Logo R7.com
Logo do PlayPlus
Publicidade

Em livro raro de 1961, Pelé diz que queria ser aviador, foi artilheiro no futsal e quase jogou no Bangu

Biografia do futuro autor de novelas Benedito Ruy Barbosa fala ainda da influência do pai, que o ensinou a chutar com a perna esquerda, e da resistência da mãe a ter um filho jogador

Futebol|Marcos Rogério Lopes, do R7

Pelé (agachado à direita), aos 5 anos de idade, em Bauru, jogava futebol escondido
Pelé (agachado à direita), aos 5 anos de idade, em Bauru, jogava futebol escondido Pelé (agachado à direita), aos 5 anos de idade, em Bauru, jogava futebol escondido

No início de 1961, quando Pelé tinha apenas 20 anos, o jornalista Benedito Ruy Barbosa, futuro autor de novelas consagrado no país, decidiu registrar a história do garoto de 20 anos Edson Arantes do Nascimento, campeão do mundo na Copa de 1958. Após inúmeras entrevistas saiu uma hoje rara e desconhecida biografia, a primeira, do Rei do Futebol: Eu Sou Pelé.

Nas 185 páginas do livro, o rapaz conta, no texto escrito em primeira pessoa com a ajuda de Ruy Barbosa, que, bagunceiro e briguento, Edson era um péssimo aluno, que levou bronca do pai quando fumou escondido, que por muito pouco não foi para o Bangu, antes do Santos, e que seu sonho de criança era ser aviador, mais até do que jogar futebol, até porque sua mãe, Celeste, não queria esse futuro para o filho.

Leia também

O primeiro contato do jornalista com o futuro Atleta do Século ocorreu quando "Dico", seu primeiro apelido, ou Pelé, como preferia ser chamado, tinha apenas 15 anos e havia acabado de chegar ao Santos.

"Como você se chama?", perguntou o repórter, então contratado do jornal Última Hora.

Publicidade

"Pelé", disse o adolescente.

"Pelé!?"

Publicidade

"Não. Meu nome é Edson Arantes do Nascimento. Pelé é apelido."

"De onde veio?"

Publicidade

"De Bauru. Sou filho do Dondinho!"

"Que Dondinho?"

"O senhor é jornalista esportivo?"

"Sou."

"E não conhece o Dondinho, meu pai?"

"Confessei que não conhecia. Pelo menos não me lembrava de nenhum jogador com aquele nome. Naquela tarde, o menino Edson falou mais do pai do que dele mesmo. (...) E falou com tanta paixão e com tanta ternura que percebi que estava diante de um menino diferente. (...) Para ele, naquele momento, Pelé não era assunto, Dondinho era. E ele falou apenas do pai, craque do Bauru Atlético Clube, que não teve a sorte que merecia, pelo futebol que jogava."

Veja a seguir alguns trechos curiosos da primeira biografia de Pelé:

O arteiro Dico, com 10 anos
O arteiro Dico, com 10 anos O arteiro Dico, com 10 anos

Criança, em Bauru, cidade do interior de São Paulo para a qual a família se mudou acompanhando Dondinho, contratado do BAC (Bauru Atlético Clube), Pelé conta que, além do futebol, tinha uma segunda paixão.

"A bola, já nesse tempo, era minha companheira inseparável. Sentia por ela uma atração tão grande quanto a que eu sentia por tudo o que dissesse respeito à aviação. Naquele tempo eu queria ser aviador e volta e meia fugia de casa para ir ver os aviões e planadores do aeroclube da cidade. Geralmente essas fugidas me valiam puxões de orelha e boas palmadas, mas eu não ligava muito para as consequências. Era só ter uma chance, e lá estava eu, vendo as manobras dos planadores. Quase sempre o Zoco [irmão mais novo] queria me acompanhar nessas fugidas e, como eu não gostava de levá-lo comigo, ela ia 'linguaretar' para a minha mãe:

— O Dico foi no campo de aviação, mãe!

Quando eu voltava, não tinha escapatória. Se eu tivesse muita sorte, vinha apenas um sermão daqueles, que geralmente terminava com uma promessa:

— Você vai voltar muito se voltar lá, está ouvindo?"

Um dia, o pai o chamou para uma conversa séria sobre esse desejo do filho.

"Logo depois do jantar, papai me chamou:

— O que você quer ser mesmo quando crescer?

— Aviador.

— E você sabe o que é preciso fazer pra ser aviador?

— Aprender a guiar avião.

Ele achou graça na lógica da minha resposta, mas retrucou:

— Nada disso. Antes de mais nada, é preciso aprender a ler e escrever. É por aí que você vai começar."

Dona Celeste não queria um filho jogador

A mãe de Pelé, dona Celeste, que permanece viva, com 100 anos, jamais quis que o filho seguisse a carreira do pai e deixou claro isso quando o menino foi matriculado na escola.

"Daqui por diante você vai esquecer um pouco a bola e as suas molecagens. Vai estudar pra ser alguém na vida.

Olhei para o meu pai, que sorria ainda. Ele era alguém na vida — pensei comigo mesmo —, pois em Bauru todo mundo o conhecia. Na rua me chamavam de 'filho do Dondinho', o que me enchia de orgulho.

— Você não quer ser jogador também? — perguntou-me ele.

Eu ia responder, mas mamãe se antecipou:

— Deixe de ficar botando essas ideias bobas na cabeça do menino, Dondinho. Futebol não dá camisa pra ninguém.

Ela dizia isso porque os jogadores de futebol da família nunca tiveram sorte. Um irmão do meu pai, meu tio Lambari — como o conheciam no futebol —, também tinha sido um craque e nem por isso ficara rico. Meu pai também jogava o fino, e a nossa vida era sempre aquela dureza."

Em outro trecho da biografia, Pelé analisa que achava que a mãe nunca havia gostado de futebol. "Ela ficava aborrecida cada vez que via meu pai chegar mancando, mas não falava nada. Apenas o ajudava no tratamento, preparando salmouras e outros negócios que papai pedia."

Aos 14 anos, Pelé (embaixo, olhando para o lado) foi campeão invicto pelo Baquinho
Aos 14 anos, Pelé (embaixo, olhando para o lado) foi campeão invicto pelo Baquinho Aos 14 anos, Pelé (embaixo, olhando para o lado) foi campeão invicto pelo Baquinho

O pai o ensinou a chutar com a perna esquerda

Pelé conta que entre suas principais lembranças da infância estavam jogar bola no time criado ao lado dos amigos, o Sete de Setembro, as arruaças e os castigos na escola e as orientações do pai sobre como deveria aprimorar seu talento no futebol, apesar de isso irritar dona Celeste.

"Esse menino só pensa na bola!", queixava-se ela ao meu pai.

Na frente dela, ele às vezes ficava bravo comigo, mas, depois, às escondidas, ensinava-me a bater direito na redonda:

— Você só sabe chutar com o pé direito? Assim vai mal.

E mostrava como é que eu tinha que fazer para chutar com o pé esquerdo: 

— Se você quer ser um bom jogador, aprenda a usar os dois pés. Seu pai chuta de qualquer jeito. 

Chutava mesmo e cabeceava também. Quando minha mãe o surpreendia ensinando-me, achava ruim.

— Bonito, né, Dondinho?... Depois não vá se queixar, hein?

Papai ria:

— Ele é ruim de pé esquerdo."

Pelé fumava

Quando tinha por volta de 12 anos, Pelé conta que, levado por amigos, havia começado a fumar e foi flagrado pelo pai.

"Estávamos sentados na calçada, a uns 50 metros de casa, meio encobertos pela sombra de uma árvore da rua, quando aceitei um cigarro de um dos meus companheiros e, depois de dar uma olhada cuidadosa em todas as direções, comecei a fumar... (...) Como a conversa estava animada, acabei me esquecendo de que estava fumando e relaxei a vigilância. Quando dei por mim, meu pai ia passando... Cumprimentou-nos, sorrindo como sempre, e continuou em seu caminho, sem nenhum comentário.

Joguei o cigarro fora e acho que até fiquei branco do susto que levei.

—– Chiii... hoje não escapo de uma surra — pensei em voz alta.

— Que nada! Ele nem percebeu que você estava fumando, comentou um dos meus colegas."

O adolescente Edson foi para casa "com a pulga atrás da orelha", mas querendo acreditar que o pai não o tinha visto. 

"Logo que entrei, percebi que estava enganado. Papai, sem dar qualquer sinal de estar zangado, chamou-me a um canto.

— Vi você fumando.

— E eu estava mesmo.

— Desde quando você fuma?

— Faz pouco tempo. Uns dias. 

(...)

Eu esperava uns cascudos, mas aconteceu justamente o contrário. Ele me puxou mais pra perto dele e, como um amigo fala para outro, aconselhou-me:

— Você tem jeito pra jogar bola e talvez possa até ser um craque. Mas não será fumando ou bebendo que você vai conservar ou melhorar seu físico para poder jogar direito.

Depois de dizer isso, enfiou a mão no bolso e puxou a carteira.

— Se você, apesar de tudo, ainda quer continuar fumando, será bom que compre os seus próprios cigarros. É feio viver filando dos outros. Quer dinheiro pra isso?

Depois daquela, eu não sabia onde enfiar a cara. Fiquei tão desconcertado que ele, sentindo isso, colocou um ponto-final na conversa."

Pelé ganhou título no futsal

Com 15 anos, Pelé conta no livro que, com a saída do técnico Valdemar de Brito (ele escreve o nome do responsavel por levá-lo ao Santos com V, não com W) do Baquinho, clube das divisões de base do BAC, de Bauru, houve uma debandada no time. Ele acabou indo para o Noroestinho, dos aspirantes ao profissional do Noroeste.

No Noroeste, ele se dividia entre o time da base e jogos de futsal.

"Ao mesmo tempo em que atuava no torneio noturno, entrei para o Radium, para disputar o primeiro campeonato de futebol de salão que se realizou em Bauru. Foi um show aquele certame, pois era uma autêntica novidade na cidade. O time do Radium, formado quase que na base do time de futebol do mesmo clube — para o qual também passei a jogar —, tinha alguns jogadores realmente muito bons, como Edir, Passoca, Dirceu, Beto, Vitor e outros. Fomos campeões do torneio de futebol de salão. Eu fui o artilheiro daquele certame, com quarenta gols.

Quase foi para o Bangu com 15 anos

"Eu ainda não passava de um negrinho espigado, franzino, mas metido a sebo quando tinha uma bola nos pés, quando o Tim, do Bangu, apareceu em Bauru. Tinha ouvido falar de mim e veio me buscar para o seu clube. Era a primeira chance que me aparecia, para jogar num time de uma cidade grande, como o Rio de Janeiro.

Quando eu soube da notícia, fiquei louco de alegria e cheguei a pensar quer iria mesmo para o Bangu. O Tim veio falar com meu pai, pois tudo dependia da palavra dele. Eu era menor de idade ainda e não podia decidir nada sozinho. Nem queria. (...)

Não sei se papai não quis dizer não ao Tim, mas o fato é que colocou a questão nas mãos da minha mãe:

— Se ela deixar, ele irá.

Mamãe quase não deixou que a explicação dos fatos chegasse ao fim.

— Você está louco, Dondinho? Ele é uma criança ainda. 

Em resumo, mamãe achava que eu ainda não tinha idade, nem juízo, para sair de casa. Assim o Tim voltou para o Rio sozinho. Eu fiquei em Bauru, jogando pelo Radium e pelo Noroestinho. Não cheguei a ficar triste por ter perdido aquela primeira oportunidade, pois entendi que mamãe tinha razões de sobra para me prender junto dela.

Passado algum tempo, porém, o Valdemar de Brito apareceu em Bauru, para me buscar. Era amigo da família, papai e mamãe confiavam nele. Mesmo assim, porém, ele teve que usar de todos os seus argumentos para convencê-los a me deixar ir para Santos..."

Apesar da resistência de dona Celeste, o futuro Atleta do Século chegou a Santos em 1955 e, daí em diante, essa história já foi contada e recontada por inúmeros outros livros, reportagens e especiais de TV no Brasil e no mundo inteiro. 

Últimas

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.