Jatinhos, casas de luxo, roupas de grife e muito mais. No imaginário de todos, é criada a ideia de que jogador de futebol vive uma vida dos sonhos, com o bolso cheio, sem preocupações.
Uma pequena, talvez minúscula parte, vive essa realidade. Dados recentes divulgados pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) mostram que o Brasil tinha, em 2019, mais de 360 mil atletas de futebol registrados, mas apenas um quarto deles era considerado profissional.
O Relatório de Impacto do Futebol Brasileiro, divulgado no fim de 2019, comprova que o futebol é um retrato fiel da realidade brasileira, uma vez que a concentração de renda também é uma característica marcante desse universo: 80% do valor total dos salários do futebol brasileiro estavam concentrados em 7% dos atletas.
Quando se observa a média salarial da maior parte dos brasileiros que vivem o sonho de ser jogador de futebol, há um choque de realidade. Cerca de 55% deles recebem menos de R$ 1.000 — na época da divulgação do relatório, o salário mínimo estava cotado em R$ 998.
Para acabar com o mito de que jogadores e treinadores vivem uma vida de novela, o R7 conversou com três personagens para contar como é a verdadeira face dos nômades da bola: um jogador em atividade, um aposentado e um treinador de futebol.
Aqueles que saem de casa cedo, abdicam do lazer e do ambiente familiar e superam incertezas e saudade da família pelo prazer de viver em razão do sonho de jogar futebol.
Multicampeão pelo São Paulo como jogador, Pintado tem 57 anos e é técnico de futebol. Apenas em 2023, trabalhou em Limeira, no interior paulista, e em Caxias do Sul, cidade da serra gaúcha a mais de 1.000 quilômetros de lá.
Com quase 40 anos dedicados ao futebol, lamenta ter perdido muitos Natais em família por conta do trabalho.
Nascido em uma cidade de 2.000 habitantes, no interior de Goiás, Diogo Marzagão tem 36 anos e começou a carreira de jogador tarde, aos 23. Trocou o emprego em uma fábrica de álcool de limpeza para seguir o sonho do pai. Hoje joga na Portuguesa, um gigante adormecido do futebol brasileiro.
Revelado nas categorias de base do Palmeiras, Denis Borges tem 47 anos e se aposentou do futebol aos 34. A saudade do filho, que morava com a mãe em São Paulo enquanto ele mudava de endereço ao redor do país, abreviou a carreira desse campeão de Copa do Brasil.
Da várzea do interior goiano para viver de futebol na maior cidade da América Latina: a vida do corajoso Marzagão
Até aos 22 anos, Diogo Marzagão trabalhava em uma fábrica de produção de álcool usado para limpeza doméstica. O futebol nem sequer era um sonho para esse rapaz que nasceu em Marzagão, uma pequena cidade com cerca de 2.200 habitantes, em Goiás.
Atleta de fim de semana, jogava partidas de futebol amador aos sábados e domingos, para completar a renda e respirar um pouco do esporte que tanto ama, paixão herdada do pai.
A vida de Marzagão ganhou outros contornos quando recebeu um convite para jogar um amistoso na virada de 2009 para 2010. A partida seria um combinado de jogadores que se destacaram em torneios amadores contra o Crac, time profissional do futebol goiano.
“Eu trabalhava e não tinha como ir. Como ia largar meu serviço e ir jogar esse jogo?”, questionou, na época. Um acerto com o patrão, seu Custódio, ajudou. Ele combinou que perderia um dia de férias para compensar a folga da fábrica.
Acontece que Marzagão nunca mais voltou para o serviço. Como ele mesmo conta, “deu uma destacada boa” no amistoso e foi chamado para integrar o clube profissional.
“Fizeram o convite, mas eu não queria, porque a vida de profissional não é fácil. Às vezes atrasa [o pagamento], e na fábrica eu estava recebendo meu dinheiro e jogava amador no fim de semana. O dinheiro vinha quentinho, aí eu falei: ‘Não vou mexer com isso, não’. Mas meu pai insistiu: ‘Você vai’. Acabei indo mais pela vontade do meu pai, pelo gosto dele. Graças a Deus, estava tudo preparado, e hoje eu sou bem-sucedido."
Talvez você não conheça Diogo Marzagão, mas, aos 36 anos, provavelmente ele já jogou contra o seu time do coração. Sem jamais ter feito categoria de base, é mais um caso de atleta moldado nos campos de várzea que foi para o futebol profissional.
Desde 2010 como atleta profissional, passou por mais de 15 times na carreira.
Jogou no Acre, em Goiás, em Minas Gerais e, em 2019, desembarcou de vez em São Paulo, onde atuou pelo Água Santa, de Diadema. Desde 2021, é jogador da Portuguesa, tradicional clube paulista que, após ser rebaixado para a série B em 2013, vive no ostracismo, sem competir em nenhuma divisão nacional.
Contratado por empréstimo em 2021, o volante quis continuar na Lusa após o fim do contrato e abriu mão de disputar a elite do Paulistão para jogar na série A2.
A decisão, no âmbito esportivo e financeiro, talvez não fosse a melhor, mas o coração falou mais alto. No fim, Marzagão escolheu certo: fez parte do elenco campeão da A2, que pôs a Portuguesa de volta na elite do estadual após sete anos.
“Eu sabia que estava madurando esse acesso, estava batendo na porta. Eu fiz uma boa escolha de ter ficado e ter sido campeão com um time do tamanho da Portuguesa. Ter o nome marcado na história aqui não tem dinheiro que pague. Fiquei muito feliz.”
Pai da Agatha, de 9 anos, e da Thabata, de 4, e casado com Valquiria, Marzagão conta, orgulhoso, que o futebol mudou a realidade financeira da família.
“Deu para juntar um dinheiro. Tenho a minha casa, na minha cidade natal. Graças a Deus e por meio do futebol, pude comprar a minha casa e um para a minha família. Sou muito grato ao futebol.”
Como ele mesmo conta, ficar longe das pequenas é difícil. Mas, ao mesmo tempo, Marzagão mostra muita maturidade ao falar como equilibra a vida profissional com a pessoal.
“Passa rápido. Vale a pena abdicar da família por alguns dias, às vezes até meses em pré-temporada, afastado, longe. Mas a gente tenta fazer isso para o bem deles. Sempre pensando no melhor para a família. Nossa carreira é curta, já, já chega ao fim.”
Sem nunca ter tido empresário, Marzagão é quem escolhe o próprio futuro. Se aposentar? Nem pensar. A ideia é jogar por pelo menos mais três anos, seguir na Lusa e conseguir, “no mínimo”, levar o time à Série C.
Orgulhoso com o que conquistou na carreira, afirma sem titubear que “toparia tudo de novo para ser jogador”. Em uma simples frase, resume a sua maior conquista, maior que qualquer campeonato.
“Saí de uma cidade de 2.200 habitantes para morar na maior metrópole da América Latina e posso estar dando o melhor para as minhas filhas e esposa.”
Sem arrependimentos: Denis Borges venceu no futebol e trocou o fim da carreira por mais momentos com Matheus
Ser revelado por um gigante do futebol brasileiro, participar da conquista mais importante da história de um clube e ter tido a experiência de ser treinado por Luxemburgo e Felipão.
São poucos os jogadores no futebol brasileiro que tiveram o prazer e a chance de ter todas essas experiências que Denis Borges viveu ao longo de 14 anos de carreira.
A trajetória do atleta profissional, no entanto, é um eterno perde e ganha. No caso do lateral-esquerdo aposentado, o preço a pagar foi ter perdido grande parte dos aniversários do único filho, Matheus.
"Parei de jogar mais cedo do que pretendia porque o Matheus estava crescendo. O aniversário dele é 12 de janeiro, numa época de pré-temporada, e não podemos faltar. Perdi praticamente todos os aniversários dele. É uma coisa muito chata, muito triste! Ver o filho fazendo aniversário e não poder estar perto, estar junto”, relembra o ex-atleta.
Revelado pelo Palmeiras, Borges entrou no clube com apenas 13 anos, ainda nas categorias de base, e ficou até disputar seus primeiros jogos da carreira com a camisa palestrina.
Foi emprestado a alguns times menores, para ganhar experiência. Voltou ao Palmeiras em 1996 e ficou até 1997, quando chegou Luiz Felipe Scolari, o Felipão. Ele acabou perdendo espaço e selou sua ida para o Juventude, de Caxias do Sul.
Borges se mudou para o clube gaúcho, que, no fim da década de 1990, assim como o Palmeiras, tinha o patrocínio da Parmalat, empresa italiana de laticínios, o que facilitou a transferência.
Em 1999, o lateral fez parte da histórica conquista da Copa do Brasil, considerado o maior título do clube.
Além do Juventude, Denis Borges jogou por mais uma dezena de times, de diversos estados. Entre eles, o Internacional, de Porto Alegre, e o Paysandu, do Pará, além de ter jogado no Rio de Janeiro, em Santa Catarina, em Minas Gerais e no interior paulista.
A esposa, Daniella, acompanhava o marido nas empreitadas da bola, o que significava costumeiras mudanças de endereço. Mas, com um filho recém-nascido, tudo mudou.
“Em 2003, quando fui jogar no Paysandu, em Belém, minha esposa e o Matheus, que ainda era pequeno, me acompanharam. Mas a Daniella, que já era formada em jornalismo, estava fazendo outra faculdade, não pôde mais ir junto. Ela decidiu ficar com o Matheus em São Paulo, e foi quando eu comecei a ir para os lugares sozinho."
As mudanças em família para outros estados mudaram para visitas ao "QG” da família em São Paulo, quando os clubes o liberavam para folgas de dois a três dias. Apesar da frustração, Borges garante que a família entendia que o sacrifício fazia parte da rotina de um atleta profissional.
"É ruim, né? Eu ficava longe do Matheus, com ele crescendo, ficava longe da minha esposa, da minha mãe, de toda a família. Chega uma hora que a gente acaba se acostumando, e a família acaba entendendo. Eles entendiam. Sempre joguei, eu precisava jogar, estava trabalhando. Depois as coisas acabam se encaixando.”
A aposentadoria veio aos 34 anos, relativamente cedo para um jogador de futebol. Após pendurar as chuteiras, Borges ainda esteve perto do ambiente do futebol e iniciou carreira como treinador.
Hoje, mora com a família em São Paulo e é educador físico. O ex-jogador fala com lucidez que os quase 16 anos como profissional não o deixaram rico, mas trouxeram estabilidade financeira.
“Na minha época, jogador não ganhava tão bem. Eu não tive oportunidade de jogar fora. Estava praticamente acertado com um time da França, mas rompi o ligamento cruzado anterior e não tive oportunidade de jogar fora do país. Mas consegui ter minhas coisas, bens, um apartamento etc. Não que me deixou rico, eu e minha esposa trabalhamos ainda, mas não passamos nenhuma dificuldade”, conta.
Ao colocar na balança os prós e contras da vida, Borges ressalta que, embora lamente o tempo perdido ao lado do filho e da mulher, não se arrepende das decisões que tomou.
“Faria tudo de novo se tivesse a chance. É uma profissão para a qual Deus nos dá o dom. E você ser um jogador profissional no Brasil, o país do futebol, é muito difícil. Jogar nos clubes que joguei, ir bem, ser campeão. Trabalhei com Luxemburgo, Felipão e Parreira. Foi muito gratificante.”
Ídolo do São Paulo com quase 40 anos de futebol, Pintado aprendeu a lidar com a solidão, apesar das cicatrizes
Nascido em Bragança Paulista, no interior de São Paulo, Luís Carlos de Oliveira Preto, antes de virar Pintado, apaixonou-se pelo futebol graças a um campinho que tinha ao lado da casa em que vivia na infância.
Também antes de virar Pintado, sonhava em ganhar uma luva e uma camisa de goleiro. Era a posição escolhida por ele como favorita.
O tempo passou, e os sonhos do jovem pareciam esquecidos. Para ajudar em casa, começou a trabalhar em uma oficina mecânica, até ser surpreendido com um convite do Bragantino. O tradicional time da cidade o chamou para voltar ao clube pelo qual tinha passado na categoria de base, anos antes.
A proposta para o jovem de menos de 20 anos era tentadora. Ganhar mais do que o emprego na oficina para jogar bola.
“Isso para o meu pai era algo meio assustador. Ele tinha a preocupação de que eu deveria ter carteira assinada. Desde que eu tivesse uma carteira de trabalho assinada, eu poderia jogar futebol, porque naquele momento o futebol não era uma profissão.”
Qual foi solução encontrada para dobrar o pai? Registrar Pintado em uma fábrica de macarrão, que pertencia a um dos diretores do Bragantino.
"Isso foi algo que me levou a lutar ainda mais para buscar meu espaço, não me dar por vencido e não desistir nunca. Felizmente, as coisas deram certo. Apareceu um santo São Paulo na minha vida que mudou tudo”, conta, orgulhoso.
Durante os 20 anos como jogador profissional, passou por mais de 15 times e teve experiências internacionais no Cruz Azul, do México, e no Cerezo Osaka, do Japão.
Além disso, é lembrado por passagens marcantes no América-MG, pelo qual foi campeão Brasileiro da Série B, e no Bragantino, quando fez parte do histórico time de Vanderlei Luxemburgo e conquistou o Paulistão de 1990 e o vice-campeonato Brasileiro em 1991.
Era volante raiz, daqueles que não tinham bolas perdidas em campo. Destacava-se pela vontade e pela dedicação tática dentro de campo e fazia o trabalho sujo para o time brilhar.
Mas não tem jeito. Ao falar de Pintado, imediatamente o São Paulo é lembrado. A história do jogador se confunde com a do Tricolor Paulista.
São poucos os que passam pelo Morumbi e saem como ídolos. Lá, foi bicampeão paulista e da Libertadores e fez parte do histórico time que venceu o Mundial de Clubes, em 1992, contra o Barcelona, de Johann Cruyff.
“A diferença é que eu não joguei no São Paulo, eu fui campeão pelo São Paulo, então isso tem um peso muito grande na minha vida, para minha família. Eu sou um cara que anda pela rua e tenho o respeito das pessoas pelo que ganhei como atleta no São Paulo”, conta, orgulhoso.
“Não tem como não me emocionar quando eu falo do São Paulo. Realmente, a minha vida e da minha família mudou graças a tudo o que eu ganhei lá. Vai ficar para a história. A minha parcela de sorte na vida, se é que existe sorte, foi ter jogado no São Paulo”, completa Pintado.
Assim como os outros personagens ouvidos pelo R7, o ex-jogador, que continua na ativa como treinador, teve de abdicar do dia a dia com a família por causa do trabalho. No caso de Pintado, mesmo aos 57 anos, ele se mantém presente na louca rotina do futebol.
Apenas dois anos após se aposentar, passou de dentro do campo para a lateral dele. As mudanças de clube aumentaram. Entre trabalhos como treinador e auxiliar técnico, Pintado passou por mais de 30 clubes desde 2004.
Experiente, fala com clareza que a função exige muito da parte mental. E, mesmo com saudade da esposa, dos filhos e dos netos, explica o propósito de se manter na estrada até hoje: “Eles entenderam que é para eles”.
“Como treinador, é mais difícil, porque é uma exigência muito mais mental do que física. Para mim, é interessante encontrar um lugar de paz, e eu tenho paz dentro da minha casa. Eu aprendi a conviver com essa solidão”, completa.
Durante a conversa, Pintado mostrou muita gratidão por todos os lugares pelos quais passou. Até mesmo aqueles de que revelou ter mágoa após ser demitido, como no caso do Goiás, em 2021. As relações interpessoais, a vivência nas cidades, os títulos e os acessos para a Série A, além da admiração dos outros, são vitórias para ele.
As quatro décadas nesse meio trouxeram estabilidade financeira e conforto aos familiares. “Meus filhos estão iniciando a vida muito mais fácil do que eu, e os meus netos vão iniciar mais fácil do que os meus filhos. Graças a Deus eu soube administrar.”
Apesar disso, a lembrança de momentos importantes longe da família é uma ferida aberta, mais para Pintado do que para os familiares dele.
“Passei mais de um Natal longe da família. Felizmente, eles conseguiram ter um Natal bom, com os presentes que desejavam. Essa solidão nesse momento foi difícil. É uma cicatriz que eu vou levar para sempre, mas, ao mesmo tempo, colhemos os frutos disso tudo.”
Mais razão do que coração, Pintado se diz realizado. Garante que toda a trajetória valeu a pena, já que teve mais alegrias do que tristezas.
Seria esse um sinal de aposentadoria? Ainda não. Pendurar a prancheta não está nos planos do treinador. Entre os objetivos que ainda restam, voltar ao São Paulo, independentemente da função, faz parte dos planos.
“Eu tenho lutado contra isso. O meu coração diz que sim, mas a razão diz que não. Se o São Paulo um dia entender que posso ajudar, eu vou dar meu coração para que dê certo.”
Reportagem: Gabriel Herbelha e Pietro Otsuka
Edição: Carla Canteras e Vivian Masutti
Gerência de Arte: Omar Sabbag
Arte: Sabrina Cessarovice
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coordenação de Vídeo e Produção de Conteúdo: Danilo Barboza
Produtor de Conteúdo Audiovisual: Matheus Mendes
Editor Finalizador: Ed Sabatine
Assistente de Designer Gráfico Audiovisual: Eriq Gabriel
Designer Gráfico Audiovisual: Marisa Kinoshita