"Não aceito a cultura do ódio. Só se fala mal dos outros", diz Silvio Luiz
Um dos maiores narradores, comunicadores da história esportiva deste país, está trancado, pela pandemia. E assustado com a relação imprensa e futebol
Cosme Rímoli|Do R7 e Cosme Rímoli
São Paulo, Brasil
"São oito meses trancado em casa. Está muito difícil para mim. Eu sou da conversa. Do contato com as pessoas. Dos amigos. Da rua. E, principalmente, do trabalho.
Cosme Rímoli: Balada foi fatal para Ramires. Ideia da rescisão, antecipada pelo blog
"Me sinto preso, sem ter feito nada. Só falta a tornozeleira eletrônica.
"São 70 anos trabalhando direto, não sei o que é ficar parado. Nunca cogitei e nem quero aposentadoria. Trabalho é minha vida. Entendo a dor de quem fica sem trabalhar na minha profissão. Perde o amor pela vida. Se Deus quiser, eu vou morrer trabalhando, tenho muita energia ainda.
"Mas, não tenho como negar que, de vez em quando, a alegria vai embora, junto com o bom humor. E vem aquela tristeza, aquela depressão. Mas trato de fazer de tudo para reagir. Por mim, pela minha família.
"Só que não vou negar que está muito difícil. Jamais pensei passar por uma situação dessas.
"Com tantas tristezas, mortes.
"2020 não existiu.
"Para mim é um ano que não existiu."
O desabafo é de Silvio Luiz, narrador marcado pela descontração, alegria.
Aos 86 anos, mais lúcido do que nunca, ele revelou ao blog a ansiedade por estar longe das narrações esportivas, afastado por 'precaução' pela Rede TV.
De um dos personagens principais ativos da mídia esportiva brasileira, há mais de cinquenta anos, a mero observador forçado, pelo surto de Covid.
Silvio tem muito a dizer sobre o que vendo.
Mesmo neste momento de muito medo, ele segue ainda mordaz, irônico, agudo.
Silvio, o que você acha da volta do futebol em plena pandemia. Com o número de mortes aumentando no mundo todo?
Só demonstra como esses dirigentes em qualquer lugar pensa antes no dinheiro. E depois na vida. Não tem cabimento forçar os jogadores a jogarem. Expondo a vida para que os clubes ganhem dinheiro com as transmissões? Isso é de um egoísmo sem fim.
Não tem protocolo que dê jeito. Na Europa são inúmeros infectados. Aqui no Brasil o Palmeiras tem 19 infectados, outros clubes têm nove, dez. A doença avança. E o futebol continua. Que imbecilidade, que ganância. A vida não tem preço.
O futebol sem público? Como fica a emoção do jogo, do narrador?
Olha, eu falo a verdade. É como orgasmo nas coxas. Sem graça, sem alegria. A participação da torcida é que faz o futebol ser mágico, trazer tanta emoção.
O que eu vejo é deprimente. Pior do que um treino. O som falso das torcidas nos alto falantes só torna tudo ainda mais triste. Porque você olha para as arquibancadas vazias ou cheias de bonecos.
A magia do futebol se perde. É tudo falso. Ganhar um título e comemorar com estádio vazio. É algo absurdo. Só acontece pelo amor dos dirigentes ao dinheiro.
Para o narrador fica muito difícil. Porque a energia que vem das arquibancadas é fundamental. Com o time da casa ganhando, perdendo. A tensão, a dramaticidade do jogo, do espetáculo está nesta emoção.
Mesmo quando você não está no estádio, faz um jogo do Exterior, por exemplo, essa energia chega com o som ambiente, real, de acordo com o que está acontecendo.
Hoje, vejo o futebol vazio, triste, deprimente.
E há algo que me deixa mais preocupado, com a volta do futebol.
O que é, Silvio?
O desrespeito ao protocolo. A Fifa não disse que todos deveriam estar afastados, distanciamento social, o escambau? Basta sair um gol e se vê aquela aglomeração, todos os jogadores dos times se abraçando, beijando, pulando uns sobre os outros.
É claro que a doença vai seguir se alastrando. Não dá para controlar juízes, adversários, bandeiras, funcionários dos estádios. O futebol vai contra todas as regras para evitar a Covid.
Silvio, e as coletivas à distância, depois dos jogos, não afasta ainda mais os atletas da imprensa?
Há muito tempo a relação de verdade acabou. Jogador só fala o que assessor de imprensa deixa, depois de perguntar para o empresário. É só resposta superficial, que não diz nada com nada.
Não há mais verdade nos jogadores, nos técnicos de futebol. É tudo teatro. Com respostas combinadas, treinadas, vazias. Jogador tem muito medo de falar de verdade o que pensa.
Além de ficarem cada vez mais inacessíveis.
Veja também: Cemitério onde Maradona foi enterrado se tornará 'ponto turístico'
Silvio, vou te dar um exemplo. Pedi uma entrevista para o Tiago, goleiro do Goiás. Ele é um dos melhores do país. Apesar de seu time ser o lanterna do Brasileiro. Falei com seu assessor. Ele me pediu as perguntas que o Tiago gravaria as respostas. E elas não vieram. Com todo o respeito, o goleiro do último colocado do Brasileiro...
Pois é, Cosme... Só confirma o que eu estou falando. Tiago? Nunca ouvi falar. E está jogando bem no lanterninha do Brasileiro. E mesmo assim não dá entrevista. É exatamente isso. Um medo inexplicável.
O sujeito luta para ser um jogador de time grande. E depois o assessor de imprensa e o empresário mandam fugir dos jornalistas. São burros. Não entendem que é a imprensa que os expõem para o mundo. Por isso que hoje em dia, eles passam a carreira inteira e ninguém sabe quem foram.
Como você acompanha a atual geração de jornalistas esportivos?
Vejo uma corrida louca, sem sentido pelo furo. Todo mundo quer, desesperado, dar a notícia que ninguém tem. Só que como há essa proximidade do jogador, dos dirigentes, fica tudo muito superficial, rápido, sem importância.
Cada um tem seu canal no Youtube, tem seus seguidores.
Falam o que quiserem. Se acham donos da verdade.
É uma geração muito egoísta.
E cada vez mais distante dos jogadores, técnicos, dirigentes.
É um "eu acho, eu acho, eu acho".
Muita gente achando e não informando nada.
Leia mais: Maradona no Brasil? Craque quase atuou no país por algumas vezes
Antes havia a proximidade do atleta, você conhecia o ser humano. Hoje ninguém chega perto, mas quer dar notícia de qualquer maneira. E fica algo sem sentido.
Eu entrevistava o Pelé, o Senna, Ademir da Guia, todos no auge. Conhecia a pessoa. E cobrava o profissional, o rendimento profissional. Não o lado pessoal.
É como se a maldade tivesse se espalhado no jornalismo, não só no esportivo. Como sou obrigado a ficar em casa, vejo muita televisão. E à tarde toda é fofoca, pessoas falando mal da vida dos outros. No esporte, no futebol, na vida.
Eu não sei como fomos parar nessa situação, de tanto ódio, uns dos outros.
Isso eu não tolero e acho que não leva para lugar nenhum.
Não aceito a cultura do ódio. Só se fala mal dos outros.
O que você achou da consternação da Argentina pela morte do Maradona
Eu entendo. Porque ele era um ídolo de verdade, de carne e osso. Que assumia seus acertos e erros. Não ficava escondido nas redes sociais.
Ele pode ter tido só a perna esquerda e nenhum cérebro, muitas vezes. Mas o que o Maradona fez no futebol foi algo sensacional. E o que representou para a Argentina no mundo merece todo o respeito.
Ele foi um ídolo de verdade.
Não sei se haverá uma comoção dessas por qualquer outro jogador que morrer. Nem o Pelé... Ele mora no litoral, vai ser enterrado por lá, não sei.
O Maradona era especial.
O jornalismo esportivo também perdeu o Fernando Vanucci. Qual a impressão que você tinha dele?
Sim. Ele morava também como eu, em Alphaville (condomínio em Barueri). Eu o encontrava no supermercado. Mas vou dizer uma coisa, Cosme. O sentia muito aborrecido por estar fora do ar, em um veículo forte. Estava triste.
Essa tristeza para alguém que teve tanta repercussão, tanto talento e que sentia que ainda poderia dar mais e não podia, pesa demais.
Ele me convidou, participei de um programa que ele tinha na TV Alphaville. Mas senti o Vanucci muito aborrecido com a vida.
Silvio, você é comendador. Recebeu a comenda da Ordem Nacional do Mérito Educativo do presidente Itamar Franco. Como foi essa premiação?
Foi uma das coisas mais inesperadas. E loucas. Eu estava na Copa de 1994 nos Estados. E fiquei empolgado ao saber que uma nova moeda foi criada: o real. E que ela valia um dólar. Peguei as duas notas e comemorei no ar.
O Chico Pinheiro, da Globo, que era amigo do Itamar, contou para ele. E o presidente resolveu me dar a comenda. Por acreditar no poder econômico do Brasil.
No mesmo dia que cheguei para receber a comenda, o Didi dos Trapalhões estava lá também para receber a sua.
Silvio, você assistindo agora, com calma forçada, as transmissões, reconhece sua influência em alguns narradores da nova geração?
Sinceramente? Em vários. Mas eu nunca usei a descontração pela descontração. Quando passava a receita de um bolo durante o jogo é que a partida estava ruim demais.
Nunca fiz nada por acaso, sem saber o que estava fazendo. Criticava o jogador, mas respeitava o ser humano, algo que muitas vezes não acontece agora.
Não gritava. Você não chama a atenção para um jogo gritando no ouvido do telespectador.
E tem outra coisa, Cosme. O narrador narra, não comenta. Cada um faz o seu. Aprendi com o Luciano do Valle. Narrador narra. Comentarista comenta. E reporter, reporta.
Há narradores que querem fazer tudo. O que eu acho uma profunda falta de respeito.
Silvio, você tem 86 anos, não pensa em aposentadoria?
De jeito nenhum. Essa pandemia deixou ainda tudo mais claro para mim. Eu nasci para trabalhar e quero morrer trabalhando, se Deus permitir.
Sinto falta demais de chegar na redação, levantar todas as informações dos times que vão jogar. E sentar para narrar um jogo de futebol.
E ir para a rádio (Transamérica) falar sobre futebol.
Me faz falta demais.
Quero morrer trabalhando.
Qual a primeira coisa que fará quando a pandemia passar?
Ir até o centro de São Paulo. E comer um filé do Moraes. Filé mignon com bastante alho torrado. E depois ir para o Almanara comer um quibe cru com coalhada. Como fiz por mais de quarenta anos.
Eu não aguento mais ficar preso em casa...
Aos 10 anos, filho de Fagner tem 1º contrato assinado com Corinthians
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.