Abismo econômico faz o futebol brasileiro se destacar frente a outras ligas sul-americanas
Times nacionais ganharam seis dos últimos dez títulos de Libertadores; Rojas, destaque do Racing, veio para o Corinthians graças ao alto salário
Futebol|Gabriel Herbelha, do R7
O sol voltou a sorrir para o futebol sul-americano nos últimos tempos, após longo domínio europeu no cenário mundial.
A Argentina, no fim do ano passado, conquistou o tricampeonato da Copa do Mundo, com uma campanha histórica. Em junho, o Uruguai, com jovens promissores, foi campeão Mundial sub-20 pela primeira vez. Mais recentemente, Moisés Caicedo, do Equador, se tornou a contratação mais cara da história do futebol inglês, após o Chelsea ter desembolsado 115 milhões de libras (cerca de R$ 705 milhões) para ficar com o volante de 21 anos.
Com tantos bons exemplos de como os países da América do Sul conseguem ser competitivos e se destacar no esporte mais popular do mundo, como explicar a enorme distância dos clubes brasileiros para os outros do continente?
Há pouco mais de um mês, o América-MG, lanterna do Brasileirão, enfrentou o Colo-Colo, o atual campeão chileno e um dos mais tradicionais clubes da região, pela Copa Sul-Americana e aplicou uma sonora goleada de 5 a 1 para avançar de fase no torneio.
O resultado “assustou” torcedores, pois foi um atestado de como o futebol na região está desnivelado, pelo menos no cenário de clubes.
Quando são observados os campeões mais recentes da Libertadores, isso fica ainda mais claro. Nos últimos cinco anos, quatro conquistas ficaram em solo brasileiro, com Flamengo e Palmeiras levantando a taça da Copa duas vezes cada.
A última vez em que um clube que não fosse argentino ou brasileiro conquistou a taça foi em 2016, com o Atlético Nacional, da Colômbia. Mas o jejum fica ainda pior para outros países. O Uruguai não tem um campeão de Libertadores desde 1988, na figura do Nacional; o Equador, desde 2008, com a LDU; e o Paraguai, desde 2002, com o Olimpia.
“A dominância brasileira é algo negativo do ponto de vista competitivo, mas, no final das contas, algo natural porque o Brasil é um país muito grande, com muita gente apaixonada por futebol, que consegue arrecadar mais dinheiro do que o restante da América do Sul. Talvez, se você for pegar alguns clubes mais regionais do Brasil, não arrecadam tanto quanto Boca Juniors e River Plate, mas eles são exceções em um universo onde o Brasil tende a dominar do ponto de vista mercadológico”, analisa o jornalista Luca Viquiato.
Com o avanço do poderio financeiro das equipes brasileiras, somado à quantidade imensa de vagas distribuídas pela Conmebol — sete vagas para times do Brasil —, é difícil imaginar uma mudança no atual cenário de dominação.
O direito às sete vagas para o Brasil existe desde 2017. Em anos anteriores, o país tinha direito a cinco. Esse aumento exponencial elevou as chances de ter mais equipes nos mata-matas e, consequentemente, de títulos, mas, por outro lado, limitou a diversidade da competição.
“Acho que limitar o número de times brasileiros seria algo interessante, que geraria um pouco mais de competitividade, mas não é do interesse da Conmebol. No final das contas, eles teriam que fazer muito esforço e teriam que comprar uma briga com um ator muito grande dentro do futebol sul-americano que é o Brasil”, completa Viquiato.
Distância é resumida em dinheiro
Segundo dados do Transfermarkt, o Brasileirão é a liga mais valiosa de todo o continente americano quando analisamos a soma do valor de mercado de todos os clubes somados por país.
Estimado em 1,45 bilhão de euros (R$ 7,6 bilhões), ele está muito à frente da Superliga (Campeonato Argentino), avaliada em 793 milhões de euros (R$ 4,1 bilhões), e é quase dez vezes maior do que a Primera División (Campeonato Uruguaio), 161 milhões de euros (R$ 847 milhões).
“Há talento nas categorias de base argentinas, mas vivemos em um país pobre”, na tradução.
É dessa maneira que o preparador físico argentino Gerardo Salorio, um estudioso do futebol, que por mais de 20 anos trabalhou na seleção argentina sub-20 e fez parte da comissão técnica do selecionado principal na Copa do Mundo de 2006, lamenta e resume o que se passa no país.
“Os jogadores chegam [para o time principal] por uma necessidade urgente de utilização porque não temos dinheiro para contratar reforços e uma urgência porque temos que tapar o buraco com a venda de jogadores para o exterior”, explica “El Profe”, como é carinhosamente chamado no país albiceleste.
“Há uma grande diferença, o futebol brasileiro é potencialmente poderoso economicamente. Então, quando vemos os times brasileiros, existe uma diferença, muito mais para os outros oito países sul-americanos do que para a Argentina. Acho que a Argentina está um degrau abaixo, e às vezes os alcança com Boca, River ou outro, no caso atual, o Racing, que tem dado um jeito, mas os outros clubes estão muito distantes”, opina.
Apesar de costumeiramente o Brasil, no cenário internacional, ser tido como um país exportador, a situação dos clubes daqui é muito favorável em relação aos vizinhos, pois o assédio do exterior também é representado por clubes brasileiros.
Com exceção do Goiás, todos os clubes da elite do país contam com estrangeiros sul-americanos em seu elenco.
Esses são movimentos de mercado previsíveis nos times brasileiros. Quantas vezes um jogador que era ídolo de um clube argentino é seduzido pelas cifras brasileiras e vem atuar por aqui?
Em caso recente, é possível citar o paraguaio Matías Rojas, que vivia seus últimos meses de contrato com o Racing, da Argentina. O principal jogador do clube de Avellaneda recusou seguidas propostas de renovação, para fechar acordo com o Corinthians, em julho.
Ao explicar a saída de Rojas, o presidente do Racing, Victor Blanco, explicou o que todos sabiam. "Fizemos o possível para que ele [Rojas] seguisse no clube, mas não conseguimos. Não conseguimos competir com o salário que oferecia o clube brasileiro", lamentou o mandatário em entrevista ao D Sports Radio.
Na elite do país, há 117 jogadores estrangeiros, 90 deles vindos de Argentina, Uruguai, Colômbia, Paraguai, Equador e Chile.
Por outro lado, há apenas 17 jogadores brasileiros em atuação na primeira divisão destes seis países somados.
Sudacas mostram ser possível ser vencedores mesmo com pouco dinheiro
Para Salorio, a solução para ser competitivo no continente passa pelo que é bem-feito no Brasil: revelar jogadores.
“É possível ser competitivo, mas para isso temos que investir nas categorias de base, ter lá os melhores treinadores, não apressar o processo; mas os times acabam apressando o processo porque ficam sem matéria-prima e têm que gerar recursos. É muito caro competir e estar nas grandes competições”.
Na contramão da maioria dos clubes, o Independiente del Valle, do Equador, mostra ser possível competir gastando pouco e, ao mesmo tempo, aproveitando as joias que surgem em suas “canteras”.
Fundado na década de 1950, o Del Valle só estreou no país em 2010, três anos após ter sido comprado por um grupo de empresários. Foi instalada uma metodologia de formação de atletas muito bem definida, com profissionais europeus ajudando a criar esse DNA.
Desde 2016, o clube disputou uma final de Libertadores, foi bicampeão da Sul-Americana, campeão da Recopa Sul-Americana e conquistou o campeonato nacional na temporada 2021.
Entre as revelações do clube, Caicedo, citado no início da reportagem, e Kendry Páez, que no “auge” dos seus 16 anos atua entre os profissionais e está vendido ao gigante Chelsea, da Inglaterra. Kendry é tratado pela imprensa local como um dos grandes prospectos para o futuro do país.
Futebol é reflexo da sociedade
Em um icônico comercial que celebra a ida à Copa do Mundo da Rússia, a Federação Peruana de Futebol citou uma frase que representa bem o sentimento latino: "Somos um povo que lutava contra a crise antes que o mundo soubesse o seu significado".
As diferenças no futebol também podem ser vistas em índices econômicos. Segundo dados do Banco Mundial referentes a 2021, o Brasil é responsável por 50% do PIB da América do Sul.
"As disparidades econômicas fazem com que a América do Sul seja desigual. Nenhum dos países da América do Sul chega perto do tamanho da economia brasileira, mas em termos de desenvolvimento, de qualidade de vida e aspectos educacionais também há uma grande diversidade. Os impactos das questões econômicas, mas principalmente da distribuição de renda, são aqueles que fazem com que haja muita diferença entre o desenvolvimento dos países da América do Sul", explica Manuel Furriela, professor de relações internacionais na FMU.
A Argentina, por exemplo, que vive grave crise econômica, com uma inflação anual acima de 110%, registrou mais de 150 saques a supermercados ao redor do país na última semana.
É nesse cenário diverso, de muitas diferenças socioeconômicas e culturais, que clubes dos dez países sul-americanos seguem lutando por seus objetivos, a maioria deles "vendendo o almoço para pagar o jantar", em busca das glórias eternas.
Quem é a 'sombra' que persegue Messi, desde que o craque chegou a Miami?
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