Campeonato Venezuelano tenta sobreviver em meio ao caos político
Torneio volta após semana marcada por protesto em jogo e adiamento de rodada por falta de condições. Veja como a rotina venezuelana afeta futebol
Futebol|Do R7
O futebol não ficou alheio à grave crise que assola a Venezuela. Ao ver o país com frequentes apagões, escassez de água e de alimentos, jogadores não escondem que o desempenho no gramado tem ficado em segundo plano:
- Os atletas daqui da Venezuela têm se preocupado muito em atender bem às necessidades de suas famílias e, para quem joga futebol na elite, não vem conseguindo desenvolver 100% do seu potencial. Além disto, há também nosso sentimento. Estamos muito voltados para o que acontece nas ruas, com nossos irmãos venezuelanos - declarou, ao LANCE!, Ricardo Andreutti, meio-campista do Caracas.
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O jogador de 31 anos esteve em uma partida simbólica do Campeonato Venezuelano. No dia 10 de março, "Los Rojos del Ávila" e o Zulia entraram em campo em Maracaibo, pela 7ª rodada, mas ficaram por 90 minutos sem atacarem um ao outro, em manifesto contra o apagão que afetava há 75 horas o país:
- Foi algo muito espontâneo, mas foi uma pena que a gente acabou não conseguindo falar também com as demais equipes sobre isto. Nos encontramos com o time do Zulia tanto nos vestiários e na zona mista, conversamos e entendemos que não era o momento de disputar uma partida. Aquela não era hora de dar alegria, mas de dar solidariedade, força e auxílio - contou o meio-campista, relembrando a repercussão da atitude:
- Como foi um ato de sinceridade e de solidariedade, a repercussão foi de agradecimento pelo apoio. Foi um gesto nobre, uma forma do mundo inteiro saber como está a situação da gente.
Com a retomada da competição (que não teve rodada no fim de semana devido ao caos social), Ricardo Andreutti mostra que sua expectativa vai além de uma vitória do Caracas sobre o Estudiantes de Mérida, nesta quarta-feira:
- Esperamos que tudo possa se normalizar, que a situação das ruas permita oferecer melhores condições a toda gente. Caso tenhamos condições de jogar em Caracas, será ótimo. Mas minha preocupação não é apenas com Caracas. Há problemas de estabilidade no interior do país, e não sei como está a situação por lá. Espero que cada um possa ter alegria, desfrutar a vida com sua família, conseguir uma situação melhor.
FVF confirma volta da competição
O Campeonato Venezuelano voltará a entrar em cena. De acordo com o vice-presidente da Federação Venezuelana de Futebol (FVF), Jesús Berardinelli, a situação do país já está normalizada para prosseguir a competição:
- A situação já foi restabelecida. Já nesta semana começa a retomar a rotina da competição - afirmou o dirigente, que revelou um atraso de duas rodadas em relação ao previsto inicialmente.
Mesmo tendo registros de falta de eletricidade em algumas cidades (inclusive em Caracas, capital venezuelana), a 9ª rodada iniciou na tarde da última terça-feira, com o empate em 0 a 0 entre Metropolitanos e Deportivo La Guaira. Ao L!, o dirigente confirmou que, inicialmente, as partidas terão seus respectivos horários mantidos. Inclusive, as previstas para horários noturnos.
Entidade cogita sanções a Zulia e Caracas por protesto
O adiamento das partidas da 8ª rodada ocorreu após uma solicitação da Associação Única de Jogadores Profissionais da Venezuela (AUFPV) à FVF. Presidente da AUFPV, o ex-jogador Juan García contou o que pesou para a suspensão da rodada:
- Os maiores problemas são de falta de eletricidade no país. Caso uma cidade não reúna as condições, será suspensa a partida no local. Houve o caso extremo da rodada do fim de semana passado. Mas sempre que ocorrer, solicitamos, institucionalmente.
Andreutti viu com bons olhos a ausência de jogos no fim de semana:
- Foi um ato de sensatez, no qual se chegou-se a um acordo pelo que era o melhor para o momento. Tínhamos de alçar uma voz maior pela estabilidade do país.
Já a atitude de Caracas e Zulia em Maracaibo pode trazer desdobramentos aos olhos da FVF. De acordo com Berardinelli, a responsabilidade dos clubes será julgada, mas não deve haver suspensões a atletas:
- O que foi feito é de responsabilidade dos clubes. Caberá ao Conselho de Honra decidir o que fazer. Mas, caso haja punição, será uma multa, não suspensão, porque nós não mesclamos política com esporte - disse e, em seguida, apontou como a Federação lida com manifestações:
- Na Venezuela, ou a pessoa é de direita ou de esquerda. O ódio entre estes dois lados é muito forte. Por esta razão, a FVF tomou a decisão de não misturar política e futebol. Somente a "Vinotinto" (a seleção da Venezuela) une os dois lados quando temos algum jogo.
Colapso Econômico e briga política:crise venezuelana
Outrora o país mais rico da América Latina e com uma das mais longevas democracias, a Venezuela lida atualmente com um colapso econômico e uma crise política na qual Nicolás Maduro mina as instituições democráticas. As consequências são drásticas, como aponta o jornalista Leonardo Coutinho:
- O salário mínimo na Venezuela é equivalente a um frango e meia dúzia de ovos. Em média, os venezuelanos têm emagrecido 12kg por ano, em virtude da dificuldade para obter alimentos no país. Além disto, há problemas para os habitantes conseguirem remédios e até para terem uma estabilidade na energia elétrica, o que dificulta a conservação dos alimentos - diz o autor do livro "Hugo Chávez, o Espectro: Como o Presidente Venezuelano Alimentou o Narcotráfico, Financiou o Terrorismo e Promoveu a Desordem Global".
Especialista em América Latina e defesa, Coutinho detalhou outras razões do declínio venezuelano:
- O país dependia muito do dinheiro vindo do petróleo, não se preocupou em fortalecer uma produção local. Quando ocorreu o declínio econômico, no início do poder de Maduro, e estourou a Crise do Petróleo em 2014, houve um sucateamento completo e uma hiperinflação.
O jornalista atribui os recentes apagões na Venezuela à precariedade com a qual o sistema ficou desde a Crise do Petróleo:
- Há um sucateamento completo de energia elétrica. Na Coperlec, apenas nove de 20 turbinas estavam funcionando. Além disto, na hidrelétrica de Guri, houve problemas, que oficialmente foram definidas como sabotagem de oposicionistas.
A briga política, que já começara em 2002, com uma tentativa mal-sucedida de golpe a Hugo Chávez, se acentuou de vez com a ascensão de Nicolás Maduro ao poder:
- Hugo Chávez se reelegera em 2011, mas não chegou a tomar posse, devido ao grave problema de saúde que levou ao seu falecimento. Maduro convocou eleições e quase perdeu. Neste período, ainda veio uma onda de protestos contra Maduro, o que gerou medidas fortes do presidente. Ele passou a aumentar seu tom populista, regulou a imprensa e passou a asfixiar candidaturas de seus opositores.
Embora o "chavista" tenha se reeleito, a crise política da Venezuela ganhou novos capítulos na reeleição presidencial:
- A oposição boicotou as eleições, dizendo que não reconhecia o resultado. Além disto, em 2019, o Parlamento não legitimou como Maduro presidente da Venezuela. Partindo disto, Juan Guaidó, líder opositor da Venezuela, autoproclamou-se presidente da República e teve apoio de vários países, dentre eles o Brasil, Estados Unidos e parte da União Europeia.
Entretanto, o jornalista ainda é cético em relação à decisão de Guaidó:
- No fim das contas, a atitude dele é mais uma figura de retórica. Guaidó pode até escolher embaixadores, conseguir ação humanitária... Mas as decisões, de fato, ficarão sempre nas mãos de Nicolás Maduro. E ele agora fechou as fronteiras e aumentou seu discurso anti-americano.
Aos olhos de Leonardo Coutinho, a situação venezuelana tende a seguir calamitosa:
- Pela característica do regime, por produzir menos petróleo e ter menos refinarias, a situação econômica segue complicada.
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