“Brocamos!” Rogério Ceni desce do pedestal. Se torna mais humano. O Bahia ensinou: ser técnico não é se comportar como militar, hierárquico
O que parecia impossível há três anos está acontecendo em Salvador. Rogério Ceni está mostrando seu lado humano, perdendo a pose. O empolgante clube nordestino, bancado pelo grupo City, o fez menos hierárquico. Seu time conquistou vitória histórica na Libertadores
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“Brocamos!”
Não parece ser possível.
Mas esta gíria popular estampada, hoje, nas redes sociais de Rogério Ceni não combinaria há dois anos.
De jeito algum.
Mesmo comemorando uma vitória histórica do Bahia.
Depois de 36 anos, o clube, dono de uma das mais apaixonadas torcidas deste país, voltava a jogar na sua casa, pela Libertadores.
E eliminou, despachou, se impôs diante do boliviano The Strongest, por 3 a 0.
Para delírio de 54 mil torcedores, que fizeram a Fonte Nova tremer, vibrando por um time impositivo, como tanto gosta, Ceni.
Agora espera o vencedor da disputa entre o uruguaio Boston River e o chileno Ñublense, para ter o direito de entrar na fase de grupos.
A euforia toma conta da metade de Salvador, os apaixonados pelo Vitória, sentem: o rival renasceu.
E graças ao treinador paranaense.
Desde seus 25 anos como goleiro e maior ídolo da história do São Paulo.
E, principalmente, quando se tornou treinador, em 2016, ele cultuava a imagem exageradamente séria.
Hierárquica, quase militar.
Não queria intimidade com os jogadores, comemorações públicas em gols, abraços, afagos nos atletas.
Nas entrevistas, buscando palavras rebuscadas e estatística, se escondia, mais do que se explicava.
Provocava um desconfortável distanciamento dos dirigentes, dos jogadores, da imprensa, que o prejudicava.
Quem o conhece mais de perto e, é raro amigo, justifica que Ceni moldou sua imagem buscando respeito.
Percebeu ainda como atleta que os jogadores se expunham de maneira exagerada, principalmente seus defeitos.
De gênio fortíssimo, e ciente do seu talento, esperou, mas quando se sentiu pronto, foi direto à direção do São Paulo.
Foi claro.
Zetti era o titular do time.
Rogério Ceni tinha uma proposta excelente do Internacional.
E ele foi claro, transparente, mas firme.
Estava na hora de ser o goleiro principal de uma equipe grande do país.
A pressão da mídia para ele tomar o lugar de Zetti estava ficando insuportável para os dois.
E a direção optou por negociar Zetti com o Santos.
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Foram 25 anos de idolatria justa a Rogério Ceni.
Por seu talento, dedicação, personalidade e liderança.
Seu gênio forte se impôs no São Paulo, mas o afastou da Seleção, já que ele errou feio ao tentar se comportar como se fosse intocável, como no Morumbi. E deixou de ter uma carreira, que seria justa, como goleiro do Brasil.
Ao se tornar treinador, em 2016, se preocupou em estudar estratégias, mas não relacionamento humano.
Esse foi seu erro.
O São Paulo até que o respeitou demais nas duas passagens fracassadas.
Por sua idolatria como jogador.
O Cruzeiro o rejeitou de forma fulminante, ao tentar enfrentar a irmandade dos veteranos do time.
No Flamengo, de nada adiantou vencer o Brasileiro, a Supercopa do Brasil e o Carioca.
Seu relacionamento rancoroso com dirigentes e jogadores o derrubou.
No Fortaleza, com carta-branca para revolucionar, modernizar o clube, teve duas passagens marcantes.
Mas também se postou de maneira hierárquica.
E, digamos, profissional demais.
Ao trocar o clube que o fez, na prática, presidente, para assumir o Cruzeiro.
O aceitou de volta, menos de dois meses depois, de sua desastrosa passagem.
Para vê-lo ir embora para o Flamengo.
Demitido da Gávea, voltou ao São Paulo.
E outra vez, o ídolo maior teve de ouvir a torcida que o ama chamá-lo de ‘burro’.
Demitido pela segunda vez.
Foi quando o Bahia resolveu apostar todas as suas fichas no sisudo treinador.
Um casamento improvável, motivado pelo instinto de sobrevivência dos dois lados.
Ceni queria uma grande equipe e com respaldo para impor seus métodos modernos, mas rígidos demais para o futebol brasileiro.
A direção do Bahia aceitou porque tudo que queria era não ser rebaixada para a Segunda Divisão.
Já que o acordo com o grupo City estava fechado.
E o relacionamento começou tumultuado, mas o primeiro objetivo foi alcançado, nada de rebaixamento.
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Desde 8 de setembro de 2023, os dois foram se conhecendo de verdade.
Ceni percebeu a vontade do clube que já foi campeão deste país se reestruturar, com o dinheiro, limitado, do grupo City.
A equipe brasileira é vista como formadora de jovens jogadores da América do Sul, para serem vendidos ou usados pelos 14 clubes que o City possui. Além dos quatro times parceiros.
O proprietário bilionário do City é o grupo Abu Dhabi United.
Muito inteligente, ele percebeu que foi escolhido para estruturar, modernizar o Bahia.
E, lógico, nesse processo, brigar por títulos.
Em conversa franca com a direção, deixou claro que levaria tempo, não seria uma transição fácil.
Desde então, instalações, métodos de trabalho, concentração, nutrição, departamento médico, fisiológico, de análise de desempenho, tudo teve de ser mudado.
Só que os campeonatos aconteciam.
E nada de títulos.
Foi vice no Baiano de 2024, o time caiu na semifinal na Copa do Nordeste.
Mas no Brasileiro, com a oitava colocação, que veio a primeira grande satisfação.
Disputar a primeira fase da Libertadores, ou como chamamos aqui no Brasil, de Pré-Libertadores.
Veio o empate na altitude de La Paz, contra o The Strongest, em 1 a 1.
E a vitória, ontem, consagradora, por 3 a 0.
Rogério Ceni, aos 52 anos, percebeu que precisava descer do pedestal.
Se aproximar de verdade dos jogadores, da direção, da imprensa, dos torcedores.
Ele está mais afável, menos hierárquico, mais humano.
O ego já passou a entender melhor as cobranças, as críticas pelo cargo que ocupa.
Decidiu se expor nas redes sociais.
Postou o ‘brocamos!’
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E na coletiva deixou sua emoção vir à tona.
“Eu fico feliz mesmo, de coração. Sempre tratei essa competição, pude jogar mais de uma centena de vezes entre atleta e treinador. Quando você vê ‘Glória Eterna’, é eterna mesmo. Você sempre é lembrado porque ganhou.
“Meu próximo sonho é ver o Bahia na fase de grupos da competição. Espero poder no dia 12 estar aqui fazendo uma nova entrevista com o Bahia na fase de grupos. E aí, sim, vamos ver sorteio, possibilidades, e ver o Bahia caminhar na fase de grupos.
“Meu sonho agora é ver o Bahia entre as equipes que disputam seis jogos na fase de grupos.”
Mas antes, a partir de sábado, Ceni tem a obrigação de dar toda a atenção ao Campeonato Baiano.
Fazer seu competitivo time titular vencer o Jacuipense em casa.
Levar vantagem para o jogo semifinal decisivo.
E chegar à nova final do Estadual, possivelmente, contra o Vitória.
Conseguir o título com as cores do agora, seu ‘Bahêa’.
Seguir na fase de grupos da Libertadores.
Fazer o que está aprendendo em Salvador.
A mostrar seu lado humano.
E, principalmente, a brocar...