‘Julgamento do século’: o caso Manchester City pode reescrever a história da Premier League
Clube comandado por um dos homens mais ricos do mundo é acusado de cometer 115 infrações de regras da liga inglesa
Futebol|Tariq Panja, do The New York Times
Londres – Depois de seis anos de investigações, longos atrasos e batalhas nos bastidores, finalmente teve início esta semana uma audiência legal sobre alegações de que o Manchester City usou, durante anos, um esquema de trapaças para se transformar em uma potência global do futebol e vencer uma série de campeonatos da Premier League.
A audiência está entre as mais importantes da história do esporte britânico, o ápice de um caso que tem sido o assunto do futebol inglês desde que a Premier League acusou o Manchester City de mais de cem violações de regulamentos financeiros, no ano passado.
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As acusações – de que o City corrompeu a competição futebolística mais rica do mundo ao longo de uma década ou mais – ameaçam reescrever anos de história da Premier League. E as repercussões podem ir muito além do campo de futebol. Ao acusar o dono do City, o vice-primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos, de estar à frente da quebra das regras há anos, o caso pode resvalar nos mais altos níveis da diplomacia internacional.
Como ficam os fãs nessa história? Com insinuações de que a trapaça ajudou o City a ganhar os troféus, enquanto seus rivais ricos ficaram de mãos vazias, a audiência legal deu asas a reações apaixonadas de dezenas de milhões de fãs de futebol ao redor do mundo.
O que quer que seja decidido moldará a Premier League pelos próximos anos. E as opções são as seguintes: ou o Manchester City será considerado culpado de corromper a competição de futebol mais rica do mundo, ou a liga não conseguirá impor suas regras contra um de seus membros mais poderosos.
O que é o caso do Manchester City?
Há 19 meses, a Premier League anunciou possuir um conjunto probatório de acusações contra o Manchester City tão amplo em escopo que, mesmo que o time se mantenha, os danos provavelmente serão enormes. Tudo indica que a reputação do time, obtida em uma década de sucesso, será manchada. As acusações datam de 2009, um ano depois da compra do City pelo irmão do governante de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Essa aquisição deu início a uma era de muitos gastos, que trouxeram sucesso para um clube que não ganhava um campeonato desde 1968.
A Premier League acusou o City de promover 115 infrações de regras específicas, a maior parte relacionada a violações dos regulamentos financeiros, incluindo a falta de informações financeiras precisas; o envio de números inflacionados para acordos de patrocínio envolvendo empresas dos Emirados, como a companhia aérea Etihad Airways e a empresa de telecomunicações Etisalat; e a ocultação de pagamentos sem registro que foram usados para complementar o salário de gerentes e jogadores. Outras acusações dizem que o City não cooperou durante a investigação, fazendo com que ela se atrasasse quase quatro anos e elevando seu custo a milhões de dólares até ser concluída.
Mas o caso não desacelerou o City em campo: o clube venceu os últimos quatro campeonatos da Premier League, bem como, em 2023, seu primeiro troféu da Liga dos Campeões.
Quanto tempo levará a audiência?
A audiência legal, que alguns meios de comunicação descrevem como o “julgamento do século”, será efetuada fora da vista do público, em um prédio localizado no distrito financeiro de Londres que abriga o Centro Internacional para Resolução de Disputas – instalação privada onde empresas resolvem conflitos longe do olhar de curiosos.
O Manchester City, que há muito tempo depende de advogados para se defender ou postergar qualquer acerto de contas, reuniu um elenco de algumas das mentes jurídicas mais caras do Reino Unido. Sua defesa está sendo liderada por David Pannick, advogado cujo cachê por hora o coloca na mesma faixa salarial de Erling Haaland, o atacante norueguês cujos gols levaram o City a ganhar os títulos mais recentes.
Terça-feira foi o segundo dia de uma audiência que deve durar dez semanas, e o veredito não é esperado até o início do ano que vem, o que significa que o caso vai jogar uma sombra em mais da metade da atual temporada da Premier League. E o Manchester City já está no topo da classificação em busca de um recorde: o quinto título nacional consecutivo.
Qual a posição do City?
O Manchester City negou categoricamente todas as acusações, mesmo antes que fossem enumeradas pela Premier League no ano passado. Declarou que seu caso é apoiado por um “corpo abrangente de provas irrefutáveis”. Entretanto, o time nunca as forneceu publicamente e afirmou que as alegações são baseadas em um “hacking ilegal e em publicações fora de contexto de e-mails do City”.
Hacking ilegal? Como assim?
O caso do City tem raízes na publicação de um conjunto de documentos chamados Football Leaks. Foram divulgados por um hacker português, Rui Pinto, depois que este obteve acesso aos arquivos internos de alguns dos maiores times do futebol mundial. Se seus apoiadores o chamam de denunciante, os clubes o rotulam de ladrão.
Os milhares de documentos, mensagens e e-mails que ele descobriu apontaram para o lado negativo da indústria multibilionária do futebol. Alguns são constrangedores. E alguns casos geraram consequências legais para algumas das maiores personalidades e instituições do futebol. Mas o caso do City é o que parece mais ramificações, dado o tamanho da Premier League e do dono do Manchester City, Sheikh Mansour bin Zayed al-Nahyan, um dos homens mais ricos do mundo, que tem grande influência política nos Emirados Árabes Unidos.
O hacker acabou por ser preso em Portugal e, agora, enfrenta outras acusações relacionadas às suas atividades contra a indústria do futebol. Ele chegou a declarar, por intermédio de seu advogado, que o caso do City “demonstra claramente a importância das revelações do Football Leaks, seu interesse público e seu valor geral que supera outros interesses”.
O que pode acontecer com o City caso perca?
Não há precedente para uma punição com base em uma série de acusações como a que o City enfrenta. Vejamos o caso de outro time, o Everton. O clube foi considerado culpado em apenas uma acusação de violação de regras financeiras da Premier League. Na ocasião, foi atingido com uma dedução de dez pontos na classificação no ano, a maior penalidade na história da liga. (Depois de apelar, a punição foi reduzida para seis pontos.)
O conjunto de potenciais punições que o Manchester City enfrenta inclui multas enormes, uma dedução significativa de pontos ou até mesmo a sanção final: a expulsão da Premier League. Qualquer penalidade pode levar os clubes rivais a reivindicar honrarias que eles acreditam que lhes foram negadas. E uma punição esportiva significativa – como o banimento da Liga dos Campeões – pode levar à dissolução do elenco vigoroso e repleto de estrelas montado pelo técnico espanhol do City, Pep Guardiola.
A audiência legal traz também riscos elevados para as relações internacionais. O governo britânico deu a entender que havia discussões entre o Ministério das Relações Exteriores e os Emirados Árabes Unidos quando recusou solicitações de liberdade de informação sobre as negociações relacionadas ao caso. O argumento usado foi que “detalhar nosso relacionamento com o governo dos Emirados Árabes Unidos tem potencial para prejudicar o relacionamento bilateral entre o Reino Unido e o país supracitado”.
c. 2024 The New York Times Company