Se Sampaoli pediu grana em venda de boleiro, é atropelamento ético
Treinador pode - até deve - exigir que façam tudo pelo elenco. Mas pedir 'beira' em negociação é tão imoral quanto cobrar de novo pelo já recebido
Futebol|Eduardo Marini, do R7
O técnico argentino Jorge Sampaoli teve uma reunião com o presidente do Santos, José Carlos Peres, na segunda-feira (9). Na pauta, as condições para ficar no clube da Baixada em 2020.
Após três horas de conversa tensa, Peres saiu dizendo que Sampaoli pediu demissão. E Sampaoli, que não conversava com o dirigente há meses, argumentou, irritado, que, ao contrário, ele fora demitido por Peres.
O leitor estimado deve ter vivido a situação ou conhecido alguém que se apaixonou pelo carro usado ou fusca inteirão do vizinho ou colega de trabalho, perguntou o preço e ouviu de volta um valor que daria para encomendar uma Mercedes.
Pois é: diante do presidente de um clube em assumido aperto financeiro, testemunhado acima de todos por ele próprio, Sampaoli condicionou sua permanência a uma lista de pedidos no melhor estilo ‘dar preço para não vender’, absolutamente desconectada da realidade santista nessa virada de ano.
Pediu para que no mínimo R$ 100 milhões de investimento em reforços virassem uma cláusula no contrato. Assustado, o presidente Peres, informa o Blog do PVC, argumentou não fazer sentido. “Então vou embora”, teria afirmado Sampaoli. Peres disse que iria consultar o Conselho Gestor, que não aprovou a demanda e o levou a concluir que o treinador havia se demitido como consequência óbvia do que dissera na reunião - e aceitou o pedido.
Na terça-feira (10), Sampaoli declarou que não pedira demissão “oficialmente”. Mas voltou a enfatizar que tomaria a iniciativa de sair se a cláusula não fosse incorporada ao seu contrato. Como teria se demitido no dia 10 e a multa de R$ 10 milhões valia até essa quarta-feira (11), teoricamente o treinador ainda estava sob obrigação contratual de pagá-la.
Sampaoli quis também deixar definida a Vila Belmiro para todas as partidas com mando de campo para 2020, por crer no melhor desempenho médio da equipe em Santos do que no Pacaembu ou em qualquer outro estádio da capital paulista ou de outras cidades do estado.
Solicitou que todos os voos da temporada sejam feitos em aviões fretados, para evitar contratempos como os ocorridos na viagem do elenco em linha de carreira para enfrentar o Fortaleza na capital nordestina.
Exigiu que a multa rescisória de R$ 3 milhões de sua comissão técnica fosse abolida, ponto negado pelo Comitê de Gestão que, por sinal, já havia anulado a mesma exigência no contrato particular do técnico para o final de 2020, quando termina o vínculo contratual assinado pelas duas partes.
Teria solicitado ao presidente que equiparasse eventuais futuras propostas recebidas por ele, dando aumento de salário nos casos em que elas fossem maiores do que o acertado nesta renovação.
E, na que teria sido a mais polêmica das exigências, Sampaoli teria pedido comissão caso o Santos vendesse atletas revelados em 2019 ou que aparecerão em 2020 sob seu comando.
Um acordo de pagamento de comissão desse tipo, uma ‘beira’ dada pelo clube ao técnico toda vez que vende um jogador por ele revelado – até pode encontrar justificativa legal e jurídica se aceito e assinado pelas partes, previsto em contrato no início do projeto e divulgado de forma clara e transparente para o conhecimento de Deus e o mundo.
Até pode - mas legal e jurídica, é bom que se frise. Porque, na prática, parece impossível operar um troço desse sem atropelos éticos e morais de graves consequências.
O primeiro motivo da inadequação é de obviedade comovente: escolher profissionais talentosos, com potencial futuro de explosão, é obrigação implícita de todo gestor - e, no caso dos clubes, o gestor da equipe, não por acaso chamada de time, o gestor, ou gerente, ou líder é o treinador. Está implícito. Faz parte dos salários extremamente obesos que eles sempre encaixam. E que, também não por acaso, estavam sendo negociados por Sampaoli na mesma reunião em que teria apresentado a proposta insólita.
Dessa sinuca de bico derivam outras. Entre as principais funções de um treinador está a de – sempre, o tempo todo – propor a melhor opção aos dirigentes do clube para cada peça ou carência do elenco.
Diante disso, quem garante que o técnico não vá sempre optar por alguém da divisão de base, ou por anônimos vindos de times de menor investimento, em detrimento de jogadores mais talentosos e úteis à equipe naqueles momentos, para ter a chance de envelopar um troco no negócio envolvendo a ‘revelação’?
Trata-se exatamente do mesmo problema conceitual do nepotismo – só que o pagamento, aqui, é direto e na própria conta do executor. Quando a imprensa esportiva publicou reportagens com desconfianças e dúvidas sobre a frequência com que Vanderlei Luxemburgo incluía jogadores ligados à família paranaense Malucelli nos grandes clubes que treinava, a questão era exatamente essa.
Houve quem na época levantasse a hipótese de o treinador ter recebido alegretes do clube por ter levado o boleiro ao elenco, dos Malucelli para valorizar o jogador nas equipes poderosas comandadas por ele, e até mesmo quem levantasse suspeita das duas coisas. Cara e coroa da mesmíssima moeda.
Em 2001, Leão surpreendeu até o vigia da rua ao convocar o meio-campo Leomar, do Sport, para a Seleção Brasileira. Na Copa das Confederações daquele ano, o Brasil perdeu para a França por 2 a 1 na semifinal e para a Austrália por 1 a 0 na disputa pelo terceiro lugar.
O Brasil voltou em quarto, Leão desembarcou demitido e Leomar nunca mais foi chamado por outro treinador. Dois anos depois, o então presidente do Sport, Luciano Bivar, afirmou ter pago a um lobista para que Leomar fosse convocado.
Na hipótese de Bivar ter dito a verdade, não se pode afirmar que Leão tinha conhecimento ou participação na tramoia e, muito menos, que parte do molha mão tenha chegado ao seu cofre.
Mas, quando se começa a permitir que treinadores levem grana para fazer rigorosamente o serviço para o qual eles foram contratados, ou seja, melhorar o desempenho de seu elenco, ficam escancaradas as portas e janelas para a desconfiança de que ética e moral sofrem atropelamentos graves.
E que depois não se reclame das acusações e ações.
Depois do Brasileirão, qual será a realidade de cada time para 2020?