os dirigentes de clubes. Queremos psicólogos, assistentes sociais cuidando dos meninos.
"E, principalmente, cobrando a CBF. Ela não está fazendo seu papel. Tem tanto dinheiro, tanto poder, tanta influência. E não age. A omissão é cúmplice desses bandidos", desabafa Rinaldo Martorelli, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais do Estado de São Paulo.
O papel da CBF em relação ao assédio infantil é vergonhoso. Em 2014, ano da Copa do Munddo, a entidade se dispôs a cumprir dez metas. A promessa foi feita pelo então presidente José Maria Marin.
Eram elas.
1 – Apoiar campanhas educativas no âmbito dos clubes esportivos, alertando para os riscos da exploração sexual e do trabalho infantil.
2 – Apoiar as linhas e montantes orçamentários adequados para a efetivação plena das campanhas educativas.
3 – Qualificar profissionais que atuam no treinamento esportivo de crianças e adolescentes para atuação preventiva e de proteção aos direitos.
4 – Adotar providências para prevenir o tráfico interno e externo de atletas.
5 – Usar a ouvidoria da CBF para receber denúncia de maus-tratos e de exploração sexual de crianças e adolescentes.
6 – Solicitar o registro de escolas de formação de atletas nos clubes, nos conselhos tutelares e nas respectivas federações.
7 – Esclarecer os pais acerca das condições a que são submetidos os alunos das escolas de formação de atletas destinadas a crianças e adolescentes.
8 – Fiscalizar as atividades realizadas pelas escolas de formação de atletas, bem como os clubes esportivos que contratam atletas oriundos dessas escolas.
9 – Incentivar a agregação de escolas de formação de atletas crianças e adolescentes a clubes esportivos.
10 – Adotar medidas punitivas para aqueles que descumprirem essas determinações, como descredenciamento de entidades esportivas, na forma de legislação.
O compromisso foi assumido publicamente.
Marco Polo Del Nero era o vice de Marin.
"Das dez ações propostas, a CBF só cumpriu duas: campanhas educativas e criação de um grupo interno de trabalho, que não produziu nenhum resultado. Então, a CBF foi desonesta e tem sido desonesta ao não enfrentar a discussão”, disse abertamente Erika Kokay, do PT, que presidiu a presidiu a CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Para ela, o não cumprimento do pacto significa “um desrespeito ao Congresso Nacional e às vítimas de abusos sexuais cometidos por treinadores, massagistas, olheiros e dirigentes”. A CBF não se deu ao trabalho de sequer mandar um representante na CPI.
Desde 2011, um levantamento do jornal El País mostrou que houve 102 casos de abusos sexuais relacionados ao futebol neste país.
"Este número é insignificante em relação aos que realmente acontecem. A enorme maioria dos casos é denunciada. Infelizmente. A conscientização das pessoas está chegando agora.
"Há três anos e meio, desde que lancei o meu livro "Futebol. Sonho ou Ilusão", faço palestras sobre como evitar, o que fazer se houver o assédio, como denunciar. Foram mais de 40 palestras. E graças aos sindicato estou conseguindo falar nos clubes. Na próxima semana falarei no Palmeiras, para os pais dos garotos da base. A campanha #chegadeabuso está ganhando força, atingindo as pessoas. Por isso, o papel da imprensa é fundamental", diz Alê.
Mas ele reconhece que mais importante que os jornalistas são as palavras dos jogadores. Ele reuniu 33 atletas e ex-profissionais, entre eles Edu Dracena e Moisés (Palmeiras), Rodrigo Caio e Diego Lugano (São Paulo), Felipe (Porto-POR), Cicinho (Brasiliense) e Giovanni, ídolo do Santos se posicionam em vídeo contra o assédio.
Tanto Montrinas como Martorelli confirmam que o Brasil está muito atrasado em relação ao assédio no futebol. Vale destacar o que aconteceu na Inglaterra, em 2016.
O ex zagueiro Andy Woodward revelou ter sido abusado pelo técnico Barry Bannell quando atuava na base do Crewe Alexandra, time da quarta divisão inglesa. Foi o que bastou. A polícia inglesa recebeu outras 838 denúncias, sobretudo de crimes praticados entre 1975 e 1990, somando 294 técnicos, olheiros e dirigentes suspeitos.
Bannell acabou condenado a 30 anos de prisão por estupro de 12 meninos entre 8 e 15 anos. Ele já havia sido preso e condenado por delitos sexuais em 1995, mas conseguiu se manter no futebol usando um nome falso.
Woodward revelou que os clubes por onde o ex-treinador passou sempre foram coniventes com os abusos e nada fizeram para impedi-lo. Pelo contrário. Fingiam que nada acontecia.
Um exemplo de como é a situação no nosso país.
"Ao longo de quase três anos, as missas na igreja de São Sebastião, em Guapiaçu, uma cidade do interior de São Paulo com menos de 20.000 habitantes, eram celebradas pelo padre Manoel Bezerra de Lima na mais serena normalidade.
"O fato de estar sempre rodeado de meninos, com os quais se encontrava regularmente dentro e fora da paróquia, jamais levantou desconfianças. Até que, no último dia 30 de novembro, o sacerdote de 66 anos foi preso por suspeita de abuso e exploração sexual.
Em sua casa, policiais encontraram fotos e vídeos pornográficos de adolescentes, preservativos, lubrificantes e várias carteirinhas de crianças que haviam sido treinadas por ele em um time de futebol amador.
Além da batina, padre Manoel era reconhecido pela atuação como técnico de equipes infantis na cidade vizinha de Cedral. Desde que chegou a Guapiaçu para assumir a posto de vigário após a morte do padre João Maria Zanzi, pároco do município por mais de 30 anos, ele tinha se afastado da atividade nos campos, mas, segundo relatos de garotos que conviviam com o religioso, costumava se apresentar como um descobridor de talentos e prometia levar jovens para testes em clubes da região.
Ganhava a confiança de adolescentes com longos papos sobre futebol, convites para pescarias, presentes e, principalmente, nos supostos encontros de “aconselhamento espiritual” que promovia na residência paroquial de uma capela no condomínio fechado onde vivia e celebrava missas há alguns meses.
Vizinhos confirmam o frequente entra e sai de garotos com idades entre 14 e 17 anos na casa do religioso", detalhou o El País.
A polícia prendeu o padre. Mas dois outros padres pagaram a fiança e ele está em liberdade.
Infelizmente, o Brasil está estagnado.
Aceite a triste conivência com o assédio aos meninos no futebol.
São 772 clubes profissionais no país.
São dezenas de milhares de crianças tentando virar jogadoras.
A esmagadora maioria delas entregue à própria sorte.
O que é uma festa para pedófilos...
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