"Fui estuprado por seis anos. Pedófilos se aproveitam do futebol"
O horripilante e exclusivo depoimento de Andy Woodward. Ele chocou o mundo, denunciando o principal técnico de garotos inglês
Cosme Rímoli|Do R7 e Cosme Rímoli
Seu relato chocou a Inglaterra, a Europa, o mundo 'civilizado' do futebol.
Era uma das histórias mais horripilantes já expostas no esporte mais popular do planeta.
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Por seis anos, Andy Woodward foi estuprado pelo melhor treinador e selecionador de garotos do Reino Unido.
Com estreita ligação com ligação com equipes da Premier League, principalmente o Manchester City.
Barry Bennell.
Ele era o treinador e coordenador da base do Crewe Alexandra, equipe de Crewe, cidade de pouco mais de 80 mil habitantes e que fica ao lado de Liverpool.
Era na pacata Crewe que Barry selecionava garotos entre nove e 17 anos. A equipe da Quarta Divisão se especializou em oferecer atletas a clubes mais importantes da Inglaterra.
Barry era uma celebridade local. Pais ficavam maravilhados quando seus filhos eram selecionados nas peneiras que o técnico organizava, antes de começar as temporadas. A confiança era total. O Crewe Alexandra disputava torneios não só na Inglaterra. Fazia excursões por fora do país. Bennell era o responsável pelas crianças.
"Só que ele era um predador sexual. Barry usava sua autoridade para fazer o que queria dos meninos. Ele violentou oito jogadores que atuavam comigo no time. Ele nos impunha tanto medo, tanta vergonha, que nenhum de nós jamais desconfiou que havias outros estuprados. Cada um acreditava que era o único a passar por tantos abusos", diz Andy, em depoimento exclusivo ao blog.
Ele está no Brasil graças ao Sindicato dos Jogadores de Futebol de São Paulo. A entidade decidiu encampar campanhas contra um dos maiores males do futebol em todo o mundo. Fará palestras em inúmeros clubes.
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A chegada de Andy coincide com uma gravíssima denúncia de pedofilia no Santos Futebol Clube. Seu coordenador da base, Ricardo Marco Crivelli, conhecido como Lica, foi afastado e está sendo investigado. Ruan Petrick Aguiar de Carvalho o acusa de tê-lo forçado a aceitar receber sexo oral do coordenador, quando era menino, para que entrasse nas categorias de base do Santos. Ruan realmente atuou no Santos. "E só fui mandado embora quando não quis dormir com ele", garante.
Por meio de seu advogado, Lica nega.
Até pouco tempo, a pedofilia era um assunto proibido no futebol brasileiro. Um tabu. Mesmo agora que as denúncias começam a ser explícitas em todo o país, ainda não há uma política da CBF, das Federações e dos clubes para coibir os assediadores.
"Os estupradores de crianças são beneficiados com essa omissão, com esse silêncio. As autoridades esportivas não fazem nada. Fifa, Uefa, Federação Inglesa, federações e confederações do mundo todo se calam. Acabam agindo como cúmplice destes criminosos", resume, revoltado, Andy.
Mas o presidente afastado e que ainda comanda a CBF, Marco Polo del Nero, seu sucessor Rogério Caboclo, o presidente da Federação Paulista de Futebol, Reinaldo Carneiro Bastos, o presidente da Federação Carioca de Futebol, Rubens Lopes, todos os presidentes de clubes deste país e, principalmente, todos os pais de garotos que sonham em ser jogadores de futebol.
Todos deveriam prestar atenção ao relato de Andy Woodward.
A descrição dos atos do estuprador é horripilante. Mostra que a realidade pode ser muito pior que a ficção. Nenhum filme ou livro que venha a ser feito sobre Barry Bennell, condenado a 31 anos, chegará perto de todo o sofrimento de alguém que foi abusado por seis anos.
Por machismo, vergonha o violentado não conta o que passou.
Mas 20 anos de terapia, inúmeras tentativas de suicídio acabaram por convencer o inglês.
"Nenhuma criança merece passar pelo que vivi", resume.
"Eu era uma criança feliz e com dom de jogar futebol. Vivia em Manchester. Adorava ver jogos da Seleção Brasileira. Sonhava em ser jogador profissional. Meus pais me apoiavam. Não éramos pobres. Meu pai era engenheiro. Era uma família de trabalhadores. Comecei a me destacar como zagueiro.
"Foi quando o predador me viu participando de uma peneira. Eu tinha dez anos. Ele era o melhor treinador e selecionador de garotos de toda a Inglaterra. Fiquei maravilhado quando me escolheu. Me disse para os meus pais que eu teria um grande futuro. Não havia como a minha família não ficar entusiasmada com essa notícia.
"Os pedófilos sabem como envolver, enganar, manipular. Ele convenceu meus pais que, para que eu desenvolvesse meu futebol, deveria morar em Crewe. E como seria um jogador especial, oferecia a sua própria casa para que ficasse alojado. Disse que meus pais teriam acesso à casa quando quisessem. Eles acreditaram. Senti que a minha vida estava decidida. Seria um grande jogador de futebol. Meu sonho seria realizado.
"Eu tinha dez anos. E fiquei empolgado. Porque ele passou a me trazer presentes nos finais de semanas que ficávamos sozinhos. Dizia que era pelo meu bom futebol. Tudo ia bem até que um dia ele foi no meu quarto. E começou a me acariciar e me estuprou.
"Eu não sabia como reagir. Fiquei com vergonha, com medo, acuado. Não sabia como reagir. Eu era uma criança. O via como muito poderoso. Tinha a certeza que, se eu contasse, todos pensariam que eu estava mentindo. Ele me disse que se eu disesse uma palavra para alguém nunca mais eu jogaria futebol na minha vida.
"Imaginei a vergonha que meus pais sentiriam. A decepção que daria a eles. E passei a me culpar. A culpa deveria ser minha. Estava sendo punido por algo que fiz. Não tive coragem de dizer uma palavra para ninguém.
"Os abusos, os estupros eram constantes. Foi um sofrimento incrível. Ninguém no Crewe percebia. Eu sei que fui escolhido por ser frágil, calado, tímido. Sabia que eu não teria coragem de contar.
"Foram inúmeras situações degradantes, humilhantes. Para mostrar o quanto ele era poderoso e quanto desfrutava da confiança dos meus pais, ele costumava dormir na nossa casa em Manchester. E chegou a me estuprar no meu quarto, no andar de cima da casa, enquanto os meus pais dormiam no andar de baixo. Eu suportei tudo calado, com medo.
"Tudo ficou ainda pior quando ele começou a namorar a minha irmã. Eu queria falar para ela se afastar daquele monstro. Mas não tive coragem. Me calei. Sabia que não acreditaria. Ela acabou casando com ele. E tendo dois filhos
"Ele tinha certeza que nada aconteceria.
"Me dizia que sabia como funcionava o futebol.
"Ninguém acreditaria em denúncias contra o melhor treinador e selecionador de garotos do Reino Unido. Vários jogadores que ele escolheu acabaram virando jogadores profissionais. E da Premier League.
"Se sentia intocável.
"Aos dezesseis anos, os meus estupros acabaram. Era o fim do sofrimento. Pelo menos era o que eu pensava. Estava enganado. O trauma ficou.
"Eu já não sabia quem eu era. Duvidava da minha sexualidade. Não sabia se era gay, se era hétero. Casei aos 19 anos, tive um filho. Era como se quisesse provar a mim mesmo que era homem. Me separei. Depois casei mais três vezes e tive cinco filhos. O trauma me acompanha até hoje.
"Não tive estrutura para ser jogador de futebol. Tinha potencial mas não consegui me libertar psicologicamente. Passei a simular contusões para não entrar em campo. Na verdade, tinha ataques de pânico, de ansiedade. Tinha crise de choro. Não conseguia me encarar como jogador. Tudo ligado ao futebol me lembrava dos estupros.
(O máximo que Andy conseguiu foi jogar na Segunda Divisão Inglesa, no Sheffield United. Abandonou a carreira aos 29 anos.)
"Tinha muita vergonha. Era como se eu fosse o criminoso. Foi quando tentei me matar. Foram várias vezes, mais de dez, que achei que o melhor caminho era acabar com a minha vida. (Pensou em se enforcar, tomar medicamentos, usar revólver.) Mas não tive coragem de levar adiante. Mas queria muito me matar.
"Estava perdido, não sabia o que fazer da minha vida. Foi quando ele foi preso nos Estados Unidos, acusado de pedofilia. Isso me deu forças para decidir, em 2016, confessar publicamente os estupros que sofri. Foi um choque. Logo vários companheiros de Crewe decidiram também falar. Ele estuprou dezenas de garotos por décadas. Foi quando a Inglaterra acordou para a pedofilia.
"Minha irmã o abandonou imediatamente.
"Soube o monstro com quem havia se casado.
"Ele foi finalmente preso na Inglaterra. Os depoimentos dos jogadores que ele abusou, quando eram crianças foram fundamentais. E custaram para ele 31 anos de cadeia. (Barry foi condenado em fevereiro deste ano, já aos 64 anos. Deverá ser solto apenas com 95 anos, se estiver vivo.)
"A sensação que fiquei foi de alívio. Sabia que ele não faria mal a nenhuma outra criança na vida.
"Além de expor tudo o que vivi, vim para o Brasil muito feliz. Porque estou tendo a chance de retribuir ao país que me fez ficar encantado com o futebol. Sei que muitas famílias vêem no futebol a chance de uma vida melhor. E expõem, sem querer, suas crianças nas mãos de predadores.
"Os pedófilos existem e se aproveitam da ingenuidade, da ignorância dos pais, em primeiro lugar. A vigilância dos pais é fundamental para que eles não possam agir. Por isso peço para os pais de garotinhos que começam a jogar que fiquem muito próximos. Prestem muito atenção nas pessoas que os cercam.
"Como sei que os jogadores muitas vezes são de lugares distantes de onde os meninos treinam e jogam, os clubes precisam ter responsabilidade. Acompanhar de verdade as categorias de base. E existir até punição para a omissão. Não é mais possível que pedófilos façam o que querem com os garotos. A punição aos clubes se torna obrigatória. (Os dirigentes do Crewe Alexandra, onde Barry trabalhou por anos, disseram nunca ter desconfiado do treinador e coordenador.)
"As entidades esportivas que comandam o futebol no mundo precisam agir.
"Predadores acabam não só com as carreiras de inúmeros jogadores.
"Acabam com suas vidas.
"Pedófilos se aproveitam do futebol.
"Eu não sabia porque não cometi suicídio.
"Agora eu sei.
"Estou vivo para alertar e enfrentar os pedófilos.
"Essa é a minha minha missão nesta vida...."
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