‘Fui massacrada, muitos homens não queriam que eu estivesse ali’, declara Ana Paula Oliveira
Ela foi a primeira mulher a comandar um quadro de árbitros no Brasil e se tornou referência dentro e fora dos gramados; a árbitra comenta sobre a pressão e o machismo que enfrentou ao longo da trajetória
Ana Paula Oliveira é um dos principais nomes e referências da arbitragem brasileira. Assumiu, ainda muito jovem, o desafio de bandeirar as partidas dos campeonatos estaduais e nacionais, sendo a primeira mulher a assumir uma Comissão de Arbitragem no Brasil — na FPF (Federação Paulista de Futebol). Com 24 anos, já estava em Atenas nos Jogos Olímpicos e foi eleita árbitra releveção do torneio, um dos momentos mais marcantes da sua carreira.
O jogo mais importante? A grande final do Paulistão 2003, entre São Paulo e Corinthians, quando se tornou a primeira mulher a estar em uma decisão no estado. “Esse foi o jogo que me projetou para o Brasil”, afirma.
Aos 30 anos, Ana decidiu deixar os gramados precocemente. Ela explica que a pressão e o machismo pesaram na decisão. “Fui massacrada, muitos homens não queriam que eu estivesse ali. Acho que quando você tem um plantel de profissionais em que 98% é masculino e você é mulher, você é testada o tempo todo. Pra mim, foi difícil porque sou uma pessoa de personalidade forte, não sou de levar desaforo para casa.”
Mesmo com o passar do tempo, Ana Paula lamenta que a cobrança e as críticas ainda sejam maiores com as mulheres, e cita a árbitra Edina Alves Batista como exemplo.
“Hoje, quando um árbitro erra no Brasileiro, a crítica não vai para o presidente da Comissão de arbitragem, vai para o árbitro. No meu caso, quando o arbitro se equivocava, a incompetente era eu, a presidente da Comissão”, revela. “Infelizmente, é assim. Tem homens que erraram muito mais e que são aplaudidos. E está tudo bem. Mas por que alguns são vangloriados, e pra nós, mulheres, é ao contrário? Eu fui em alguns jogos da Edina apitando, e é lamentável. Não é possível tamanha hostilidade. E não é porque Edina é boa ou ruim, é porque ela é mulher”, acrescenta.
Durante o bate-papo, a árbitra, que atualmente também é comentarista de arbitragem na Record News, ainda relembra o nu artístico que fez em 2007, depois de negar o convite quatro vezes.
Leia a entrevista na íntegra
R7 - Queria começar falando um pouco da sua rotina hoje, fora dos gramados. Você está trabalhando como comentarista de arbitragem e também na gestão de clubes. Como foi esse processo para se reinventar?
Ana Paula Oliveira - Depois da minha saída do campo de jogo, foi um processo diferente, porque eu tinha me preparado e estudado para ser árbitra por muito tempo. E com 30 anos, eu me vejo fora das quatro linhas. Como sempre gostei de estudar, tinha me formado em comunicação e já tinha iniciado um trabalho na Central Nacional de Televisão, o primeiro espaço que me deu oportunidade para atuar como comentarista. De lá, eu fui para Record, depois, participei da Rádio Mix, da Fox, SporTV… Comentando a Copa do Mundo. Aí, eu fui para Minas Gerais, onde tive um programa chamado Alterosa no Ataque, com Jaeci Carvalho, mas senti que precisava voltar para o futebol. Não que eu seja tão importante assim, mas sinto que quando eu deixei os gramados houve um retrocesso da participação da mulher como árbitras, que foi de 2010 a 2014/2015. Em 2014, eu volto para CBF para escola nacional de arbitragem e abandono a minha vida como jornalista para atuar na gestão de arbitragem.
R7 - E, foi aí que veio o convite para assumir a Comissão de Arbitragem aqui em São Paulo?
Ana Paula - Sim, eu estava iniciando o meu mestrado e, a ideia, era ajudar na escola nacional de arbitragem, queriam fazer um investimento na formação de árbitros, e eu vim para este projeto. Comecei como secretária da escola, depois coordenadora nacional, membro
da Comissão de Arbitragem — fui a primeira mulher a ser membro —, fui a coordenadora da arbitragem feminina e coordenadora do desenvolvimento de análise de desempenho do árbitro, algo inédito quando a gente lançou, nesse período que eu estive na CBF de 2014 a 2019. E sempre quis ser gestora, queria ter a possibilidade de colocar as minhas ideias em prática. Aí, eu venho para São Paulo, e o Reinaldo (Carneiro Bastos, presidente da Federação Paulista de Futebol) me convida para fazer um projeto para arbitragem paulista. Confesso que não sabia que ia ser convidada para presidir [a Comissão de Arbitragem], foi um desafio inesperado. Eu até brinquei com ele, falei: ‘Você sabe que eu tenho fama de ter personalidade forte, de ter coragem de falar o que pensa’. Ele falou: ‘Não tem problema, preciso de alguém assim para o momento que São Paulo está vivendo’. Eu achei que fosse ficar só um ano, acabei ficando quatro e foi extraordinário.
R7 - Você faz parte hoje da Comissão Organizadora e Preparatória para a Copa do Mundo Feminina 2027 no Brasil, certo? Como funciona esse trabalho? Já dá pra adiantar alguma coisa?
Ana Paula - Sim, hoje eu estou na Prodam, que é um departamento de tecnologia e inovação da Prefeitura, uma empresa público-privada, que presta serviço para Prefeitura — estou me reinventando nos 40 mais e estou feliz com esse processo. Da Prodam, eu fui indicada para ser membro da Comissão Organizadora da Copa pela cidade de São Paulo. Já fizemos reuniões com a Fifa, no mês passado, estive presente na visita técnica à Neo Química Arena, fui representando o prefeito e o secretário nessa reunião, já com o papel de gestora pública. No fim deste mês, a Fifa volta para visitar os centros de treinamento e todo sistema de hotelaria. No ano que vem, quando saem definitivamente as sedes, — e a gente acredita que São Paulo vai ser uma das sedes — a gente começa o trabalho de organização por parte da segurança pública, logística de transporte, do trabalho de staff, de toda parte médica, de hospitais, enfim... A gente vai dar esse suporte para a Fifa. Diferente das competições anteriores que já aconteceram no nosso país, a Fifa vai criar uma sub-sede aqui e vai gerir tudo em parceria com as entidades futebolísticas e com as cidades e os estados que vão organizar a Copa, com o Ministério do Esporte. Somos uma parte desse trabalho e o meu papel é fazer com que aqui em São Paulo a gente entregue a melhor cidade do mundial.
R7 - Já que falamos de Copa do Mundo, você teve a chance de bandeirar nos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004. Como foi essa experiência?
Ana Paula - Estar em Atenas foi incrível! Eu me sentia na Disneylândia (risos). Tudo bem que eu fui pra lá o ano passado, mas eu me senti na Disney porque era um sonho de criança você ser atleta olímpica. Fui jogadora de vôlei e meu sonho era ser jogadora profissional. Não deu certo e acabei me tornando árbitra muito precocemente. Entrei na Fifa com 24 anos e seis meses depois eu estava nos Jogos Olímpicos em Atenas. Foi algo indescritível, eu fui árbitra revelação do torneio. Fiz as oitavas de final e só não fiz a final porque o Brasil chegou e ganhamos a nossa primeira medalha de prata. Eu torci muito pela Marta porque éramos amigas, estávamos começando juntas, então, foi um momento mágico da minha carreira que eu guardo na minha memória com muito carinho. Eu adoro história, então, ter vivido os 100 anos da Fifa, os Jogos Olímpicos da era moderna em Atenas foi indescritível.
R7 - E esse foi o jogo mais importante e que marcou sua carreira?
Ana Paula - Atenas foi hors concours. Mas o jogo mais importante da minha carreira foi São Paulo e Corinthians, a grande final em 2003 do Campeonato Paulista, e que eu me tornei a primeira mulher a fazer uma final aqui no estado de São Paulo dentro das quatro linhas. E foi esse jogo que me projetou para o Brasil.
R7 - Você abriu portas e foi primeira mulher a comandar um quadro de árbitros de um estado brasileiro. Qual o maior desafio trabalhar no meio do futebol, sendo mulher?
Ana Paula - Acho que o principal e maior desafio, e aí eu não tô querendo falar aqui para criar polêmica, mas é o machismo. Eu acho que ainda é muito difícil aceitar uma mulher que fale firme, que tenha coragem de falar com seus pares no mesmo tom. Então, acho que ainda existe aquela cultura que nós mulheres precisamos, em cargos de direção, ser submissas. Eu entendo que isso precisa ser derrubado, porque se você é colocado ali, é porque você tem condição e competência, então, você também tem que ter voz. Eu sempre digo que não basta dar espaço à mulher, ela precisa ter voz, precisa ser ouvida. A gente entrou também em uma cultura de dar espaço para a mulher em função de uma “cota”. “A sociedade está exigindo a participação da mulher”. Aí você dá essa “cota” para mulher, só que você fala pra ela ficar ali sem fazer nada. Eu sou contra esse pensamento. Eu entendo que a gente tem de lutar pelos nossos espaços de direitos, mas eles têm de ser legítimos. Eu acho que o outro desafio que enfrentei é você ter um plantel de profissionais em que 98% é masculino e você é mulher. Então, você é testada o tempo todo, seja com uma piada, com uma provocação… Você tem de ser esse discernimento para não entrar na pilha. Pra mim foi difícil porque sou uma pessoa de personalidade forte, não sou de levar desaforo para casa.
R7 - Você acha que a cobrança e as críticas são maiores, principalmente quando acontecem os erros?
Ana Paula - São mais ácidas, né? Eu digo que nunca vi uma presidente de Comissão de Arbitragem que deu resultados tão bons, e não estou sendo arrogante, você pode pedir os dados da minha gestão para a Federação e vai entender o que eu vou dizer sobre a quantidade de erros percentuais ano a ano. Eu tinha uma meta, que era minimizar os erros de São Paulo e entender a qualidade do erro. Parece absurdo o que vou dizer, mas há tipos de erros: os aceitáveis e os inaceitáveis. A minha ideia era, além de minimizar o erro, cuidar da qualidade desse erro. Erro de área penal e de cartão vermelho a gente não pode ter. Qual a gravidade do erro? Qual é o impacto desse erro no jogo? Acredito que junto com o time, a gente conseguiu alcançar essas metas e esses objetivos. E mesmo tendo uma gestão sólida e consistente por parte da equipe arbitragem, tentando praticar justiça, por mais que seja difícil, a crítica era muito dura. E era muito curioso que no meu caso quando o árbitro errava, a crítica não era pra ele, era pra mim. Hoje, quando um árbitro erra no Brasileiro, a crítica não vai para o presidente da Comissão de Arbitragem, vai para o árbitro. No meu caso, quando o arbitro se equivocava, a incompetente era eu, presidente da Comissão.
R7 - Mas você acha que isso acontecia por você ser mulher?
Ana Paula - Sem dúvida, porque a nossa cultura não aceita mulher no meio masculino, entenda, com propriedade. Eles nos aceitam em qualquer segmento, mas quando a gente entra em um segmento que é predominantemente masculino e se destaca, você fala assim: ‘Opa, mas eu não posso deixar essa mulher crescer porque senão vou me comparar com ela’, e quando eu me comparo a cultura patriarcal nossa não nos permite estar abaixo ou acima. E eu sempre digo que nós não precisamos, na discussão de gênero, querer estar à frente um do outro, pelo contrário. Acho que homens e mulheres unidos são muito mais fortes e conseguem produzir muito mais e juntos, porque são mecanismos de pensar diferentes e isso, na minha visão, se agrega. Eu adoro ter um time diversificado, porque me provoca, me faz crescer e está tudo bem.
R7 - Depois do jogo entre Botafogo x Figueirense, por exemplo, você foi afastada do Brasileirão, foi bandeirar na quarta divisão do Paulista, perdeu o escudo da Fifa… A ‘punição’ foi pesada. E é algo que acontece com a Edina Alves atualmente também. Ela é sempre mais criticada, ficou vários jogos do Brasileiro sem apitar…
Ana Paula - Infelizmente é assim. Se você for pegar na história, tem homens que erraram muito mais do que eu me equivoquei — erros grosseiros — e que foram para mundiais, que são consagrados, que hoje as pessoas aplaudem… E tudo bem aplaudir. Mas por que para uns você perdoa, valoriza e vangloria, e pra nós mulheres é ao contrário? Tem que massacrar, punir… Eu fui em alguns jogos da Edina apitando, e é lamentável. Eu chego a ficar com náusea, sabe? Não é possível tamanha hostilidade, e não é porque a Edina é boa ou ruim, é porque ela é mulher.
R7 - Eu vi o vídeo de um jogo que você arbitrou, em que você é ofendida pela torcida com palavras de baixo calão. Eu nunca tinha visto isso antes…
Ana Paula - É absurdo! Eu fui muito ofendida, mas acho que mais me choca é quando a ofensa vem de uma mulher. Uma mulher não precisa gostar de mim, nem me admirar, e tem todo direito de ser contra o que eu penso e acredito, mas ela não precisa ser tão agressiva como os homens são. Quando eu bandeirava, me incomodava muito quando via uma mulher falando. Eu pensava: ‘Será que ela não tem noção que amanhã pode ser a filha dela que vai estar aqui?’. Não estou pedindo pra ela concordar comigo, mas só para me respeitar, para ter empatia. É uma coisa que me incomoda muito, porque do homem você já espera, está dentro da nossa cultura, mas quando [a ofensa] vem de uma de nós? Pra mim, é doloroso.
R7 - E o que você acha que dá pra fazer para mudar o quadro da diferença entre homens e mulheres no futebol?
Ana Paula - Eu acho que a primeira coisa é a educação. A gente entender que é fruto de um patriarcado e de uma cultura machista. Acho que a partir do momento que você entende isso, você passa a ser policiar. E a educação é por meio de palestras, da troca diária. Eu trouxe debates e discussões sobre isso quando fui presidente da Comissão de Arbitragem. A gente tinha um código de ética da Federação, da Fifa e da CBF, e foi criado o Código de Ética da Arbitragem, talvez não tenha mais valor, as pessoas nem usem. Mas era um caminho para encurtar a pena e não levar o julgamento para outra instância. A gente teria a autonomia para avaliar a pena, quantos jogos o árbitro ficaria afastado, por exemplo, e diminuir a burocaria. É bem inspirado na Premier League. Isso é educação no dia a dia, aplicada ao futebol, são iniciativas pra gente descontruir uma educação e construir uma nova. Sou muito favorável a isso.
R7 - Você fala muito bem, entende muito do assunto, era uma ótima profissional… Você parou de atuar muito jovem, aos 30 anos, por que tão cedo? Você tinha condições de estar atuando até hoje…
Ana Paula - Eu estava no auge da carreira, mas acho que esse foi meu grande aprendizado. Eu estava fadigada. E, às vezes, a gente se entrega tanto a uma função e é tão bom naquilo, que as pessoas vão procurar mecanismos para te destruir. Se ele não consegue te destruir no caminho técnico, ele vai apelar na questão mental. Então, eu fui muito massacrada mentalmente no período como árbitra. Eu sabia da minha condição dentro do campo e da força que eu tinha, comecei a ser massacrada o tempo todo, por colegas de trabalho, diretoria, lideranças… Tinham homens que não aceitavam eu estar ali, porque o machismo naquela época era muito maior. E, aí, começam os comentários de corredor, começam a querer me difamar, a questionar a qualidade técnica… Tudo isso para gerar um desgaste. E eu ganhei uma notoriedade que transcendeu as quatro linhas. Isso gerou um desconforto interno, vamos falar assim, de ter uma mulher brigando com homens para ser melhor o tempo todo. Meu pai, sentindo que havia essa tendência de querer anular a minha presença, falou: “Você tem que fazer algo diferente, senão você vai acabar caindo no ostracismo”. E, aí, veio o quinto convite para a revista, e eu acabo aceitando, e eternizo meu nome na história do futebol brasileiro e mundial.
R7 - Esse nu artístico para a revista, inclusive, deu o que falar na época. Se você pudesse voltar no tempo, posaria de novo? E com a cabeça de hoje, posaria?
Ana Paula - Com a cabeça que eu tenho hoje, não faria. Mas pela necessidade financeira que tinha naquela época, mesmo com a cabeça de hoje, eu faria. Eu tinha a fama e notoriedade pública, mas não tinha recurso econômico. A minha renda era muito baixa e eu tinha que cuidar da minha casa, eu já morava sozinha aos 20/21 anos, e cuidar da casa da minha mãe. Era ela servente de escola, meu pai teve posses, herdou a herança do meu avô, mas não tinha um pingo de juízo e perdeu tudo. Meu pai adoece em 2006, tem o primeiro AVC, fica com o lado direito inteiro paralisado, e só a minha mãe e eu para ser a provedora da casa, e cuidar dos meus irmãos caçulas. Então, por mais que eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje, faria a revista por eles. Quando eu aceitei fazer, foi muito difícil para mim, foi um conflito. Só que a oferta financeira que eles tinham me dado eu conseguiria quitar a minha casa que eu tinha comprado, conseguia dar uma casinha modesta para a mãe quitada e ainda ter uma reserva se algum deles adoecesse, tinha essa preocupação.
R7 - Você se arrepende?
Ana Paula - Não. Não estou dizendo que sou melhor que ninguém, mas não foi pela vaidade, não foi pela estética. Foi porque eu vi que era um caminho para eu dar uma condição de vida para os meus pais e meus irmãos. Eu sabia do preço que estava pagando, sabia que eu ia carregar esse estigma para o resto da minha vida, mas isso não me desqualifica. A Hortência, a Christiane Torloni, a Maitê Proença e outros tantos nomes que, a meu ver são extremamente importantes para a nossa socidade, também fizeram [a revista]. E elas não foram tão subjugadas, vamos dizer assim, como eu fui, por eu ser uma mulher do futebol. Em contrapartida, tive muitas mulheres que me admiraram e me respeitaram por essa coragem, de falar: ‘O corpo é meu, eu sei o que vou fazer com meu corpo, para ajudar quem eu quero’. Acho que também foi uma resposta a tudo que eu estava sofrendo naquele ano de 2007, com a perda do escudo da Fifa, que eu sofri. Mas, me reergui e reescrevi a minha história, e estou aqui hoje falando isso para você.