Ex-craque Marcel não vê mais basquete: 'Jogador hoje é empresa'
Voltado à Medicina e a palestras, ele disse ao R7 que não quer mais ser técnico por não se sentir ouvido como nos tempos em que era ídolo
Olimpíadas|Eugenio Goussinsky, do R7
Quando era jogador, o ala brasileiro Marcel Ramon Ponikwar de Souza, o Marcel, tinha uma característica peculiar: simplesmente decidia a maioria das partidas de basquete das quais participava. Hoje, aos 63 anos, ele avalia que, justamente por isso, tudo que falava era quase uma ordem. Sentia-se ouvido.
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Depois que parou, com mais de 25 anos de carreira, tentou passar o que aprendeu e explicar o porquê da facilidade de decidir os jogos, para uma nova geração, como treinador. Suas palavras não mais ecoavam. Queria contar aos jogadores que, quando criança, não se via com talento e que o adquiriu ao longo do tempo, com um treinamento intenso, mas adequado. E aceitando as palavras de um tutor.
O tutor dele foi o seu pai Ramon de Souza, o Romão, que, de fora das quadras, temperava seu amor de pai com uma visão mais ampla, por ter sido um ídolo do basquete em Jundiaí, onde Marcel foi criado e passou a maior parte da vida. Marcel, porém, não se sentiu realizado nesta função fora das quadras, como treinador.
E hoje, morando em Jundiaí, ele deixou o basquete de lado, para se dedicar a duas atividades: a Medicina e as palestras. Na sala do hall do prédio onde mora, ele diz que quase não vê jogos, assiste basicamente a alguns melhores momentos em noticiários.
"Meu genro, Guilherme Giovannoni (ex-jogador e comentarista da ESPN) é que me conta como estão as coisas, quando vou à casa dele ou ele à minha", afirma.
Como médico, o ex-craque se sente útil ao ajudar as pessoas, do ponto de vista clínico. Ele costuma dizer que basquete foi um amor incondicional e a medicina, uma missão. Como palestrante, sem o objetivo motivacional, busca a conscientização, por meio de seu exemplo, baseado no seguinte lema: “O talento não existe.” Sim, Marcel humildemente revela que o talento não existe.
“Não tem eco, você fala diferente dos outros, vou fazer 63 anos, vejo o jogo de um jeito diferente, ninguém vê desse jeito, por que que eu vou ficar insistindo? Aos 63 anos, o que quero? Ser técnico por mais 10 anos? Não, quero aproveitar, viajar, a experiência no Pinheiros (última como treinador, em 2014) foi muito traumatizante. Vi que estou fora do negócio, não estou magoado, vejo que insistir seria teimosia, dou palestra e trabalho”, afirma.
Marcel já nasceu envolvido com o esporte. E conseguiu aliar os dois: a escola e a bola.
"Meu pai foi jogador de basquete. Eu cresci vendo ele jogar. Mas no começo eu era ruim. De repente, com 16 anos espichei, treinei muito, mas da forma certa e aos 16 anos já estava na seleção brasileira", diz o ex-atleta, de 1m99.
Esporte não é tudo%2C sem estudo
A exigência do seu Romão, falecido em 1989, e da dona Loira de Souza, a mãe de Marcel, era para que ele priorizasse o estudo. O mesmo ocorreu com o irmão mais novo Maury, que, além de armador de alto nível, se formou em Odontologia. Hoje ele atua como cirurgião buco maxilo facial.
"O Maury demorou mais para terminar o curso. Eu já fiz direto e terminei. Ele teve de ir parando por causa da carreira. O Maury é o maior armador do Brasil em todos os tempos, não tenho dúvidas quanto a isso."
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Em 1975, Marcel encarou o desafio de passar um período atuando por uma universidade nos Estados Unidos. Antes de iniciar a temporada regular, porém, o pai dele o fez voltar, temendo que entrasse para a NBA e não estudasse mais.
"Na época não havia o mesmo profissionalismo no Brasil. Eu sempre estudei e joguei. Meus pais exigiam notas boas e não cestas boas", ressalta.
Desde os primeiros treinos em Jundiaí, aos 5 anos, até o profissional, ele não largou os estudos. Mas parece ter encontrado uma fórmula eficiente para aliar as duas atividades.
Ele fez do basquete uma continuidade da escola. E da escola uma continuidade do basquete. Até o terceiro ano primário, estudou no Colégio Francisco Telles. Depois, na escola Instituto, já treinava no Corinthians, a partir dos 12 anos, três vezes por semana.
“Tinha de ter nota boa ainda era dos melhores da classe, se não jogasse ia ser melhor médico, desses formados na USP, meu pai contratava um motorista que me levava três vezes por semana para treinar, nem tinha Marginal, eram pedaços de via, ia para esquerda, direita saía, entrava em outro pedaço, entrava na Dutra e depois voltava e chegava ao Corinthians, demorava umas duas horas”, se recorda.
Marcel conseguiu, mesmo já atuando profissionalmente pelo Sírio, se tornar médico, graduado na Faculdade de Medicina de Jundiaí, especializando-se em Radiologia e Medicina da Família e da Comunidade, profissão que exerce hoje.
Em 1993, quando estava para encerrar a carreira, iniciou uma especialização de cinco anos na USP, já que não havia feito residência. E hoje atua em clínicas da região, revezando-se entre Valinhos, Louveira e Franco da Rocha, além de Jundiaí. Mantém também uma empresa de consultoria no esporte.
“Conciliar foi super fácil (brinca): era só dormir quando dava. Uma hora aqui, 45 minutos ali, e vamos indo. Não sei o que seria de minha vida sem a Medicina. É uma missão que escolhi. Gosto muito de fazer a diferença na vida de alguém.”
Ele, ao lado de Oscar e outros grandes de sua geração, fizeram o basquete brasileiro reviver momentos empolgantes. A seleção havia sido campeã mundial em 1959 e 1963, com jogadores como Wlamir Marques e Amaury, que até hoje despertam a admiração do ex-jogador.
“Sei que nossa geração poderia ter ido ainda mais longe. Foi uma questão de oportunidades. Mas a geração de 59 e 63 é incomparável”, afirma.
A partir de 1978, pode-se dizer que Marcel iniciou sua fase áurea. Fez a histórica cesta contra a Itália, que deu o Brasil o terceiro lugar no Mundial.
“No Mundial de 78 tivemos a chance de sermos campeões, mas perdemos um jogo para a Iugoslávia que nos garantiria a final. A cesta na última bola foi apenas um detalhe na história desse time”, diz.
No Sírio, Marcel despontou, sendo um dos protagonistas de inesquecíveis duelos com a Francana, de Hélio Rubens, Fausto e outros. O Ginásio do Ibirapuera lotava para ver os jogos, alguns deles válidos pelo Mundial de Clubes. O Sírio conquistou o título da competição em 1979.
Marcel, que já atuara por um ano nos Estados Unidos, em 1975, mostra uma faceta de ser humano comum, em contraposição àquela imagem heroica que ele vinha adquirindo.
"No Mundial do Sírio, quando fomos campeões e fiz 23 pontos por jogo, todo dia de manhã eu tinha prova na faculdade. Jogava à noite, concentrado no Ginásio do Ibirapuera, acordava às 7h, pegava o carro ia pra Jundiaí. Ficava fazendo a prova, voltava às 16h, dormia um pouco e jogava."
A vivência com o basquete o ajudou. Se ele superava críticas da imprensa e de torcedores, poderia também ir bem no estudo.
“Eu conseguia separar as coisas. Quando você faz Esporte, você tem de ficar concentrado no que está fazendo, não liga para torcida, o cara te xinga, você se educa para ficar focado naquilo, fico concentrado, minha esposa atual diz que eu tenho foco hipertrofiado”, brinca.
De longa distância
Com fala direta, sotaque do interior, Marcel não perde a simplicidade. Nunca se sentiu celebridade. Nos anos 70, já como jogador da seleção, ia de metrô aos treinos do Sírio, morando em uma quitinete na rua Frei Caneca, em São Paulo, que dividia com o massagista Félix.
"Praticamente só nos víamos nos treinos. Ele chegava às 3h da manhã e eu já estava capotado. Às vezes íamos juntos para o treino e eu pagava o almoço", lembra.
Na outra quitinete, também mantida pelo clube, moravam o ex-jogador e hoje comentarista Agra e um jovem jogador de nome Eugênio, de Minas Gerais.
Marcel conta que não foi fácil a vida no alto rendimento. Em 2013, colocou uma prótese no joelho. Mas até hoje ele vivencia cada momento, difícil ou glorioso, de um esporte que mudou muito.
“Eu e o Oscar resolvíamos tudo, desde embarque, não tinha classe executiva. Hoje o cara vai de executiva né? Íamos sentados na cadeira do corredor e na saída de emergência. Nós dois jogávamos na Itália e ainda não tinha no Brasil o cartão de crédito internacional. Para a seleção, usávamos os nossos lá, alugávamos carro para a equipe, depois a Confederação Brasileira pagava. Definíamos hora do jantar, tudo. Hoje não tem mais isso, o jogador é uma empresa”, lembra.
Marcel lembra que a preparação dos jogadores para torneios da seleção brasileira eram muito mais longas.
“A NBA, no caso dos jogadores da seleção brasileira, só deixar treinar um mês, o cara tem várias coisas para divulgar, para dar um retorno estipulado em contrato. Na minha época, para o Mundial de 78 treinamos quatro meses e para o Pan-Americano de 1987, em Indianápolis, só nos Estados Unidos, treinamos um mês.”
A seleção brasileira ficou treinando na Universidade de Houston, com refeições no refeitório e utilizando os dormitórios locais. A iniciativa foi dos próprios jogadores, que pediram para o pivô Rolando, que atuara na universidade, acertar a permanência com os contatos que ele tinha.
“Pedimos para o Rolando e apresentamos a proposta para a Confederação! Era desse jeito que acontecia. Mas treinamos tanto, com jogos contra equipes de lá, que chegamos voando.”
A histórica vitória sobre os Estados Unidos, por 120 a 115, de virada, que valeu a medalha de ouro em pleno território americano, foi realmente inesperada.
“Entramos mesmo para perder de pouco, nem teve palestra antes do jogo. E aí começou, perdíamos por 14 pontos, estava bom. Começa o segundo tempo e a diferença vai para 28. Aí começamos a bater mesmo, não tinha outro jeito, pensamos que íamos perder de 50. Você já perdeu de 50? Precisa ver como é ridículo. Os caras jogam na tabela para entrerrar, passam a bola por trás, é muito chato. Então eu falava, ‘vai querer o quê’ provocava e, em vez de continuarem, entraram na conversa e perderam.”
Os arremessos de longa distância, valendo três pontos e instituídos em 1984, eram algo natural para ele, que passou a treinar muito.
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“No contra-ataque, eu ia para a direita, ganhava espaço só para arremessar. Perguntavam, 'onde ele vai?'. Meus companheiros já iam para o rebote e, quando pegavam, em vez de arremessar embaixo da cesta, me passavam de volta, para eu fazer os três pontos. Eu treinava muito, já estava automatizado”, conta.
Sempre o basquete
Foi essa insistência que levou Marcel a suas conquistas pessoais e coletivas, segundo ele mesmo concluiu. E essa experiência, agora, ele busca passar, ressaltando que o talento é fruto essencialmente da persistência, de um treino bem direcionado e da presença de alguém que dê o devido apoio.
“Às vezes eu me queixava com o meu pai de algo e ele dizia que eu era bom e iria superar aquilo facilmente. Me ajudava como tutor a ter confiança. Quando eu ainda tinha 16 anos, ele foi reclamar para os diretores que eu jogava pouco. Depois fui para os Estados Unidos e ouvi me dizerem que, pelos jogos informais (rachas) viam que eu em quatro anos iria estar na NBA. Meu pai logo foi falar isso para os dirigentes brasileiros e eles pediram a minha volta imediata. Meu pai era um excelente tutor”, afirma.
Marcel revela que chegava a treinar mil arremessos por dia. Isso supria suas necessidades para evoluir no Esporte.
“Um bom treino pode ser feito em uma hora e meia. Há muita gente que treina demais e mesmo assim acaba não dando certo”, ressalta.
Marcel é prático, não se apega ao passado para se lamentar. E nem a objetos. Ainda assim é sensível, preferindo manter tudo em sua memória.
"Só guardo uma camisa da seleção, exposta em uma moldura", revela.
Apesar de alguns traços de sessentão, com alguns fios de cabelo branco e uma ou outra ruga, Marcel mantém a jovialidade em seu aspecto e em sua fala interiorana.
Sempre que fala da família, o faz com carinho e compreensão. Do pai, se recorda com devoção.
"Ele orientava, participava, vibrava. O sonho dele era nos ver em uma Olimpíada. E ele nos viu", conta, para depois dar um sorriso de face a face.
"Contra o Maury eu jogava sério, como em qualquer partida. Minha mãe torcia para ele, mas eu não ligava", brinca, afirmando ter consciência de que, dos dois irmãos, ele era o mais famoso e, portanto, a dona Loira pendia para o outro lado apenas em busca de um equilíbrio.
E mesmo afastado do basquete, Marcel o carrega em suas palestras, sem remorso. Foi o Esporte quem lhe deu as diretrizes. Para hoje se sentir livre. Mas sempre com um objetivo. Como a bola que ele lançava no ar, a cada arremesso.
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