Cadeirante, na Cracolândia: ex-jogador é reconhecido por torcida
Homem que pedia por comida revelou passado surpreendente a integrantes de organizada do Palmeiras durante ação solidária em meio à pandemia
Futebol|Cesar Sacheto, do R7
Invisíveis aos olhos dos demais cidadão. Em geral, é assim que usuários de drogas das ruas da Cracolândia são vistos pelos demais moradores de São Paulo. Os dependentes químicos são indesejáveis em função dos perigos que oferecem pelo consumo de entorpecentes a céu aberto e a qualquer hora do dia, mas há quem se preocupe com essa população.
Cada um daqueles seres humanos carrega consigo uma história. Muitas marcadas por desilusões, perdas ou tragédias pessoais. Alguns desses homens e mulheres tiveram um passado de sucesso, uma época em que provavelmente não imaginavam o destino que enfrentariam.
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Na noite escura e fria de 5 de julho, um cadeirante chamou a atenção de um grupo de torcedores do Palmeiras que distribuía marmitas e outros mantimentos em uma ação realizada todos os domingos na Cracolândia. Integrantes da torcida Mancha Alvi Verde, que também fazem esse tipo de ação social na rodoviária do Tietê, na zona norte da cidade, em meio à pandemia do novo coronavírus, eram os responsáveis por alimentar a vontade dos usuários de sair daquela situação degradante.
Com alguma dificuldade de locomoção, o homem se aproximou daquele pessoal com camisas do clube alviverde e da organizada em busca de alimentos. Em um breve bate-papo, disse que havia jogado nas categorias de base do time no início dos anos 1990. Porém, três tiros nas costas durante uma briga, ocorrida ainda na juventude, o havia deixado na cadeira de rodas. Apesar de aparentar certa confusão ao pronunciar as palavras, ele revelou nomes, datas e situações que davam veracidade à história. Não era uma conversa de louco.
Era um centroavante%2C meio 'perna torta'%2C habilidoso
"A gente vai lá todos os domingos, pede para o pessoal fazer uma fila para retirar marmitex, água, frutas e o que tiver. Aí esse cara veio e pediu um marmitex. Ele falava meio enrolado, percebia-se que estava sob o efeito de drogas. Disse que foi jogador do Palmeiras. Falou que jogou em 1992 e 1993 com o Marcos, o Amaral e que o Raul Pratali era o técnico. Daí chamou a atenção. Falar do Raul Pratali. Pouca gente conhece. O cara tem uma história", contou Pepe Reale, integrante da torcida organizada palmeirense.
Para confirmar a versão, uma corrente envolveu torcedores e até historiadores do clube na internet. A missão era identificar o ex-jogador do Palmeiras, que até hoje guarda fotos dos tempos de concentração e jogos. A mobilização alviverde chegou ao nome de Fábio Santana dos Santos, hoje com 43 anos, que atuou por muito tempo em equipes de futsal, na várzea e, sim, realmente jogou na base do Palmeiras.
Mas quem é esse ex-jogador?
O R7 conversou com Fábio, por telefone. Fora da Cracolândia, ele negou que tenha problemas com entorpecentes. A mãe, amigos e até o ex-jogador Amaral ajudaram a traçar o perfil de quem tinha uma carreira bem encaminhada no glamourosa mundo do futebol e sofreu uma derrota na vida.
"Esse menino jogava muita bola. Está sempre com a gente no Brás", revelou Antônio ‘Macarrão’, membro da diretoria de uma sociedade beneficente do tradicional bairro, na região central da cidade, onde Fábio atuou por equipes locais.
O jornalista Adriano Coelho, amigo de infância, conheceu Fábio nos campos de várzea do Pari, por volta de 1985. Naquele tempo, a intimidade com a bola já era uma característica marcante no menino que viria a ser um dos grandes nomes do São Vito, um antigo clube das redondezas, hoje já extinto.
"Eu tinha 14 anos. A minha lembrança é de um criança com uma habilidade fora do comum. Anos depois, ele passou a frequentar a nossa rua. Tinha o cabelo enorme eu o chamava de Gullit, que estava em evidência na seleção holandesa. Marcou época no time", confidenciou o amigo.
Mais tarde, o talento levou Fábio para o Palmeiras. Por lá, o jovem se destacou nas categorias de base, participou de excursão à Itália e atuou entre os aspirantes.
“Teve uma oportunidade que o vi na reserva em um jogo contra o São Paulo, no Morumbi”, completou Adriano.
"Era um centroavante, meio 'perna torta', habilidoso. Ele era do juvenil. Eu era dos juniores", relembrou o ex-volante Amaral, que começou a carreira e fez sucesso no Palmeiras e se destacou em outros grandes clubes do futebol nacional e do exterior, além das passagens pela seleção brasileira.
Antes de chegar ao Palmeiras, Fábio já havia se destacado no futsal com as camisas da Portuguesa e do Goodyear. Nesses times, ele fez muitos amigos que o acompanharam na chegada ao Palestra Itália.
A mãe do ex-jogador, Maria Olímpia Vieira, de 67 anos, cabeleireira no bairro, em um misto de orgulho e tristeza, reconta a carreira do filho.
“Ele começou a jogar bola na Portuguesa. Ele tinha cinco ou sete anos. Depois, passou para o Goodyear e o Palmeiras. Lá, ele conseguiu ir para a Itália. O técnico era o Niltinho e tiveram que pedir autorização. Tinha 16 anos. Quando voltou, ficou mais um tempo no Palmeiras, mas não deu certo. Ficou só no [futebol de] salão e depois aconteceu esse acidente. Ele tinha 21", comentou Maria Olímpia.
Três tiros nas costas
Fábio ficou paraplégico após ser baleado em uma festa de final de ano, realizada no fim da década de 1990, na zona leste paulistana. Naquela época, ele já havia abandonado o futebol de campo — saiu do clube por um desentendimento com um diretor da base palmeirense —, mas ainda jogava profissionalmente por uma equipe de futsal de Foz do Iguaçu (PR).
"Eu morava na Vila Formosa. Uns amigos foram viajar para Trindade e nós ficamos aqui. Fizeram um rateio para uma festa de fim de ano. Chegamos na festa, estavam eu, um amigo e duas amigas. Esse amigo que foi com a gente tinha arrumado uma confusão com um cara. Entrei na discussão [para apartar], ele saiu. Quando voltou, estava armado. Eu estava conversando. Ele chegou com o revólver por trás de mim e meu deu três tiros nas costas. Nem vi", relembrou Fábio.
Dá saudade. Tenho vontade de encontrar os amigos
O perfil de atleta de Fábio era considerado uma vantagem na luta para recuperar os movimentos das pernas. No entanto, a mãe acredita que algo se quebrou internamente no filho. Os disparos encerraram muitos sonhos de um homem que apenas iniciava uma nova fase da vida.
“Como ele tinha o preparo físico muito bom, o médico se surpreendeu. Ele cansou um pouco. Era muito trabalho para a gente. Morávamos na Vila Formosa. Depois, voltei para o Brás. Então, pensei que se ele estava bem, eu também estaria", disse Maria Olímpia.
Fábio se lembra de um psiquiatra que havia tido uma conversa com a sua mãe na qual avaliou que ele teria boas probabilidades de voltar a andar. Entretanto, nem mesmo a previsão otimista foi capaz de fazê-lo recuperar as forças.
"Tinha de 70% a 80% de chances. Comecei a fazer fisioterapia, mas desanimei. Agora, já era. Foi complicado. Gostava de sair sem depender dos outros", lamentou Fábio, que ainda mora com a mãe, uma mulher conhecida e também muito querida pela comunidade do Brás.
A vida hoje
Até hoje, o ex-atleta sente dores nas pernas e faz tratamento na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Com o auxílio de amigos da família, Fábio conseguiu um emprego e tentou recomeçar. Mas o novo trabalho durou pouco tempo.
"Não me aposentei. Um amigo nosso do Brás arrumou um serviço para mim em uma firma de produtos cereais. Fiquei lá de 2007 a 2012, mas a empresa faliu. Depois disso, não arrumei mais nada", disse.
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Os reveses que Fábio sofreu foram muitos e parecem ter afetado o seu estado psicológico, algo que aflige a sua família — o ex-jogador tem uma irmã e um sobrinho.
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Fábio se mostra resignado em relação ao futuro e mesmo sobre o destino do homem que abreviou sua carreira no futebol.
"O atirador sumiu. Ele foi preso e teve audiência. Eu fui com a minha mãe. Mas, nunca mais fiquei sabendo dele. Não me incomoda. Na época, dava vontade de fazer a mesma coisa. Mas, agora já passou e deixo nas mãos de Deus", finalizou.
Dos tempos de futebol, o ex-atacante do Palmeiras diz sentir falta somente dos companheiros.
"Dá saudade. Tenho vontade de encontrar os amigos com quem jogava antigamente. Converso com amigos pela rede social, mas são poucos. A minha mãe tem um salão no bairro. Sou muito conhecido", finalizou.
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