Milton Cruz tem intuição para perceber o talento de um jogador
Reginaldo Castro/Gazeta PressMilton da Cruz nasceu em Cubatão, em 1957, num momento de tensões políticas e quando se iniciava o processo de poluição ambiental da cidade. Seu trabalho, porém, desde que se tornou futebolista e ingressou no São Paulo, com 20 anos, é o de purificação.
Quando atuava, Milton Cruz, como é conhecido, se contentava em jogar simples. E depois, como auxlilar técnico permanente do São Paulo, cargo que ocupa há mais de 20 anos, seu prazer é revelar para o mundo o puro futebol brasileiro.
Das mãos, ou dos olhos de Milton, já brotaram da fértil terra tricolor nomes como Lucas, Casemiro, Oscar, Breno e tantos outros, numa safra sempre de grande variedades a cada ano.
É ele quem, além de observar equipes das categorias principais do Brasil e da América do Sul, faz a ponte entre as revelações da categoria de base e a equipe principal. O trabalho com o técnico Muricy Ramalho é afinado. Para o profissional, recentemente subiram valores como Boschilla, Lucão e Ademílson.
Milton se orgulha do que faz e, como um operário de uma indústria de produção em larga escala, já tem todos os seus movimentos automáticos. Mas o mais importante foge do concreto na rotina de um trabalhador. Passa muito mais pelos mistérios da alma humana: a intuição.
— Quase no fim dos anos 90, eu conversava com o grande jornalista Tuca (Pereira de Queiróz, que morreu em 1998), do Estadão. Ele me pediu para apontar um garoto em que eu apostava, da base. Queria fazer um perfil dele. Eu não demorei para responder. Vai naquele menino ali, tem uma técnica refinada, tem tudo para ir longe. Era o Kaká.
Este olhar de lince para pinçar jogadores faz parte de sua personalidade. Ele pode não ter a erudição de um acadêmico, mas o seus métodos de filósofo do futebol tocam fundo no alvo. Milton descobre um talento por um gesto, por um sorriso, por uma arrancada. Num toque de mágica muito bem embasado em sua cartilha da vida.
Ele também lamenta quando vê murchar a flor de um talento. E isso também acontece de forma sutil. Em uma passada menos firme, em uma queda fácil ou até em uma lágrima, ele percebe o fim de um sonho.
— O importante é ter olho.
Para ele, isso é algo que vem faltando no futebol brasileiro. A verdadeira essência dos jogadores foi distorcida, se confundiu com os interesses financeiros dos empresários e embaralhou tudo no mundo do futebol. Características que poderiam gerar um craque muitas vezes são deixadas de lado para a forja de cabeças de bagre.
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— Uma coisa é ser olheiro. Outra coisa é ter olho. Hoje em dia tem olheiro que não enxerga, quando vê, vê tudo errado.
Ele não entra muito no debate se isso também ocorre no São Paulo. Prefere falar de seus métodos, que ainda mantém, mesmo em meio a um futebol que cada vez menos valoriza o fundamento, o treino especializado, o apego do menino à bola.
— Tento fazer isso ainda, mas o o trabalho hoje não é igual. Antes, eu percorria o Interior, jogávamos contra Guapira, Atlético Sorocaba e eu ia "colhendo" quem eu via ter potencial. Havia campos de pelada, isso ajudava. Hoje só há condomínios. Descobri o Fábio Santos (hoje no Corinthians) assim. Fui ver um jogo do meu filho no social (campeonato de sócios de clubes) e o Fábio jogou muita bola. Pedi o telefone dele para o meu filho e depois o trouxe para o São Paulo.
Com Kaká, ele também conta que pode fazer um trabalho específico graças muito mais à paixão do jogador pela bola do que pelas condições oferecidas na época.
— O Kaká treinava no campinho reduzido, lá no clube social. Ficava dando toques na bola, foi lá que ele aprendeu a dar aquela chapadinha na bola, que ele tanto utliza nas finalizações, para tirar do goleiro. O certo tem de ser desta maneira. Tem de estar junto com a bola, gostar da bola, jogar bola. Hoje se prioriza, de uma maneira geral, muita preparação física e tática, mas nessa idade o garoto tem de jogar só por prazer.
Enquanto Milton fala, o céu do Centro de Treinamento vai escurecendo. O som dos grilos se mistura às lembranças do auxiliar, que vai se despedindo, com um leve sorriso em direção à noite escura. Ele parece conversar com ela, aceitando o desafio de tentar decifrar algo por de trás das trevas pacatas. Seu jeito simples e sua fala mansa se harmonizam com a escuridão. É dela que, no dia seguinte, e após uma noite bem dormida, ele irá acordar para os pássaros da manhã e, quase certamente, irá intuir no ar o alvorecer de um novo jogador.