Como Eurico Miranda manipulou a final do Brasileiro de 1997
Eurico escancarou a falta de credibilidade da justiça desportiva
Cosme Rímoli|Cosme Rímoli
"O Edmundo vai jogar. Espera para você ver. O Edmundo vai jogar e o Vasco vai ser campeão, que não é time de perder final de Brasileiro em casa. Não comigo na diretoria. Pode avisar lá em São Paulo. O Edmundo vai jogar. O Palmeiras que se contente com o vice."
Os olhos esbugalhados, as veias saltando do lado da testa e o sorriso, de quem tinha orgulho das próprias palavras. De quem sabia que dominava não só Ricardo Teixeira como os bastidores do futebol brasileiro.
Foi desta maneira que Eurico Miranda terminou a exclusiva que me deu, na sala da presidência de São Januário, às vésperas da final do Brasileiro de 1997.
Ele era vice, mas mandava muito mais do que o presidente Antônio Soares Calçada.
Fui escalado para cobrir o Vasco nas duas semanas que antecederam a decisão do Brasileiro. Fui o único do jornalismo impresso a ter essa missão. Era um infiltrado paulista. E vi a força daquele time treinando, com Juninho Pernambucano, Mauro Galvão, Evair, Felipe, Ramon, Valber. E ele. Edmundo. No melhor ano de sua carreira.
Artilheiro máximo do Brasileiro, 29 gols, vendido para Fiorentina. Eurico, na sua truculenta sabedoria, havia avisado os jogadores do Vasco. "Vocês estão proibidos de ir para a noite. Se forem, vão se ferrar. Porque eu fico sabendo de tudo. O único que está liberado é o Edmundo. Ele pode." Foi a maneira mais inteligente de segurar as farras do jogador mais importante. Esse foi um dos segredos para o desempenho espetacular do atacante naquele Brasileiro.
Aquelas duas semanas foram de extrema solidão. Fiquei hospedado no Rio Othon Palace. Acompanhava os leves treinamentos de manhã e os fortes, fundamentais no final da tarde, como era costume no futebol carioca daqueles tempos, por causa do calor. Os jogadores detestavam treinar cedo.
Tinha de escrever uma página por dia. E já ir antecipando as matérias especiais que, só sairiam se o Vasco fosse campeão. Para evitar problema no fechamento, escrevia muito no hotel, na hora do almoço, comendo sanduíches. E também à noite para antecipar o dia seguinte.
Lembro do meu aniversário, noite que fiz questão de jantar e não comer sanduíche no quarto. Era perto das 23 horas. Restaurante vazio. O garçon do hotel me ouviu conversando com meu chefe e soube que era meu aniversário. E fez questão de levar um pedaço de bolo de chocolate, que eu odeio, com uma vela acesa. Agradeci. E lembrei que era apenas um dos inúmeros aniversários que passei longe da minha família, cobrindo decisões no futebol. Senti um misto de orgulho com tristeza. Engoli o bolo de chocolate e dei a maior caixinha que meu bolso suportava.
Minha relação com Edmundo sempre foi de altos e baixos. Tive de ouvir várias respostas atravessadas, o fiz chorar em entrevista, o deixei louco no Equador ligando sistematicamente para o seu quarto, depois de uma expulsão em que chutou o câmera da rede que gerava a imagem do jogo pela Libertadores. Acompanhei suas greves de silêncio no Palmeiras e no Corinthians. Suas brigas com Antônio Carlos, Vanderlei Luxemburgo. O péssimo ambiente que criou para sair do Corinthians e voltar ao Vasco.
No Rio de Janeiro, ele era a grande estrela. E era nítido o tratamento diferenciado. A reverência de Lopes, a subserviência dos seus companheiros. Sabiam que deviam a ele, terem chegado à decisão.
Só que Edmundo seguia explosivo dentro de campo. Nas duas finais do Brasileiro, teria de se controlar. Já havia recebido dois cartões amarelos. Um terceiro, na primeira partida, em São Paulo, o tiraria da decisão, no Maracanã. Soube que Felipão havia orientado os palmeirenses a provocá-lo. Com palavrões, ironias. Edmundo era intocável em São Januário, mimado. A ordem de Scolari era para quem estivesse perto dele, o xingar.
Edmundo foi orientado a se conter. Mas não suportou. Caiu na provocação de Roque Júnior. O zagueiro faz falta no vascaíno. E, de propósito, não sai da frente da bola. Edmundo o empurra. E não satisfeito, joga a bola no seu peito. O árbitro de Goiás, Antônio Pereira da Silva, não titubeou. Amarelo. Festa no banco do Palmeiras, no Morumbi. Edmundo estava fora da final.
Mas das tribunas, Eurico Miranda decide agir. Ordena a Antônio Lopes. Edmundo deveria forçar sua expulsão no final do jogo. Não era pedido. Era ordem. O histórico massagista Santana, cumpriu sua missão. O atacante sorriu, sabia do que Eurico era capaz. E perto do encerramento do 0 a 0, estica a perna, as travas da chuteira raspam o peito do zagueiro. Atitude mais acintosa do que violenta. E cartão vermelho.
Daí veio a entrevista de Eurico Miranda. Eu perdi o mínimo de fé que eu já tive na Justiça Desportiva no país. Eurico havia pedido o cartão vermelho porque os três amarelos não deixavam espaço para o efeito suspensivo. A expulsão, não.
E Miranda mostrou sua força. Todo o desespero de Felipão e a revolta da imprensa paulista serviram de motivo de gargalhadas do presidente do Vasco. Ou auditores liberaram o atacante. Vitória massacrante por 6 a 1. Edmundo estaria em campo.
Cruzo com o dirigente no Maracanã momentos antes da decisão. Ele está dando uma coletiva, cercado de radialistas. Ele me olha. E reafirma mais alto. "Eu não falei que o Edmundo jogaria? Avisei até a imprensa paulista. Duvidaram. Taí."
A liberação trouxe confiança ao Vasco e muita preocupação ao Palmeiras. Antônio Lopes não expôs seu time, Felipão não se arriscou. 0 a 0 e Edmundo foi o dono da festa. Foi festejado como nunca. Carregado nos ombros pelos companheiros. Chorou, deu inúmeras entrevistas, abraçou a todos. E foi reverenciado pelo estádio lotado, 89 mil pessoas. Os torcedores davam adeus. E agradeciam. Assim como a empolgada imprensa carioca.
Só que, eu sabia quem havia sido o responsável pelo título.
Quem manipulou os bastidores.
Colocou Edmundo em campo.
E deu a vitória ao Vasco.
Encaminhou o clube para a conquista da Libertadores no ano seguinte.
O ditador de São Januário.
E representante do retrocesso.
O único com direito a puxar o grito de guerra, que ecoava no vestiário. Ele fazia de propósito. Para que a imprensa do país todo ouvisse. Soubesse quem mandava.
"Ao Vasco nada? Tudo! Então como é que é que é que é?" Casaca. Casaca.Casa, Casa casaca. A turma é boa, é mesmo da fuzarca! Vasco, Vasco, Vasco!"
O homem capaz de manipular regras, regulamentos.
Tirar a fé na justiça desportiva deste país.
Deixar mais triste o futebol brasileiro.
Há décadas.
Eurico Ângelo Miranda...
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.