Manutenção, desgaste e lesões: o desafio dos gramados no Brasileirão
Debate entre sintético e natural ganhou fãs fervorosos nos últimos anos no Brasil
Lance|Do R7

O Brasileirão está prestes a começar, trazendo de volta o intenso debate sobre a qualidade dos gramados nos estádios do país. Nos últimos anos, a introdução do gramado sintético em arenas modernas tem polarizado opiniões, dividindo clubes, jogadores e torcedores entre defensores da praticidade do piso artificial e aqueles que argumentam que ele altera a dinâmica do jogo e pode aumentar riscos de lesões.
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Atualmente, três estádios da Série A adotam o gramado sintético: o Allianz Parque do Palmeiras, o Estádio Nilton Santos do Botafogo e a Arena MRV do Atlético-MG. A a Ligga Arena do Athletico-PR, que está na Série B, e a Mercado Livre Arena Pacaembu em São Paulo, que deverá ser usada pelo Santos e eventualmente pelo São Paulo, também contam com o piso sintético.
A Fifa estabelece três categorias oficiais de gramados: natural, híbrido (que combina grama natural com reforço sintético) e sintético, este último subdividido em três certificações (Quality Pro para futebol profissional, Quality para uso comunitário e Básica para padrões mínimos).
Manutenção é destaque do sintético
Essa classificação reflete a evolução tecnológica no setor. No Brasil, a Neo Química Arena do Corinthians adota uma solução híbrida inovadora, com 20 centímetros de fibra sintética integrada ao solo para aumentar a resistência do gramado natural.
— O gramado sintético recebe críticas porque muitas pessoas o comparam aos campos amadores. O sintético profissional, utilizado em grandes estádios, não pode ser comparado aos gramados de society ou outras superfícies sem certificação. Até mesmo alguns jogadores fazem essa confusão, acreditando que o sintético profissional é igual ao amador, mas, quando jogam em um campo de alto nível, percebem a diferença. Os gramados amadores não passam pelos testes da Fifa e não recebem manutenção adequada, comprometendo sua qualidade. O sintético profissional aprovado pela Fifa oferece desempenho e jogabilidade equivalentes aos melhores gramados naturais do mundo, como os utilizados na Champions League. Além disso, os gramados sintéticos certificados pela Fifa, como o do Allianz Parque, seguem os mesmos padrões dos gramados naturais utilizados no futebol europeu. Isso explica por que o futebol praticado nesses gramados de alta qualidade mantém a mesma velocidade e desempenho do futebol europeu - argumentou ao Lance! Alessandro Oliveira, CEO da SoccerGrass, empresa que cuida do gramado do Allianz Parque.
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Oliveira cita que o sintético é mais confiável para a prática esportiva, além de poder ser usado em lugares que sediam shows e eventos com frequência.
— A vantagem que você consegue na grama sintética é ter uma regularidade do primeiro minuto de jogo até os 50 minutos do segundo tempo. No gramado natural, o jogo com 30 minutos começa a ter deformação no piso. Se olhar, vai ver grama solta. E onde tem grama solta, tem um buraco. Os jogadores comentam muito sobre isso quando jogam no Allianz. Lá, eles não precisam olhar para o chão para correr, o que faz o jogo ficar mais rápido. Esse é o padrão no futebol europeu — explicou Oliveira.
Na Europa, para minimizar prejuízos, clubes como o Tottenham Hotspur têm adotado outra estratégia: o Tottenham Hotspur Stadium, na Inglaterra, possui um sistema de gramado retrátil capaz de alternar entre superfícies naturais e sintéticas conforme a necessidade.
A escolha entre grama natural e sintética nos estádios de futebol vai além da qualidade do jogo. Um dos fatores determinantes para os clubes é o custo de manutenção, que apresenta uma diferença significativa entre as duas opções.
Para manter um campo de grama natural em condições ideais, o investimento mensal gira em torno de R$ 150 mil. Já o gramado sintético exige um custo bem menor, variando entre R$ 30 mil e R$ 40 mil por mês.
Outro ponto positivo do gramado sintético é sua durabilidade. Enquanto um campo de grama natural suporta, no máximo, três jogos por semana, o gramado artificial pode ser utilizado 24 horas por dia, sete dias por semana. A resistência do material permite que partidas sejam realizadas em sequência, sem necessidade de tempo para regeneração do campo.
— Existem diferentes tipos de enchimento para gramados sintéticos. O Athletico-PR utiliza fibra de coco, enquanto o Allianz Parque usa cortiça. Antes, o material mais comum era o termoplástico. Também há opções como borracha encapsulada e outros compostos. Independentemente do material, todos os gramados sintéticos precisam atender aos testes da Fifa, que avaliam critérios como quique da bola, absorção de impacto e rolagem da bola. A principal diferença entre os tipos de enchimento está na temperatura: materiais orgânicos, como cortiça e fibra de coco, oferecem uma sensação térmica mais amena, enquanto opções sintéticas, como borracha e termoplástico, tendem a esquentar mais. Atualmente, há uma tendência de mesclar materiais, como borracha e cortiça, ou optar por enchimentos 100% orgânicos, como ocorre no Allianz Parque e na Arena da Baixada, buscando maior conforto térmico para os jogadores — analisou Oliveira.
O diferencial da Neo Química Arena
A maioria dos estádios brasileiros, porém, ainda mantém gramados naturais, que enfrentam desafios sazonais significativos. Durante o verão, a Bermuda Celebration, espécie aprovada pela Fifa e utilizada mundialmente desde 2014, é a mais comum. Porém, no inverno, muitos clubes fazem a transição para o Ryegrass, mais resistente ao frio, como ocorre na Neo Química Arena do Corinthians, único estádio no Brasil a utilizar essa grama de forma exclusiva.
— O gramado da Neo Química Arena tem uma diferença muito grande dos outros gramados porque é a única grama de inverno no nosso país. Significa que o nosso gramado é o mesmo que se encontra na Europa. Então, aqui no nosso país, no nosso estádio, esse gramado de inverno exige que tenha outra tecnologia envolvida. Temos um sistema de refrigeração, onde existem tubos de ar-condicionado no gramado, e ele coloca a temperatura ideal para a grama. Além de um sistema de vácuo, que tira a água com maior rapidez, e outras tecnologias que foram necessárias para que pudéssemos ter, num país tropical, uma grama de inverno, que é aquela que os atletas, especialmente os que estão habituados a jogar na Europa, já classificam como o gramado ideal — explicou Lúcio Blanco, administrador da Neo Química Arena.
O engenheiro agrônomo João Paulo de Abreu, da World Sports, empresa que cuida do gramado da Neo Química Arena, ponderou que a tecnologia implantada na casa corintiana serve também para aumentar a qualidade do gramado.
— Além do sistema de refrigeramento que a gente tem no gramado, está enterrado também o sistema de drenagem, que é a vácuo. Ou seja, ele pode funcionar em dia de chuva: a gente liga para ele succionar essa água para fora do campo mais rápido. Então, consequentemente, o campo vai secar muito mais rápido do que um gramado com drenagem normal. E também esse sistema pode ser revertido. Em vez de ele tirar, ele pode jogar ar para o solo. Isso também ajuda na questão do gramado, para a troca gasosa de raiz, ou seja, para a saúde em si da grama. Ele também ajuda na questão da temperatura. Esse ar no solo também ajuda a grama a resistir um pouco mais ao clima, principalmente na época do verão brasileiro.
A questão da qualidade dos gramados no Brasil é um problema crônico, frequentemente associado à falta de padronização e à sobrecarga de jogos. Mas que ganhou também um novo componente recentemente, que foi a arquitetura de alguns estádios. Em algumas arenas, a pouca incidência de sol tem prejudicado a vida útil dos gramados, causando ainda mais problemas.
— O Maracanã enfrenta desafios devido ao seu calendário intenso. Dois times mandam seus jogos lá, às vezes até um terceiro, e o estádio conta com arquibancadas cobertas que impedem a entrada total de luz solar. Para amenizar esse problema, adotaram um gramado híbrido, mas, como a base ainda é 100% natural, a solução não é definitiva. A presença de alguns fios sintéticos não elimina a necessidade do manejo da grama natural, e o desgaste do campo continua alto. A única alternativa viável seria a adoção de um gramado 100% sintético ou a redução do número de jogos. Mesmo estádios com um único time mandante, como o Allianz Parque antes da mudança para o sintético, já apresentavam dificuldades para manter um gramado natural em boas condições. A combinação de um calendário intenso com a falta de luz solar suficiente dificulta a manutenção da qualidade do gramado — analisou Alessandro Oliveira, da SoccerGrass.
Enquanto o Real Madrid, que foi campeão da Champions League, disputou 56 partidas na temporada 2023/24, o Botafogo, campeão da Libertadores e do Brasileirão, acumulou 75 jogos em 2024.
Essa diferença se torna ainda mais evidente quando comparamos com as rigorosas regulamentações europeias. Na Champions League, por exemplo, os gramados não podem ultrapassar 30 milímetros de altura, com possibilidade de redução a critério do árbitro. Já na Premier League, embora mantenha a mesma altura máxima, as regras de irrigação são mais flexíveis. No Brasil, a CBF se limita a exigir que os clubes mantenham "condições adequadas" de gramado, sem estabelecer parâmetros técnicos específicos.
Não há consenso sobre lesões
O debate sobre a relação entre tipos de gramado e incidência de lesões tem se intensificado nos últimos anos, com estudos científicos apresentando conclusões variadas. Uma ampla meta-análise publicada na The Lancet em 2023, que examinou 1.447 estudos, concluiu que o gramado sintético apresenta menor incidência geral de lesões comparado ao natural.
Por outro lado, pesquisas realizadas na MLS entre 2013 e 2016 mostraram taxas similares de lesões entre as duas superfícies, porém com maior ocorrência de problemas no tornozelo e tendão de Aquiles no sintético. Dados da NCAA coletados entre 2004 e 2014 revelaram que jogadores treinando em grama natural tinham 26% mais chances de sofrer lesões do ligamento cruzado anterior, diferença que não se mantinha em partidas oficiais.
O renomado pesquisador Jan Ekstrand, do Aspetar (renomado centro de medicina esportiva mundial, que fica em Doha, no Catar), destacou em seu estudo que o sintético pode reduzir distensões musculares, mas potencialmente aumentar casos de entorses. Já análises do futebol americano universitário entre 2007 e 2019 apontaram maior incidência de lesões de LCA no sintético no futebol feminino, sem diferença significativa no masculino.
Este complexo cenário mostra que, embora o gramado sintético ofereça vantagens em termos de durabilidade e economia, a resistência de muitos jogadores e a falta de consenso científico mantêm a polêmica. A CBF, ciente dessa controvérsia, está conduzindo um estudo abrangente sobre lesões ocorridas durante o Campeonato Brasileiro de 2024, cujos resultados poderão influenciar futuras regulamentações.