Logo R7.com
Logo do PlayPlus

Abnegados do esporte apitam e 'ensinam' nas categorias de base

Mal remunerados, profissionais da arbiragem relatam dificuldades para lidar com pais e importância de educar crianças para o esporte e para a vida

Olimpíadas|Eugenio Goussinsky, do R7

Arbitragem ajuda na formação de jovens esportistas
Arbitragem ajuda na formação de jovens esportistas

O cheiro de éter na quadra, um alarido vindo da torcida no ginásio, o ruído fino dos tênis raspando na madeira são inesquecíveis. Ficam para sempre na mente de um adulto que praticou algum esporte na infância. Nesta lembrança, de repente, ele ouve o trilar de um apito. Também vem à memória a campanhia do placar encerrando um tempo ou um jogo

Leia mais: Lei Pelé garante segurança em alojamentos das categorias de base

Então ele se pergunta, um tanto grato: por que um árbitro ou um mesário ia apitar jogos de crianças às 8h da manhã, lá longe, às vezes em outras cidades, para muitas vezes ganhar apenas um complemento do salário que ele recebia em outras profissões? 

Zé das Dores atua há mais de 40 anos como árbitro
Zé das Dores atua há mais de 40 anos como árbitro

Até hoje, a cada ano, milhares de crianças ainda disputam competições por clubes, escolas e entidades. Nos camponatos do Pepac (Programa Esportivos dos Associados de Clubes), realizados pelo Sindi Clube (Sindicato dos Clubes do Estado de São Paulo), sem fins lucrativos, houve a participação de 3.650 jovens e crianças em 2018, em categorias como futsal (masculino) e vôlei (masculino e feminino).


No rastro dessas crianças, dezenas de árbitros, de forma abnegada, se mobilizam pelo menos uma vez por semana para trabalhar nestes jogos, ganhando, segundo o R7 apurou, cerca de R$ 100 em cada partida.

Veja mais: Meninos do Brumadinho FC treinam para 1º jogo na cidade após tragédia


Futsal infantil

O paulistano José Carlos das Dores, o Zé das Dores, de 64 anos, é um exemplo deste tipo de profissional. Ele se apegou ao apito como forma de vida. Depois de trabalhar em jogos de futsal profissional, abriu uma empresa independente, que cuida apenas de competições interescolares.


E se acostumou, com mais de 40 anos de profissão, a ouvir xingamentos de pais furiosos com suas marcações e de ouvir elogios dos mais sensíveis, que percebem a sua função mais importante: a de ajudar na formação e na educação dos meninos e meninas.

"É uma função que requer muita sensibilidade e formação. Sou professor de Educação Física e utilizo meus conhecimentos e minha experiência para tentar ajudar as crianças. Durante os jogos é importante orientar sobre procedimentos corretos, mostrar a importância do respeito ao outro, de saber pedir desculpas, de jogar com fair play. Mas ainda tem gente que não é do ramo e que conduz o jogo como se não estivesse lidando com crianças, falando palavrões. O esporte pode conduzir para esses dois lados, e esta fase é um importante aprendizado."

Engana-se quem diz que o árbitro sempre é um jogador frustrado. Das Dores nunca tentou ser jogador. Ingressou na profissão inspirado por seu professor de educação física na escola estadual, Roberto de Almeida Banzé, que atuou no futsal por vários clubes. E depois de apitar até decisão de Mundial de futsal, como a de 1996, Das Dores agora só se dedica às crianças.

Veja mais: Delegação de atletas especiais faz 'vaquinha' para disputar Olimpíada

"Faço isso acima de tudo por paixão. Vejo o esporte como uma maneira de se relacionar. E percebo que ainda há muitas pessoas que, no calor, não conseguem ver o árbitro como ser humano. Mesmo nessas categorias. Há pais que xingam, que pressionam filhos para serem competitivos de uma maneira distorcida. É comum as pessoas só olharem os nossos erros. Infelizmente é da cultura do Brasil. O dia em que o juiz acerta, não fez mais que a obrigação. Nestes jogos também muitas vezes é assim."

Respeito e anonimato

Mas Das Dores conta que há muitos que entendem o significado desta atividade. E isso o gratifica.

"Um dia, durante o jogo, me agachei para amarrar o tênis de um garoto. Fui aplaudido pelo ginásio inteiro. Tem de tudo e a gente faz de tudo para colaborar. O resto é nossa consciência e a compreensão para aceitar quando se acerta e quando se erra. E passar esses ensinamentos para as crianças. O meu objetivo é sempre acertar."

Veja mais: Surfistas da neve: Jovens do litoral de SP se destacam no snowboard

A paixão também move a mesária Camila Galvão, paulistana de 32 anos. Muitas vezes ela acorda às 5h30 para trabalhar em jogos de crianças, inclusive pelo Pepac, do Sindi Clube. Tendo se formado em marketing, durante a semana, trabalha na produção de vídeos. Mas como já jogou futsal, gostou da sugestão de um amigo para atuar no Esporte quando se aproximou dos 30 anos.

"Atuar como mesária mudou muito minha compreensão do esporte. Nos tempos em que jogava, sempre discutia com os árbitros. Depois, vi como é difícil e como as pessoas falam sem saber o que se passa."

Leia também

Camila também ressalta que seu objetivo é educativo, contando que, lá da mesa, orienta as crianças sobre a melhor conduta em quadra. E trata com muito cuidado dos documentos que chegam às suas mãos, sem tirar os olhos da garotada.

"Sempre alerto para que fiquem sentadinhas no banco, se não vão sair da quadra ou algo assim. Cuido do tempo e do placar do jogo. Os pais se apegam muito a isso. Para nós vale o que está na súmula. Muitas vezes eles xingam, falando que o tempo ou o placar está errado e não sabem que o sistema falhou ou houve algum problema."

É comum também que sua função não seja considerada relevante pelas crianças e até pelos pais. Mas ela está acostumada com as injustiças naturais deste "anonimato" e procura utilizar isso também para educar.

"Há crianças que nem percebem o nosso trabalho. Mas procuro mostrar que todos têm importância em uma partida. A melhor maneira é mostrar a importância do respeito. Quando alguém é tratado com respeito, também aprende a respeitar."

Troca com as crianças

Crianças, por outro lado, também são grandes fontes de ensinamento. E os árbitros acabam aprendendo com elas. Em um mundo cheio de malícia, a pureza infantil muitas vezes mostra um caminho novo. Quem fala isso é o ex-árbitro de basquete Carlos Renato dos Santos, o Renatinho, que ficou famoso ao apitar as finais olímpicas do basquete masculino em Sydney 2000 e Atenas 2004.

No entanto, sua vocação o levou a iniciar na profissão aos 12 anos, em 1985, após fazer curso na federação paulista. Ficou por cerca de 20 anos na base, onde ensinou e aprendeu.

"O árbitro aprende muito com as crianças, é uma troca, um feedback, você aprende muito em categorias como a sub-11. A criança está começando a ter noção dos fundamentos, é interessante porque você aprende, eles são muito puros, quando vêm falar algo, vêm de coração. É uma troca constante, e você também se sente um pouco responsável pela formação dele. Quando vê ele dois, três, quatro anos depois e percebe uma evolução grande, você fica feliz porque sente que fez parte dessa evolução."

Veja mais: Incêndio no Flamengo provoca preocupação sobre CTs no país

Renatinho conta que a base o ajudou a atuar nos profissionais. Mas, independentemente disso, enquanto atuou junto a crianças, seu maior objetivo era educativo.

"Na base, que também prepara os árbitros para atuarem no profissional, minha atuação era muito educativa, mais de formaçao do que para punir. Claro que em categorias sub-15 e sub-17 há alguns jogadores mais malandros e você tem de saber como lidar. Mas o caráter formativo era importante e eu tinha muito isso."

Assim como disse Zé das Dores, Renatinho era alvo da reclamação dos pais, que não viam os jogos de maneira lúdica. Ele até criou um interessante hábito para acalmá-los.

"Tinha pais fanáticos que querem que o filho seja o melhor e que são mais rudes com a arbitragem e com o adversário. Então eu levava algumas balinhas no bolso. Quando o pai ficava nervoso, eu parava, lhe dava umas balinhas, falava 'calma, não fica nervoso, senão você prejudica seu filho'. Isso acabou sendo legal porque ganhei a amizade dos pais desta maneira, por colocar na cabeça deles como é importante não fazer pressão, porque isso acaba influenciando na atuação do filho dentro da quadra."

Renatinho não divide a arbitragem por esporte. Para ele, todos os árbitros têm uma essência em comum.

"Acredito mais na paixão em ser áritro do que na paixão pela modalidade que o árbitro escolheu. A função do árbitro é muito contagiante, tem que gostar muito para realizar essa atividade."

Veja mais: Arara curiosa pega carona com ciclistas e intriga especialista

Jogador profissional

Passada a fase de formação, é o futuro que vai dizer para onde a criança conduzirá o que assimilou. Mesmo não se tornando um profissional do Esporte, as lições ficarão para sempre e serão importantes para as decisões que tomar na vida.

E se a opção for se tornar um jogador profissional, as lições têm de estar presentes também. Quem diz isso é Décio Berman, que por muitos anos atuou em categorias de base do futsal, tendo chegado à seleção brasileira. Hoje, Berman é empresário de jogadores de futebol de campo, e passa sua experiência para seus pupilos. Como os árbitros e mesários faziam com ele.

"Os árbitros e mesários são uma das primeiras referências que o jovem jogador tem para desenvolvimento de consciência de regras, disciplina, controle emocional e compreensão do jogo. As experiências vividas, os dissabores, emoções boas e ruins são fundamentais para a formação emocional e mental do atleta."

Berman ressalta sempre para os seus jogadores a importância deles não se esquecerem desse aprendizado, para o benefício de suas carreiras.

"Essas experiências permitem que o atleta saiba conduzir melhor a relação com os árbitros durante sua carreira. Costumo dizer aos meus jogadores para serem inteligentes e usarem isso em benefício próprio, pois uma pressão bem feita, funciona sim."

Veja mais: Como está Schumacher? Médicos debatem estado de saúde do piloto

Desafio: será que você consegue descobrir quem são estas crianças?

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.