Diário de bordo: sem comida, tensão na cordilheira e o efeito da altitude
Ônibus do Flamengo teve que pernoitar no deserto, com fãs sentindo os efeitos dos 4.000 m acima do nível do mar. Fora, a sensação era de -2ºC
Futebol|Raian Cardoso, da Record TV
O diário de bordo do El Camino Rubro-Negro entra no terceiro dia, nesta quinta-feira (5), e traz os detalhes de mais um dia de viagem, entre o Rio e Lima, no Peru, para a final da Libertadores da América, entre Flamengo e River Plate.
Mais um dia mais ou menos: foi no terceiro dia que o comboio se dividiu, que o motorista se perdeu, que os passageiros tiveram que dormir no deserto e, para completar, não tinha nem comida nem local para banho, num ambiente com sensação térmica de -2º C.
Tudo foi registrado pelo repórter Raian Cardoso, da Record TV, que acompanhou a saga até a capital peruana antes dos 2 a 1 do Flamengo sobre o River Plate, o que garantiu o título continental ao Rubro-Negro.
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Na fronteira com a Argentina, fomos deixados para trás por outros dois ônibus que puxavam o comboio. Eram neles em que estavam os coordenadores da empresa responsável pela viagem. Não quiseram esperar o imbróglio dos torcedores barrados na fronteira. Achei que poderia dar problema.
São 6h. Fazemos a primeira parada em uma cidade chamada 'Pampa del Infierno', na Argentina. O posto de gasolina era bem pior do que o do dia anterior, mas a esperança de encontrar um lugar bom já estava bem pequena nessa altura da viagem.
Sem muito tempo, parte tomou café. Outra parte do grupo conseguiu tomar banho em um cano que escorria uma pequena quantidade de água (não muito limpa). Mas era o que tinha. Segundo eles, pelo Flamengo vale tudo. Precisava registrar tudo e não consegui aproveitar a água, como uns outros 15.
Seguimos viagem. Para passar o tempo, um torcedor puxou um baralho e logo a 'sueca' se formou. Um ótimo jeito de passar o tempo. Enquanto uns jogavam baralho, outros assistiam a filmes no celular e alguns brincavam com joguinhos. Eu me enturmei com o pessoal do baralho.
Enfim, paramos para o almoço em uma localidade chamada 'Refuquio'. Nesse local, de novo, aceitava real. Quando isso ocorria na viagem, era motivo de festa. O êxtase foi extremo, afinal, não comíamos comida há mais de 24 horas. Precisávamos de proteína, como dizia vovó: “Saco vazio não para em pé”.
Não havia movimento algum no restaurante e, de forma repentina, apareceram mais de 40 torcedores do Flamengo. Os donos do restaurante ficaram loucos e correram para atender. Demoramos bastante por lá, pois o restaurante não estava preparado para servir tanta gente. Sequer tinha estrutura para isso.
Aproveitei a demora para o preparo do almoço para tomar banho, afinal, o último havia sido na desde segunda-feira de manhã. Não dava para esperar mais.
Tomei banho com um pequeno balde, nos fundos do restaurante, perto de um matagal com muitas moscas. A gente pegava água da pia mesmo. Apesar da precariedade, foi um dos melhores banhos da minha vida.
Durante o almoço, a TV Argentina mostrou o time do Flamengo embarcando no Brasil. Os torcedores foram a loucura. Parecia que o Flamengo tinha feito um gol na final. Rapidamente o grupo começou a cantar. Até os argentinos sacaram seus celulares e começaram a filmar.
Depois da festa, veio a convocação do motorista. Precisávamos zarpar, afinal a fronteira da Argentina com o Chile fechava às 23h e teríamos que correr para pegá-la aberta.
Subimos a Cordilheira dos Andes, o que gerou muita tensão e apreensão. Nunca tínhamos passado por ali. Era tudo novo. As curvas sinuosas, a altitude cada vez maior... Esses fatores deixaram o ônibus num silêncio incomum, ouvíamos uma agulha cair no chão. O medo era real. Não víamos a hora de sair daquele local. Superamos mais essa barreira.
Seguimos em nosso caminho. Ao chegar perto da fronteira com o Chile, a ansiedade dos torcedores voltou a falar mais alto. Começaram a achar que o motorista estava perdido (realmente, em alguns momentos, estava mesmo) e que apenas eles sabiam o caminho certo. Eis que um grita, estamos a 34 horas de lá. Um silêncio toma conta e uma voz solitária fala: “Ufa, chegaremos a tempo”.
Pesadelo da fronteira fechada
Demoramos muito no restaurante. Quando seguimos viagem, o que mais temíamos aconteceu: nos deparamos com a fronteira fechada. Foi quando começou o nosso pesadelo.
A fronteira da Argentina com o Chile fica em pleno deserto, a mais de 4.000 metros de altitude, segundo policiais argentinos na fronteira. Nós, brasileiros, não estamos acostumados e preparados para isso. Foi quando começamos a passar mal. Sensação de enjoo, dores de cabeça forte, vômito.
Em meio ao deserto, um torcedor diz que vai ao banheiro. De repente, escutamos um grande barulho. Ele tinha desmaiado. Bateu com o rosto no chão, levou cinco pontos, além de escoriações. Por sorte, uma ambulância argentina estava por perto e prestou os primeiros socorros. Ele foi levado para o hospital, medicado e ficou bem.
Eu já estava suando frio. Tanto que só ouvia tudo, mas não conseguia levantar do meu banco. Se eu levantasse, seria o segundo desmaio do dia. Sensação grande de enjoo e parecia que uma prensa de mais de 1.000 kg apertava minha cabeça. O desespero ficou maior quando ouvi: “Não temos para onde ir”. Fora do ônibus, a sensação térmica era de -2ºC. Eu pensei em morte.
Sem opção, o motorista voltou cerca de 90 km do caminho. Não podíamos parar em um posto de gasolina que achamos, afinal havia mais de sete ônibus de uma torcida organizada do River Plate.
A única saída era passar a noite em meio ao deserto mesmo. Foi uma das piores noites da minha vida e acredito que de todos os torcedores do ônibus. Todos, sem exceção, estavam mal. Os torcedores e eu tomamos remédios para dormir e apagamos, mas por poucas horas. Isso porque a aflição e o mal-estar eram tão grandes que não nos deixavam dormir.