Há 50 anos, milésimo gol de Pelé simbolizava uma época
Façanha foi cercada de uma expectativa que se espalhou do Brasil para o mundo e foi lembrada pelo Rei do Futebol como um momento de dificuldade
Futebol|Eugenio Goussinsky, do R7
No dia 19 de novembro de 1969, os astronautas da Apollo 12, Pete Conrad e Alan Bean se tornaram o terceiro e quarto humanos a caminharem na Lua, após deixarem o módulo lunar Intrepid. Mas essa façanha já não tinha tanta graça.
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O Brasil inteiro, em expectativa que ressoava mundo afora, amanheceu naquela quarta-feira à espera de um feito inédito para um astro do futebol: chegar ao milésimo gol.
Em meio à ditadura militar, o futebol era uma maneira especial do país encontrar sua identidade. Pelé, naquele momento, personificava o sonho do brasileiro humilde, do ex-engraxate que encontra um futuro, caminhando e jogando por seus próprios pés, em uma dança com o destino.
Momentos antes, ele se revelou humilde em uma entrevista para a repórter Cidinha Campos, no programa Dia D, da então TV Record.
"Se eu vou fazer eu não sei mas estou com uma vontade tremenda de fazer, é tanta expectativa que eu já estou com vontade até de fazer com a mão, com o pé ou contra..."
O clima era de celebração nacional naquela noite. A sensação era de que o país havia parado para ouvir pelo rádio a sua própria conquista da Lua. O experiente jornalista José Maria de Aquino, então trabalhando em O Estado de S. Paulo, relembra a ansiedade daquele momento.
"A sensação Brasil, entre jornalistas e torcedores, era como alguém na maternidade à espera do nascimento de um fiho. Era para sair na Bahia, agora vai, não marcou. Veio o Maracanã, a expectativa era de corredor de maternidade. Eu disse na época que se alguém tivesse planejado que fosse de pênalti estaria certo. E foi. Foi um gol que levou dois, três, quatro, cinco minutos para todo mundo pensar, se preparar, se quissesse chorar que chorasse, a expectativa de ter sido de pênalti foi mais importante do que se fosse numa jogada de bola rolando."
A melhor maternidade
E não havia maternidade melhor do que o Rio de Janeiro, e seu leito especial, o Maracanã, com 65.157 pagantes. A cidade fervilhava glamour, brasilidade e um toque de esperança imortal, naquele ano de Salgueiro e seu histórico samba "Bahia de todos os Deuses."
Vozes empolgadas de Walter Dias, da Rádio Cacique de Santos; Pedro Luiz, da Rádio Nacional; Joseval Peixoto, da Rádio Jovem Pan; Waldir Amaral, da Rádio Globo e Flávio Araújo, da Rádio Bandeirantes, entre outros, desenharam o acontecimento no imaginário popular.
"A expectativa é nervosa, gostaria de saber como se sente Pelé neste momento", bradava Pedro Luiz, quando, aos 39 minutos do segundo tempo, Pelé se prepara para a cobrança de pênalti, diante de um obstinado Andrada, goleiro que, como uma fera, se movimentava pela linha à espera da presa. Ele não queria ficar marcado como o goleiro que levou o milésimo gol.
A explicação do Rei
Neste instante, para-se o tempo. E, 50 anos depois, o próprio Pelé, ao R7, respondeu à indagação de Pedro Luiz.
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"Quando arrumei a bola, olhei para trás e todo o time do Santos estava lá atrás em fila, lá no meio e me perguntei: 'Caramba, e se o goleiro rebate, não tem ninguém, o que aconteceu?' Comecei a tremer e quando me voltei (para a bola), disse para mim: 'Ai meu Deus não posso perder'. Foi o pior momento para mim", lembra o Rei do Futebol.
Esse tipo de finalização, segundo Pelé, não é tão simples, principalmente dependendo da situação de jogo.
"É tudo um pouco (talento, treino, mentalização), e uma coisa muito importante também acho que é a preparação do próprio jogador. A gente fala de falta, de dribles e tudo, mas o pênalti, se o jogo já está decidido, 2 a 0, 3 a 0, tudo bem. Mas, o pênalti, se o jogo está 0 a 0, para bater um pênalti é muito complicado. E muita gente, o torcedor, pensa que bater pênalti é fácil, só tem o goleiro, mas às vezes fica muito mais difícil", afirmou.
No momento em que o árbitro Manoel Amaro de Lima marcou o pênalti, um alvoroço se fez no campo. Os próprios jogadores do Vasco, em meio a dezenas de repórteres e curiosos no gramado, reverenciaram o momento, muitos deles indo cumprimentar Pelé.
De repente, o capitão do Santos, Carlos Alberto Torres, toma a iniciativa de dizer para todos os jogadores de seu time se enfileirarem no meio-campo. Quem contou isso ao R7 foi o ex-craque Clodoaldo, que deu o passe para Pelé, antes dele sofrer o pênalti.
"O Carlos Alberto falou para todos irem para o meio. Veio a pergunta: 'E se ele perder, quem vai ficar no rebote?'. O capitão então respondeu: 'Acha que ele vai perder? Não vai. Vamos para lá que é o momento dele'. Foi este o momento mais importante", lembra Clodoaldo.
O ex-volante conta ainda que era comum, naqueles dias, ambos conversarem sobre o milésimo gol. Foi Clodoaldo que deu o passe, rasteiro e preciso, para Pelé entrar em diagonal na área e ser derrubado, impedido pelo zagueiro Renê.
"Sempre falávamos sobre isso. Ele me dizia que se sentia bem, preparado. Um dia no treino ele até chegou a desabafar: 'Tá demorando...' E até hoje eu brinco com ele. Fui eu quem dei o passe, então chego e lhe digo que tenho que ter um crédito também. Ele dá risada", revela.
Pelé, então, cobra o pênalti, acertando o canto esquerdo. Andrada foi no lado certo e ficou desolado enquanto o craque santista se embrenhava na rede, sufocado por uma massa de repórteres, e pegava a bola, hoje exposta no Museu Pelé, em Santos. Nos ombros dos radialistas, ele a erguia como um troféu.
"Pelé erguendo a bola branca saúda o Maracanã", dizia Pedro Luiz.
E completava com uma indagação até certo ponto filosófica, mesmo se referindo à própria continuidade do jogo.
"Agora senhores, o que é que vai acontecer? Eu pergunto, por favor, responda Juarez Soares."
E o repórter Juarez, solerte e com uma voz de menino, respondeu em meio aos ecos do campo, falando em ritmo de metralhadora, entre outras, a seguinte frase.
"Carlos Alberto vai sobre os repórteres apanha o jogador Pelé e o leva para o abraço de seus companheiros", dizia, revelando mais uma vez o papel de "mestre de cerimônia" assumido por Carlos Alberto como líder da equipe.
Vida que segue
Aquele jogo foi válido pela 13ª rodada do torneio Roberto Gomes Pedrosa, considerado posteriormente o Campeonato Brasileiro. Naquele mesmo dia e horário, o São Paulo jogava contra o Flamengo, em partida que venceu por 4 a 1, no Morumbi.
O Santos terminou apenas na oitava colocação na pontuação final. O campeão foi o Palmeiras. E Pelé terminou apenas como o quinto artilheiro, com 11 gols. O goleador foi Edu, irmão de Zico. Pelo América (RJ), fez 14 gols. Foi, portanto, o artilheiro do campeonato em que Pelé marcou o milésimo gol.
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O mundo girou, rodando também no Opala daquela propaganda do Rivellino, dentro do carro sobre um caminhão percorrendo uma estrada.Tônia Carrero era outra protagonista desta peça publicitária.
A vida seguiu, alimentada pelo Toddy que deixava o filho orgulhoso do pai, no diálogo que coloria as páginas das revistas.
"Papai, você ficou forte só porque tomou Toddy quente?
"Não, meu filho, no verão o papai prefere Toddy gelado."
Mas a eternidade se faz presente até naqueles que já se foram, como Pedro Luiz e Juarez Soares. Andrada, o goleiro, morreu recentemente, em setembro de 2019.
Cinquenta anos após o milésimo gol, feito esculpido tal qual uma obra de Michelângelo, o que ficou para trás foi uma dose de saudade, da carreira e da época do maior jogador de todos os tempos.
Até agora, Maradona (365 gols) ficou longe de alcançá-la. E seus maiores concorrentes na atualidade, Messi (681 gols), Cristiano Ronaldo (706 gols), também não deverão repetir o feito. Para frente, seu adversário é essa eternidade. É ela que se perpetua naquela mesma pergunta de Pedro Luiz, que, independentemente dos avanços tecnológicos, tentamos, e não conseguimos, responder a cada dia.
"Agora senhores, o que é que vai acontecer?"
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