Jesus na seleção? 'Talvez seja mais importante para Portugal', diz Cafu
Ex-lateral, campeão mundial em 1994 e 2002, não acredita que eventual contratação de técnico estrangeiro seja a solução dos problemas do Brasil
Futebol|Felippe Scozzafave, do R7
Talvez o técnico Tite viva o seu momento de maior instabilidade desde que assumiu a seleção brasileira. Apesar do título da Copa América em 2018, o fracasso na Copa do Mundo do ano anterior ainda pesa, ainda mais somado ao fraco desempenho mostrado pela equipe nos últimos jogos. Até por isso, é normal que ele esteja pressionado no cargo, principalmente com a ascensão de Jorge Jesus, português que levou o Flamengo a quatro títulos em poucos meses de trabalho.
Porém, o fato de não ter nascido no Brasil ainda parece um impeditivo para que ele um dia trabalhe na seleção brasileira. Segundo Cafu, um dos maiores jogadores da história da equipe nacional e capitão do último título mundial, em 2002, talvez Portugal, onde Jorge Jesus nasceu, precise mais do treinador do que o Brasil.
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"Nós somos o único país pentacampeão do mundo. Todas elas com treinadores brasileiros. Nenhum outro país tem isso. Então por que o Brasil precisaria de um técnico estrangeiro? O Jorge Jesus é um baita treinador. Está fazendo um trabalho sensacional. Mas outros treinadores brasileiros também fizeram isso no passado. Portugal, por exemplo, não tem nenhum título mundial. Então será que ele não seria mais importante para a seleção dele do que para a nossa?", questionou o ex-lateral ao R7.
Cafu, aliás, não acredita que é o momento para a seleção brasileira optar por uma troca de comando. Mas caso isso seja necessário, ele não tem dúvidas de quem deve ser o substituto de Tite: "O treinador da seleção é o Tite, que eu quero que tenha sequência, que chegue bem na Copa do Mundo, quem sabe conquistar o título para o Brasil. Mas no dia que houver uma troca, eu acho que o Renato Gaúcho vive um momento fantástico. Desde que ele assumiu o Grêmio, ele vem ganhando muita coisa. E ele é brasileiro. Então qual o motivo de termos de dar oportunidade para um treinador estrangeiro na seleção se temos um brasileiro que merece uma chance? Eu acho que falta um pouco de respeito ao treinador brasileiro. Eu tenho certeza que se der uma chance, e deixar algum grande treinador brasileiro trabalhar, ele vai ter sucesso. Mas aqui parece que ninguém tem paciência."
Um dos jogadores com mais títulos na carreira, com direito a duas Copas do Mundo, duas Libertadores, uma Champions League e três Mundiais, entre outras conquistas, o eterno camisa 2 da seleção brasileira foi treinado por grandes técnicos ao longo dos anos e acredita ter aprendido com todos eles. Mas não esconde que um deles foi especial:
"Eu não consigo apontar o melhor. Eu aprendi muito com cada treinador que eu trabalhei. Desde o Telê, no São Paulo, até os treinadores que tive na Europa, como o Capello e o Ancelotti. Mas uma coisa eu posso te dizer: tecnicamente e taticamente, ninguém é igual o Vanderlei Luxemburgo. Ele sempre teve um olho tático impressionante. Ele fazia a leitura do jogo com apenas 15 minutos. Eu nunca vi isso em treinador nenhum. Para mim ele fazia exatamente o que dizem que o Jorge Jesus faz hoje no Flamengo. Eu fiquei bem feliz que ele voltou a ter uma oportunidade no Palmeiras", explicou.
'A memória do Danilo sempre viverá'
Apesar de todo o sucesso dentro de campo e ser saudado em cada canto do planeta que visita, Cafu recentemente passou por um problema difícil de superar: seu filho Danilo, de apenas 30 anos, morreu em setembro de 2019, após infartar enquanto jogava futebol com alguns amigos.
"O Danilo é lembrado a cada instante na minha casa. Tudo o que a gente faz a gente lembra dele. A dor de perder um filho é inexplicável. Mas nós sabemos que ele está aqui com a gente. De vez em quando, vemos ele passando por aqui. A memória dele vai estar sempre viva aqui na nossa casa, todos aqui seguem fazendo as coisas que ele gostava que a gente fazia, no meu capacete de moto eu até escrevi o nome dele. Ele sempre foi o 'palhaço' da família. O que eu faço é chorar no meu canto sozinho, depois parar de pensar nisso e voltar a sorrir. É assim que a gente vai levando a vida."
Hoje em dia embaixador da Copa do Mundo do Qatar, Cafu tratou ainda de outros assuntos durante bate-papo exclusivo com a reportagem do R7. Desde as diferenças entre a sua geração de jogadores com a atual, relembrou histórias de seu tempo de atleta, os planos para o futuro e até mesmo sobre sustentabilidade, já que atualmente representa a VeganNation, plataforma sustentável que busca promover alimentação saudável e a preservação do meio-ambiente. Confira a entrevista completa:
R7: A imagem do futebol brasileiro atualmente é bem diferente do seu tempo. Se antes era tipo como um futebol vencedor, hoje em dia já não tem o mesmo respeito. Por que isso aconteceu?
Cafu: Hoje o futebol brasileiro está carente de craques. Nós tínhamos muitos ídolos na minha época. Se você pegar pelo histórico dos times, nos anos 90 cada time tinha cerca de cinco ou seis jogadores fora de série, que poderiam definir um jogo. Hoje em dia se eu pedir para você falar dois de cada time, você vai ter dificuldades. Então isso reflete na seleção brasileira. As nossas maiores estrelas acabam indo embora muito cedo e não dá tempo de criarem uma identidade e um vínculo com o Brasil. Antes de ir para a Europa, eu fiquei 8 anos no São Paulo, assim como outros jogadores da minha época ficaram até mais tempo por aqui. Parece que se tinha um compromisso maior com a seleção brasileira.
R7: O que fazer para mudar isso?
Cafu: A seleção brasileira ainda é muito respeitada onde ela vai. Claro, já foi muito mais, é só olhar a maneira como os adversários encaram o Brasil atualmente. Mas isso só depende de nós resgatarmos a verdadeira aura do futebol brasileiro.
R7: Você foi capitão da seleção brasileira por muitos anos, inclusive erguendo a taça na Copa do Mundo de 2002. No último Mundial, o técnico Tite adotou um revezamento de jogadores utilizando a tarja. Acha isso certo?
Cafu: No começo, eu achei esse revezamento bacana, porque o Tite quis dar responsabilidade para todos, mostrar o quanto cada jogador era importante para a seleção. Isso é legal até para a autoestima do atleta. Mas em uma competição oficial tem que ser escolhido um. Na verdade um capitão e um vice. É hora do treinador fechar com um time, iniciar a competição e, caso algo dê errado, optar por mudanças, mas tem que dar confiança para o time e também o capitão.
R7: Parece que o número de laterais de destaque no futebol brasileiro e até mundial vem diminuindo cada vez mais. Quem você acha que deve ocupar o setor na seleção?
Cafu: Jogar de lateral exige muito. Você tem que marcar, atacar, cruzar, fazer gol, cobrir zagueiro, cobrir volante. A posição de lateral é bem complicada. Eu ainda vejo o Daniel Alves como um dos maiores jogadores da posição e, apesar da idade avançada, eu tenho certeza que ele se cuida, então o vejo em condições de jogar mais uma Copa do Mundo. Eu joguei com 36 anos, porque ele não conseguiria? Eu com certeza tive que abrir mão de muitas coisas para isso, mas eu sei que ele também se prepara.
R7: Apesar de sempre ter sido um dos melhores laterais do mundo, desde que se transferiu para o São Paulo, o Daniel vem jogando como meia. Isso pode atrapalhar a sequência dele na seleção?
Cafu: Depende do que ele quer para o futuro. Se ele quer continuar na seleção como lateral-direito, eu acho que devia voltar a jogar de lateral. Até por uma questão de adaptação, de costume. Depois que você passa a jogar no meio, é difícil voltar para a lateral. O posicionamento é completamente diferente.
R7: Você está com apenas 49 anos. Apesar de trabalhar como embaixador da próxima Copa e de várias outras empresas, tem vontade de virar técnico?
Cafu: Eu sou uma pessoa que nunca vou dizer nunca. Hoje eu não tenho a ideia de ser treinador, mas mais para frente eu posso mudar de ideia. Mas ser técnico não é fácil. Muita gente acha que é. Existe uma diferença muito grande entre comandar e ser comandado. Tudo o que eu sei do meu futuro é que eu tenho que trabalhar em alguma coisa relacionada ao futebol. Eu sempre gostei muito de categorias de base, fazer o elo entre a base e o profissional. Eu me vejo mais nesse lado, administrativo. Eu enxergo que o Brasil tem categorias de base muito boas, mas talvez elas sejam mal trabalhadas, sem a gente conseguir revelar grandes craques nos últimos anos.
R7: E o Neymar? Ainda será o melhor jogador do mundo?
Cafu: O Neymar teve tudo para ser o melhor do mundo. Ele pegou uma fase em que só tinha ele, o Cristiano Ronaldo e o Messi. Talvez se ele tivesse se dedicado mais, se esforçado mais, ele poderia ter se tornado o melhor do mundo. Agora a concorrência parece um pouco mais pesada. Além dos dois e ele, outros jogadores, como o Mbappé, o Kevin De Bruyne, começam a aparecer. Mas a qualidade técnica do Neymar é indiscutível. Nos últimos dez anos, ele certamente é um dos melhores. Então para ser o melhor do mundo só depende dele. Ele ainda tem condições disso. Se eu jogasse atualmente, eu falaria para ele: 'eu preciso de você para ganhar a Copa'. Foi o que eu falei para o Ronaldo e o Rivaldo em 2002. E deu certo.
R7: Se nas Copas de 1994, 1998 e 2002 você chegou na final, na de 2006 o Brasil fracassou, mesmo sendo considerado grande favorito. Aquele clima de oba-oba atrapalhou a equipe?
Cafu: A preparação para a Copa de 2006 realmente não foi como todas as outras. Mas não foi por isso que fomos eliminados. Até porque quando a competição começou, a gente se fechou. A gente perdeu porque encontrou um adversário que soube aproveitar a única falha que tivemos no jogo. Mas talvez aquele grupo não tivesse o mesmo foco do de 2002. Na Copa da Ásia ninguém acreditava na gente. E isso mexeu com a gente. Aquele grupo, quando nós fomos para a preparação, eu já tinha certeza que a gente ia ganhar.
R7: Depois da aposentadoria do Lúcio, nenhum jogador campeão mundial pelo Brasil segue na ativa. Como vocês podem ajudar essa nova geração a ser tão vitoriosa como a de vocês?
Cafu: Primeiro eu acho que essa nova geração precisa querer ser ajudada. Precisa querer escutar o que a gente tem para falar. Se esses meninos tivessem ideia do que é ser campeão do mundo, eles iriam querer ser campeões do mundo todo ano. É uma sensação tão boa, que não dá para explicar. Você chegar no seu país e ser abraçado por todos, ser saudado por toda a população. Essa geração atual é mais difícil de se relacionar.
R7: Você é ídolo de Palmeiras e São Paulo. Como vê o momento das duas equipes? Alguma delas pode surpreender o Flamengo?
Cafu: Eu vejo hoje um grande elenco no Palmeiras. o Luxemburgo ainda está tentando encontrar uma identidade, fazer com que o time entenda a sua maneira de querer jogar. Claro, o elenco não é do mesmo nível do que tem o Flamengo atualmente. E o São Paulo também está no caminho certo. Eu tenho certeza. O trabalho do Fernando Diniz é sensacional. Mas é um trabalho a ser compreendido. Não adianta querer mudar tudo em qualquer derrota.
R7: Em 2019, a Fundação Cafu chegou ao fim. Tem algum projeto de voltar a ajudar crianças carentes?
Cafu: A gente está com um projeto bacana de voltar a Fundação. O foco que nós tínhamos vai mudar, mas em breve teremos novidades. São mais de 15 anos de trabalho, eu acho que durante todo esse tempo a Fundação Cafu deu vida, deu esperança às crianças do Jardim Irene. Transformou muita gente em cidadão. Ter uma fundação dessa com o meu nome, com certeza foi uma das maiores conquistas que eu tive na minha vida.
R7: Nenhum de seus filhos virou jogador de futebol. Você gostaria que algum de seus herdeiros seguisse os seus passos?
Cafu: O meu neto de vez em quando dá uns chutes comigo. Eu incentivo bastante. Claro, eu não vou obrigar ninguém a seguir a carreira, mas se ele tiver o interesse, eu com certeza vou ficar muito feliz.
R7: Você se aposentou com a camisa do Milan. Gostaria de ter voltado ao Brasil antes de pendurar as chuteiras? Talvez no São Paulo ou Palmeiras, onde é ídolo...
Cafu: Quando eu saí do Milan, eu estava acertado com o Santos. Já tinha pré-contrato assinado. A gente teve a primeira reunião ainda em Milão, depois outra aqui no Brasil. Mas foi bem na época que os meus pais ficaram doentes. Eu pedi 15 dias para ficar com eles, mas o meu pai acabou falecendo. Depois disso eu me reuni com eles e disse que não tinha condições, que estava sem cabeça. Eles foram bem bacanas, falaram que eu poderia pegar o tempo que eu precisasse para me recuperar, mas nesse período a minha mãe também faleceu, então eu desisti, disse que não daria mais e decidi me aposentar. Mas foi por pouco que eu não joguei no Santos em 2008 e peguei o início da fase com Neymar, Ganso e os outros.
R7: No final de 1994, você deixou o São Paulo para jogar no Zaragoza. Poucos meses depois, voltou para o Brasil para defender o Juventude e logo depois o Palmeiras. Aquilo já tinha sido combinado antes de você sair?
Cafu: Aquilo foi uma das maiores pontes do mundo. Quando eu saí do São Paulo, tinha uma cláusula no meu contrato que o único time que eu não poderia ir diretamente se voltasse da Europa era o Palmeiras. O Juventude na época também era da Parmalat. E eles precisavam de um lateral experiente, que já tinha rodado o mundo todo. Então eu fiquei um mês lá. Foi uma experiência bacana. E depois vim para o Palmeiras, onde fui muitas vezes campeão.
R7: Mas não acredita que isso pode ter atrapalhado a sua relação com o torcedor do São Paulo?
Cafu: Eu sou são paulino. E não ia deixar de ser por jogar no Palmeiras. Naquele momento, eu tinha que defender com unhas e dentes quem bancava o sustento da minha família. No momento, uma parte da torcida não gostou, mas agora é tudo tranquilo. Eu tenho o respeito de todas as torcidas.
R7: Você se tornou parceiro da VeganNation, uma empresa de sustentabilidade. Pretende que esse assunto seja cada vez mais tratado no futebol?
Cafu: Eu acho que a sustentabilidade não é importante apenas no futebol, mas no cotidiano como um todo. E eu acho que aos poucos o mundo está se conscientizando disso. A parceria com a VeganNation veio para comprovar o que eu já vinha fazendo e imaginava em relação a isso. Às vezes nós temos a oportunidade de conscientizar as pessoas sobre a importância de atitudes como a reciclagem e não fazemos isso. Algumas coisas são muito fáceis e a gente acaba complicando, como jogar fora as latinhas no lugar das latinhas, o plástico no lugar do plástico.
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