As lágrimas de Endrick têm um culpado: Abel Ferreira. O técnico prioriza o esquema vencedor do time. E escala o garoto 'errado'
O jejum de dez partidas sem marcar um gol fez Endrick chorar ontem no Allianz. Ele sabe que não rende porque atua improvisado, entre os zagueiros. Ele virou 'fenômeno' na esquerda, no lugar ocupado por Dudu
Cosme Rímoli|Do R7 e Cosme Rímoli
São Paulo, Brasil
Aos 14 minutos do segundo tempo, Abel Ferreira tira Endrick da partida contra o Red Bull Bragantino.
O atacante de 16 anos vai para o banco.
Ganha um colete amarelo dos reservas, para que a camisa verde não confunda a arbitragem.
Primeiro, ele fica olhando para o chão, pensativo, enquanto a partida continua. Depois, puxa o colete e cobre, com ele, seu rosto.
E começa a chorar.
O jogador, que fez o Real Madrid investir mais de R$ 404 milhões, está arrasado.
Não suporta mais as cobranças por dez jogos sem marcar um único gol, em 2023. Foram oito como titular e dois como reserva.
Como explicar o jejum para o atleta que é considerado um fenômeno na base?
Nas categorias de base, marcou 161 gols em 188 jogos. Foi o mais jovem atleta da história do Palmeiras a estrear como profissional. Assim como a marcar um gol, deixando de ser amador.
Fez três gols em 2022.
E a perspectiva em 2023, já titular absoluto de Abel Ferreira, era que seria o goleador fenomenal da base que todos esperavam. Que fez o Real Madrid, o Barcelona e o PSG disputarem um leilão por ele, até se transformar no segundo atleta mais caro que o Brasil já vendeu na história. O primeiro continua sendo Neymar, que o Santos vendeu ao Barcelona.
O estafe de Endrick conta com psicólogo, coach, especialista em mídia, nutricionista, preparador físico. Além de todo o amparo que tem no Palmeiras.
Não tem abusado da noite. É o primeiro a chegar para treinar e o último a ir embora.
O que acontece com o jogador?
É simples, ele sabe, mas não pode expor publicamente.
Tem jogado "errado", em uma posição que não é sua e na qual não rende.
Está sendo sacrificado pelo esquema tático do melhor treinador do Brasil.
Durante seis anos de sua precoce carreira, ele se habituou a atuar como segundo atacante pela esquerda. Com todo o setor de lado de campo aberto para que pudesse demonstrar sua velocidade, habilidade e poder de finalização.
Mesmo nas seleções brasileiras sub-17 e sub-20, a forma de atacar o adversário era essa.
Abel Ferreira sabe disso.
Só que ele escolhe a posição de Endrick que beneficie o time.
Nesta temporada, sem Gustavo Scarpa, o treinador optou por uma equipe com apenas um meia. E passou o time mais agudo, com dois ponteiros: Rony na direita e Dudu na esquerda. E usando Endrick, onde ele não rende, não gosta de jogar: como referência, encaixotado entre os zagueiros adversários.
Assim, ele pode manter Gustavo Gomez, Murilo e Piquerez como uma linha de três zagueiros. Dudu tem mais vivência para atacar e ajudar na recomposição, quando o Palmeiras é pressionado pela esquerda.
Esse é o entrave.
Para que Endrick atue como rende muito mais, Abel precisaria fazer Dudu atuar na direita. E Rony como referência. E deixar o lado esquerdo para Endrick.
Como fez no acerto contra o Corinthians, na semana passada.
Mas o treinador sabe que precisaria ter um volante muito mais rápido, defensivo e habilidoso. Como era Danilo. Zé Rafael é lento para cobrir a falta de costume de marcação de Endrick. Piquerez seria sobrecarregado.
Como no filme Escolha de Sofia, Abel tem de fazer um sacrifício. Ou beneficia Endrick. Ou o time, que lidera invicto no Paulista, ganhou a Supercopa do Brasil.
Endrick está sacrificado e continuará.
Ele não pode reclamar publicamente de Abel Ferreira. Do esquema vencedor do Palmeiras.
Mas está se desgastando, perdendo confiança e ajudando cada vez menos o time.
Frustrado.
Pior, perdendo a paciência. E descontando nos adversários. As provocações de zagueiros e volantes menos técnicos têm tirado a concentração de Endrick. Ele passou a responder até aos pontapés.
Ao ser substituído ontem, Abel não percebeu toda a tensão de Endrick. E apenas lhe estendeu a mão e deu um tapa nas costas.
O garoto de 16 anos foi para o banco, se isolou e chorou de frustração.
"Eu sou um crítico de mim mesmo, porque não lhe dei um abraço (no banco). Ele precisa de um abraço.
"O que eu peço a ele é que não perca o sorriso na cara.
"Ele vai errar, vai acertar... Mas ele tem 16 anos. Se jogar normalmente como jogam hoje em dia, jogará até os 38, 40... Então, só tem que continuar a sorrir e entender que o treinador está aqui para ajudar, o elenco está aqui para ajudar, o clube está aqui para ajudar. Será tudo no tempo de Deus", disse Abel Ferreira.
A "salvação" de Endrick passa pela convicção do treinador.
O treinador palmeirense precisa fazer o que não quer, para que Endrick não fique ainda mais abalado.
Um revezamento.
Fazer com que, durante os jogos, Dudu vá para a direita, Rony passe a ser o homem de referência, brigando com os zagueiros, e Endrick tenha o lado esquerdo à sua disposição.
É do que o jovem atacante precisa.
Muito mais do que um simples abraço.
Precisa de apoio tático do time para que possa dar suas arrancadas e dribles e marcar os gols a que estava acostumado.
Como fazer isso encalacrado entre os zagueiros?
De costas para o gol?
Sem poder explicar para a imprensa que o seu problema está no esquema vencedor de Abel Ferreira, o garoto sofre em silêncio.
E chora.
Só não entende as lágrimas de Endrick quem não consegue enxergar o futebol como um jogo de estratégia. De movimentação que facilita ou atrapalha um atleta.
O Palmeiras que consagrou o menino agora o atrapalha...
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